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Esporte
Vai encarar?
A prática de esportes radicais em espaços urbanos revela mais que uma mudança de cenário para a busca de adrenalina. É também uma maneira de se de relacionar com a metrópole
Temos alguns desvios de conduta”, resume, entre risos, o professor de informática Renato Frosch, de 26 anos, ao se referir a si e a seus amigos quando questionado sobre seu passatempo preferido. No entanto, não é preciso alarme, o jovem não pratica nenhuma atividade ilícita. O fato é que Renato troca, sem pestanejar, qualquer festa ou cineminha por uma boa madrugada de pedaladas pelas ruas e avenidas de São Paulo. “Abrimos mão de baladas e encontros sociais tradicionais para pedalarmos na noite paulistana ao menos uma vez por semana”, continua. “Faz bem para nós, nos incentiva a encarar todos os problemas do dia seguinte de uma maneira mais bem-humorada.” Renato chega a pedalar 50 quilômetros numa noite, voltando para casa de madrugada, mesmo sabendo que terá de enfrentar um longo dia de trabalho dali a algumas horas. “É muito engraçado quando os motoristas, às 3 da manhã, nos olham com cara de negação, supostamente concluindo: ‘Esses aí realmente não têm o que fazer, pedalando a esta hora? Ou são loucos, ou não precisam acordar cedo amanhã’.” Na verdade, o que talvez os motoristas que cruzam com a turma de Renato nas ruas não saibam é que os ciclistas noturnos representam, em vez de “falta do que fazer” ou “loucura”, uma tendência que vem aumentando nas grandes cidades: a prática de esportes radicais no ambiente da metrópole, longe da natureza. Como exemplos podemos citar o ciclismo nas ruas e a prática do rapel em viadutos e prédios, que se juntam ao skate – desafiando as leis da gravidade nas escadarias da cidade – na formação de um movimento tipicamente urbano. Não exatamente uma alternativa para os que não têm condições ou tempo de praticar esportes em contato com a natureza. Mas uma nova maneira de se relacionar com a cidade, com o que ela tem de bom e de ruim. “Um dos grandes benefícios do esporte é a sociabilização”, explica Ricardo de Figueiredo Lucena, doutor em educação física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor do livro O Esporte na Cidade (Editora Autores Associados, 2000). “Mas, além disso, trata-se de uma oportunidade que o indivíduo encontra de se mostrar. A cidade é um lugar de ver e aparecer.” Segundo Lucena, os indivíduos moradores de grandes cidades anseiam por algum tipo de destaque diante do anonimato sufocante desses aglomerados urbanos. E a prática esportiva é um dos meios utilizados para isso. Ao mesmo tempo, essa relação que se estabelece entre pessoas termina por se refletir na ligação do indivíduo com o local onde mora. “Esses praticantes acabam elegendo lugares”, segue Lucena. “Suas práticas esportivas se encarregam da identificação entre os indivíduos e o espaço de maneira geral. Uma das coisas que eu acho interessante nesse fenômeno é que eles criam espaços diferenciados, exclusivos ou especiais dentro de um ambiente. Na tese que escrevi, e que resultou em meu livro, digo que o esporte inaugura lugares e cria espaços. Certos pontos da cidade, às vezes, são identificados pelo esporte que se pratica neles, mesmo que não tenham sido criados para isso.” Entre os exemplos, podemos citar o Vale do Anhangabaú, um dos pontos de encontro preferidos dos skatistas, ou ainda o viaduto sobre a Avenida Sumaré, na Zona Oeste de São Paulo – quem nunca viu alguém “pendurado” ali praticando rapel?
“Descontrole controlado” 
Originalmente, diz-se que um esporte é radical pelo grau de risco que apresenta. Na natureza, eles se caracterizam pela busca do controle sobre uma prática num ambiente hostil – “vencer” uma cachoeira, escalar ou descer uma montanha ou chegar de bicicleta até o ponto mais alto de uma trilha cheia de pedras e desníveis. E é justamente isso que se tem tentado reproduzir na cidade. O rapel, por exemplo, tem conquistado cada vez mais adeptos em sua versão urbana – que substitui as montanhas e cachoeiras por viadutos e prédios – pela “adrenalina” causada por esse “descontrole controlado”, denominação criada pelo sociólogo alemão Norbert Elias, citado por Lucena, e autor de, entre outros, A Busca da Excitação (Lisboa, Editora Difel, 1992). Pela teoria de Elias, há um descontrole, ou risco, que se tenta controlar, por meio dos equipamentos usados e do treinamento que algumas modalidades exigem, ou ainda minimizar, usando-se dispositivos de segurança como capacetes, joelheiras etc. “Ninguém entra nesse tipo de prática sem ter a segurança de que a sua vida está mais ou menos garantida”, assegura Lucena. “Você não corre risco real de morte, mas o risco é parte da prática. Sem o risco ela certamente perderia a graça.” O professor de ética e política da Universidade de São Paulo (USP) Renato Janine Ribeiro sugere, ainda, que a busca por essa sensação de perigo, a tão alardeada adrenalina, trilha caminhos mais sofisticados que os da simples alienação. “Supõe-se que, quando se expõe ao risco, você aumenta sua energia”, explica. “Numa sociedade em que se procuram minimizar os riscos, o risco ressurge como sinal de vida pulsando.” Segundo Janine, quando esse sinal “pulsa” na cidade, soma-se à equação mais um elemento. “Mostra como essas pessoas recusam a conversão da cidade em espaço apenas perigoso.” Apesar da violência e do caos que, infelizmente, têm caracterizado cidades como São Paulo, os mais corajosos preferem manter próximos seus laços com a metrópole, “usando” suas ruas, viadutos e prédios como verdadeiros equipamentos esportivos. Para Janine, esta é uma forma de driblar o medo. “O medo hoje é, sobretudo, das classes mais altas”, afirma. “A classe média, quando circula de carro por bairros pobres, tem medo. Só que há milhões de pessoas morando neles, que não têm medo de viver sua sociabilidade nas ruas e becos que os compõem”.
