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Em Pauta
Divisão de papéis
Em meio às transformações da sociedade e da própria estrutura da família, surgem dúvidas acerca de qual papel a escola e os pais devem desempenhar na formação moral e ética dos jovens. Estariam os sistemas de ensino, por meio da ênfase nos currículos, e a família, em nome de uma possível liberdade excessiva, abrindo mão dos valores fundamentais à educação, como respeito e cidadania? O Em Pauta desta edição fez essa pergunta à mestra em educação Tania Zagury e à psicóloga Telma Vitoria. Elas abordam, em artigos exclusivos, questões como divisão de responsabilidades, imposição de limites e construção da consciência social de crianças e adolescentes
Família e escola: parceria necessária
por Tania Zagury
Por cerca de dois séculos, família e escola viveram em lua-de-mel. O que a escola determinava, a família endossava. Assim, crianças e jovens sentiam, nas figuras de autoridade que as orientavam, coesão e homogeneidade. Com isso, o poder educacional das duas instituições alimentava-se mutuamente e as novas gerações adquiriam valores e saberes (intelectuais e morais) sem maiores conflitos. Hoje já não existe esta confiança inequívoca: os pais parecem estar desconfiados dos professores e vice-versa. É como se o encanto houvesse se quebrado. É comum pais irem à escola questionar desde as tarefas escolares até a avaliação ou o calendário, ou, pelo contrário, entregarem à escola toda a problemática relacionada à educação. Ambas as atitudes em nada contribuem para o crescimento intelectual e afetivo de nossas crianças. Uma coisa, porém, é certa: quando a família não confiar mais na escola (e vice-versa), o caos estará instalado e nossos filhos, perdidos.
Acompanhar e zelar para que os filhos recebam da escola a formação necessária é um direito e um dever dos pais. Não se trata, portanto, de postular que o magister dixit reencontre espaço numa época em que a razão e a consciência devem ser as molas mestras das ações de todos. Trata-se, antes, de evitar que a desconfiança floresça, alimentada pela insegurança que permeia as relações sociais de hoje e que começa a minar também a crença da família na ação da escola.
A confiança se perdeu por vários motivos. Um deles é o fato de que muitos pais têm hoje conhecimentos que os tornam capazes de perceber falhas ocasionalmente cometidas pelas escolas. Mas esse seria o “lado positivo”, se não houvesse muitos conceitos mal compreendidos. Daí que, por vezes, as reclamações se tornam infundadas. Reclamar é um direito. Resta saber, do que e de que forma fazê-lo.
Algumas agências educacionais, de fato, atuam quase exclusivamente voltadas para o lucro. Qualquer instituição tem de, obviamente, ser saudável administrativamente, o que significa arcar com os compromissos e sobreviver com dignidade. Mas, quando se vê que algumas agem apenas em função do sucesso financeiro, pode-se compreender por que a confiança se esvai. É pena, porque a melhor forma de tornar uma escola lucrativa é fazê-la investir na qualidade da educação. É uma fórmula quase milagrosa...
Outro fator que leva à desconfiança é o crescente assoberbamento de tarefas docentes, sem a contrapartida institucional que possibilite o trabalho eficiente. Não significa que tudo está perdido nem que todo professor trabalha mal. Pelo contrário, em meio a tanta dificuldade – má remuneração, carga horária imensa, excesso de alunos em sala, falta de limites –, encontramos milhares de educadores que não abandonam a luta por motivar, ensinar, formar e mostrar a seus jovens alunos a beleza e o poder das idéias...
Decerto existem outros fatores que agravam o descasamento família-escola. Como evitar que se torne irreversível? É claro que não podemos, num artigo, discutir todas as interfaces do problema. No entanto, no que tange à relação família-escola, o ponto de partida precisa ser o olhar objetivo, sem preconceitos mútuos: a solução imediata depende do desejo real de entendimento e harmonização de ambas as partes.
Por parte dos pais constitui, por exemplo, saber priorizar o que é essencial para que os filhos caminhem em direção ao saber e à socialização. Isso inclui posicionar o projeto pedagógico como quesito número um na escolha da escola, e a confiança na opção feita como base para uma parceria verdadeira.
Às vezes os pais se sentem tão pressionados pela mídia, pela sociedade e até pelos filhos (influenciados que estão pelo consumismo e pelo imediatismo de hoje) que não sabem o que fazer. Têm medo de tudo: de que os filhos usem drogas, parem de estudar, se marginalizem, se frustrem, não passem no vestibular, não se sintam felizes... Enfim, não sabem com clareza qual deve ser o objetivo primeiro na educação. Por outro lado, ao mesmo tempo em que os riscos e a violência na sociedade aumentaram, os pais se tornaram mais ausentes: a mulher também está agora no mercado de trabalho, portanto, sentem-se culpados por isso e pela impossibilidade de reverter a situação (afinal, os filhos têm de comer, se vestir, estudar, ir ao médico). De modo que, atônitos, no meio de tudo começam a ver fantasmas até onde não deveriam – na escola, por exemplo. É claro que estar atento ao que a escola produz é mais do que saudável – é vital. Mas, tentar impor a uma instituição, que tem um projeto, aquilo que “ouviram falar” que é “o melhor” em educação, faz com que os pais ajam de forma equivocada e até desestimuladora para os filhos. Afinal, se os pais não confiam na escola, por que eles deveriam confiar? É preciso ter equilíbrio, antes de tudo. Em algumas ocasiões os pais até têm razão, sem dúvida, mas é importante saber como conduzir as reivindicações, sempre lembrando que é bem possível que, em grande parte dos casos, as coisas não tenham ocorrido exatamente como nossos “anjinhos” relatam. A emoção desfoca os fatos – e a imaturidade também. Então, antes de sair correndo e ameaçando a escola com processos, faz-se mister pensar em todo o processo. Seu filho cresceu, amadureceu, progrediu intelectual e socialmente? Então a escola está cumprindo sua função. Pequenos dissabores ou contrariedades devem ser avaliados como tal. O que não significa aceitar qualquer coisa que os docentes façam, especialmente diante de um fato claramente antipedagógico.
Por parte da escola, por outro lado, essa busca da superação de conflitos compreende o oferecimento de estratégias eficazes de ensino, avaliação e recuperação. Sem falar na necessidade de manter professores atualizados, com domínio de conteúdo e de metodologia. Há que existir ainda, preservando-se especificidades de conteúdos e características pessoais, certa unicidade de atitudes pedagógicas, além do que a conduta de toda a equipe dever ser obrigatoriamente ética e justa. Isso fortalece os docentes e inspira respeito.
Por fim, é necessário também, de ambas as partes, a compreensão do conceito de conflito como situação manejável e até enriquecedora, bem distinta da do confronto. A presença dos pais na escola traz enfoques de grande valia, mas é fundamental que a credibilidade da agência educadora seja mantida – para o bem dos nossos jovens e da sociedade como um todo.
Tania Zagury é filósofa, mestra em educação, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora, entre outros livros, de Escola sem Conflito: Parceria com os Pais (Editora Record, 2002)
Educação da criança e do adolescente hoje - o que estão fazendo a família e a escola por ela?
por Telma Vitoria
De alguns anos para cá se multiplicam as pesquisas que comparam diversos indicadores de desenvolvimento entre os países – alguns deles relacionados à educação de jovens e crianças, como porcentagem da população alfabetizada e nível de desempenho em matérias como matemática e língua falada no país.
Nos resultados das análises feitas entre esses indicadores, é cada vez mais constatado que as políticas públicas voltadas à educação têm grande relevância. Um exemplo disso são alguns países asiáticos, antes considerados pobres ou subdesenvolvidos, que, depois de investir em educação, passaram a compor o grupo das nações mais influentes na economia mundial.
Infelizmente, no Brasil, temos vivido algumas décadas de investimento público longe do satisfatório em educação. Encontramos freqüentemente em jornais e revistas notícias sobre a falta de verba, de vagas, de material e de professores em todas as instâncias do sistema de ensino, das creches às universidades.
Pois bem, para compreendermos as dificuldades atuais que as escolas e famílias vêm enfrentando, precisamos olhar para os resultados que a histórica falta de investimentos numa política pública de educação tem provocado, assim como para as mudanças ocorridas nas formas de organização da sociedade.
Primeiro, precisamos lembrar que a família mudou muito na sua forma de organizar as atividades do dia-a-dia. O crescimento das cidades, as crises econômicas e a entrada das mulheres no mercado de trabalho são alguns dos fatores que passaram a requerer da sociedade novas soluções para a educação, antes reservada ao ambiente familiar.
Se antes a mãe permanecia em casa, preocupada com a educação dos filhos, auxiliando nas tarefas escolares, ensinando normas e condutas sociais, acolhendo nos momentos de dificuldade e ajudando-os na formação de sua auto-estima e identidade, hoje ela está trabalhando, enquanto os filhos estão não só na escola, mas em frente do computador, assistindo à TV, na companhia dos amigos...