Quem está pendurado lá em cima?
A despeito das diversas análises que possam ser feitas desses esportes e de seus praticantes, ainda resta a pergunta: até que ponto vale a pena jogar com o risco? Para o comerciário José Roberto Quinelato, de 53 anos e que há 11 pratica o rapel urbano, independente do perigo, vale a pena. Ele afirma que, desde que os equipamentos sejam devidamente checados e que o praticante “tenha certeza” do que está fazendo, o risco real não existe. “No caso do viaduto, por exemplo, a gente coloca, antes de tudo, uma proteção para que a corda não se desgaste no atrito com o concreto”, explica José Roberto, carinhosamente chamado de Tio Zé pelos amigos. “Esse procedimento faz parte da ancoragem. É o que a gente chama de proteger a via, ou seja, a corda. Depois disso, a descida é feita com vias que suportam até 5 mil quilos.” Mesmo assim, todo cuidado é pouco. A história do rapel urbano em São Paulo já computa ao menos um caso de acidente grave. Em 1999, o engenheiro mecânico Paulo Rogério Yoshikawa caiu do Viaduto Sumaré de uma altura de cerca de 10 metros, e teve fratura exposta nas duas pernas, hemorragia cerebral e lesões no tórax. Na época, o capitão Edson de Jesus, relações-públicas da Polícia Militar (PM), admitiu que a polícia poderia impedir a prática do rapel naquele lugar, já que, segundo ele, “há risco contra a vida alheia e até mesmo de tumulto”. Mas observou que a proibição não é posta em prática porque “a polícia não pode ficar voltada só para isso”. Segundo Tio Zé, o perigo de tumulto tem diminuído depois que a febre inicial passou. Atualmente, só seu grupo, formado por cerca de 30 pessoas, pode ser encontrado lá nas noites de quarta-feira, quando costumam praticar o rapel. “Arruaça não tem, e se tiver sempre tem alguém que bota ordem. Tanto é que no nosso grupo nós temos policiais, bombeiros. Além do mais, não tem o que proibir. A gente não está depredando nem destruindo nada.”
Tombos e “finas”
Outra prática que reúne muitos admiradores é o skate – esse sim, urbano por excelência. O pequeno pedaço de madeira sustentado por quatro pequenas rodas combina com o concreto e faz com que seus praticantes, os skatistas, se destaquem nas escadarias, corrimãos e demais desníveis da cidade. Tadeu Ferreira, de 29 anos, morador do bairro do Ipiranga, é um deles. É tão apaixonado pelo skate que se lembra com exatidão da data em que se iniciou na prática. “Comecei a andar de skate no dia 27 de janeiro de 1988”, conta. “Antes eu jogava bastante futebol com alguns amigos. Até que um deles comprou um skate. E muitas vezes ele largava as partidas no meio para ir andar. Aí eu comecei a observá-lo e comecei a gostar, surgiu o interesse quando eu o via descendo a rua, fazendo aquelas manobras, parecia surfe.” O local preferido de Tadeu e seus amigos skatistas é o Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga, local que, segundo Tadeu, tem espaços de concreto bem “lisinho”, perfeito para suas manobras. “Mas o bairro do Ipiranga todo é bom para andar de skate, porque é tranqüilo, as ruas têm um asfalto legal, dá para andar, são largas etc. Por outro lado, não tem pista de skate. As opções aqui acabam sendo ou andar no museu ou na rua mesmo.”
Quando a prática se restringe a lugares adequados para tais práticas, como as pistas de skate ou as ciclovias, o principal perigo são os tombos que as manobras ousadas de alguns skatistas podem ocasionar, ou uma freada mal calculada de algum ciclista distraído. Mas, quando os praticantes saem às ruas, movidos pelo desafio ou pela falta de locais adequados para o treino, surge um agravante: a disputa de vias públicas com os veículos no trânsito. “Uma vez eu estava descendo uma ladeira de skate e um taxista, parado, quando viu que eu me aproximava, abriu a porta do carro”, narra o skatista Tadeu. “Tomei um chão que meu skate voou.” Mas será que o Tadeu estava de capacete? “Não, não uso o equipamento, limita os movimentos.” Marcelo Magalhães, 28 anos, amigo de Tadeu, afirma, na verdade, que a maioria dos skatistas “não tem o costume” de usar equipamento de segurança. “Mas eu já caí de cabeça e me arrependi de não estar de capacete, só que ninguém usa. Sei que é perigoso.”