Ou seja, se antigamente a formação ética e moral do indivíduo cabia exclusivamente à família, hoje passou a ser uma questão social. E muitas famílias não têm mais tempo para cuidar sozinhas desse assunto. Na minha convivência com várias famílias, por meio do trabalho desenvolvido no Centro de Cultura e Educação Infantil da Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (Caasp/OAB), observo que os pais continuam preocupados com essa formação e encaram-na seriamente como sua responsabilidade. Mas, ao mesmo tempo, outras demandas concorrem com a dedicação aos filhos. Coisas como as exigências cada vez maiores no trabalho e a necessidade de providências para a manutenção da casa. Com tantas obrigações a ser cumpridas em um dia (que deveria ter mais do que 24 horas!), poucos têm energia e conseguem se organizar para dedicar algumas horas diárias de atenção aos filhos. Muitas vezes até mesmo as atividades de autocuidado, como ir ao médico, por exemplo, e de lazer ficam num segundo plano, o que só piora o estado de humor e a disposição para atender às solicitações de uma criança ou adolescente.
Além disso, muitos desses pais estão construindo uma vida longe de seu local de origem. Hoje a mobilidade das pessoas também é maior. Elas mudam de cidade e de país com mais freqüência do que há algumas décadas. Com isso, perdem o grupo familiar de apoio, como aquela irmã, avó, tia ou vizinha que poderia prestar auxílio num momento de sufoco.
Ainda existem muitas famílias que conseguem garantir a seus membros uma melhor qualidade de vida, mas para aquelas que não conseguem resta contar com a escola, a igreja ou programas voltados às crianças e adolescentes – desenvolvidos por organizações não-governamentais ou pelo poder público para auxiliá-las na formação das crianças.
A escola, por sua vez, foi originalmente criada para instituir uma forma sistemática de transmissão de conhecimentos – a princípio apenas para a elite e depois ampliada para toda a sociedade. Enquanto era uma instituição para as elites, seus professores eram altamente conceituados, dignos de prestígio social pelo seu saber. Basta lembrar da época em que o professor tinha prestígio na sociedade.
Mas foi, também, durante as últimas décadas que a sociedade e o poder público se voltaram para a necessidade de dar acesso às escolas a toda a população, ao mesmo tempo em que se priorizava o investimento de recursos em infra-estrutura para o crescimento econômico do País, não para a educação ou para o desenvolvimento social. Um dos resultados foi a queda da qualidade do ensino, especialmente no que se refere à formação dos professores.
Atualmente, os cursos que formam os professores são defasados e os salários mal permitem a sobrevivência, tampouco a continuidade de sua formação. Por outro lado, as demandas da sociedade exigem desse profissional um perfil mais complexo do que o de “transmissor de conhecimentos”.
A sociedade atual espera poder compartilhar com os professores a responsabilidade pela formação ética e moral das crianças e dos adolescentes. Portanto, não basta mais ao professor dominar um conhecimento específico (coisa já difícil, pela formação que consegue ter), porém o domínio de habilidades que lhe permitam trabalhar simultaneamente outros conteúdos com os alunos em sala de aula, tais como o respeito aos outros, a solidariedade, a preservação do ambiente, a sexualidade, a estética, as normas e regras sociais instituídas em sua cultura... Enfim, conteúdos que fazem parte da formação moral e ética de um aluno.
A maioria das escolas não está preparada para assumir essa atribuição. Seus professores e os demais profissionais que dela fazem parte foram educados, em sua maioria, dentro do modelo privado e familiar de formação moral e, por isso, esperam que os pais resolvam os problemas de comportamento das crianças em casa. Eles investem grande parte do seu tempo tentando “orientar”, “convencer” as famílias para que se dediquem mais aos filhos para resolver esses problemas.
Quer dizer que, por um lado, temos as famílias sentindo-se culpadas por não estar conseguindo cumprir com o que a sociedade espera delas, que é a formação moral de seus filhos, porém, muitas vezes sem condições de mudar essa situação. Por outro lado, temos muitas escolas que não estão preparadas para incluir essa formação em seus programas.
Vejam que não estou avaliando os afetos, tão individuais e subjetivos, presentes nas relações entre pais e filhos, alunos e professores e destes com os pais. Tampouco julgando o que deveria caber a cada um. Apenas compartilho a constatação de uma situação criada histórica e concretamente na vida de tantas pessoas que enfrentam os dilemas inevitáveis que cercam a formação dos cidadãos, buscando, com isso, construir uma sociedade melhor.
Acredito que pais e professores se esforçam e muitas vezes procuram dar o melhor de si. No entanto, resta saber o que está acontecendo com as crianças e os adolescentes. Uma boa saída seria perguntar a eles o que pensam disso tudo, seja na escola, na rua, no cinema, na TV, seja em qualquer lugar. Cada um de nós tem um pouco de responsabilidade sobre a maneira como os futuros cidadãos estão se formando.
Telma Vitoria é psicóloga, mestra em saúde mental pela Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto, trabalha como consultora do Ministério da Educação, do Programa Auxiliar de Desenvolvimento Infantil Magistério (ADI município de São Paulo), da Secretaria Estadual de Educação do Paraná e do Centro de Cultura e Educação Infantil da Caasp/OAB, em programas de formação de professores