O ciclista Renato – aquele com “desvios de conduta” que abriu o texto – também já passou por maus bocados, mesmo tendo mais de dez anos de experiência. “Já caí no Túnel Maria Maluf na hora do rush, meu guidão quebrou e eu perdi o controle da bike por alguns instantes”, diz, iniciando uma lista de problemas. “Além disso, meu pneu já furou quando eu estava em alta velocidade.” Fora o trânsito, outro ponto bastante crítico enfrentado pelos ciclistas são os altos índices de poluição do ar, principalmente no período diurno, no qual os ciclistas concorrem com caminhões, motos etc. Isso sem falar nos assaltos. “Nunca eu e meus amigos tivemos a infelicidade de ter uma bike ou equipamento roubado em São Paulo; no entanto, pedalamos apenas em grupos, e de certa forma observando ao redor”, explica Renato. Ao contrário de nossos descuidados skatistas, Renato não sai de casa sem os equipamentos de segurança. “Ciclista que está de capacete é visto com mais respeito pelos motoristas”, afirma. E, diante desse panorama de dificuldades, percalços e de necessidade de se proteger para minimizar os riscos, fica claro que esse tipo de esporte tem seu público cativo, mas não é destinado a todos os cidadãos que buscam uma atividade física neste início de ano. Daí surge a pergunta clássica das propagandas e dos programas de esportes radicais: vai encarar?
Rapel – Técnica de descida que o praticante utiliza para transpor obstáculos, como prédios, paredões, cachoeiras, com o uso de cordas ou cabos. O termo rappel vem do francês e significa trazer e recuperar. Apesar de não se saber exatamente quando a técnica foi criada, ela foi utilizada por espeleólogos, que usavam desse recurso para explorar cavernas.
Skate – Originou-se na Califórnia no início dos anos 60, com os surfistas colocando rodinhas em suas pranchas para “surfar” no asfalto quando as ondas não estavam boas. Atualmente, os skates se dividiram em duas categorias principais: o long board, de shapes (a madeira) maiores, destinados a manobras mais próximas do chão e com a alta velocidade com o principal característica (estes mais “próximos” das pranchas de surfe), e o street, aqueles skates menores e mais ágeis, cujas manobras visam mais aos saltos. São esses os mais comuns tanto nas pistas quanto nas ruas e espaços da cidade.
Bicicleta – O ciclismo praticado à noite pelas ruas das grandes cidades tem mais ligação com o mountain biking do que com aquela bicicleta de passeio ou usada como meio de transporte. A idéia é usar os obstáculos da cidade, como calçadas desniveladas e ladeiras para tentar reproduzir um pouco os percalços comuns à modalidade, criada com o intuito de “vencer”, sobre duas rodas, os desafios de trilhas e montanhas.
Outras maneiras de encarar
Esporte radical é melhor ainda quando é seguro
O risco não precisa ser “equipamento básico” na prática dos chamados esportes radicais. Em São Paulo é possível ensaiar algumas manobras no skate e dar umas pedaladas sem que isso signifique se expor aos percalços da metrópole. O skatista Tadeu Ferreira dá a dica de uma pista pública no bairro do Ipiranga que é cercada e cuidada por um morador do bairro. “Antes ela era aberta, mas para evitar a violência foi decidido que deveria ser fechada”, explica Tadeu. A pista fica na Rua Dom Vilares, entre a Avenida Tancredo Neves e a Avenida do Cursino, é aberta das 8 às 22 horas e, segundo Tadeu, muito freqüentada. “Eu prefiro as ruas, mas essa pista é bem legal para a moçadinha que está começando”, afirma. O skate marca forte presença também nas atividades do Sesc Verão 2005 (veja boxe). Na unidade de Itaquera foi montada uma pista com obstáculos em que acontecem brincadeiras, jogos adaptados e monitorados, para, além do skate, patins e bicicletas. “A idéia é justamente desmistificar o esporte radical, resgatar seu lado mais lúdico, de brincadeira”, esclarece Gerson Luiz de Souza, técnico da unidade. As atividades incluem corridas de skate com remo, rali com obstáculos para bicicleta, futebol com triciclo e até uma corrida na qual as bikes puxam os skates com uma corda.
Já, para os que preferem a velha e boa bicicleta, o destino termina sendo mesmo os parques. O Parque Villa-Lobos e o Ibirapuera são uma boa pedida. O primeiro é amplo e tem vias mais planas, enquanto o segundo é mais arborizado e oferece um contato maior com a natureza. Ali bem ao lado do Ibirapuera a opção pode ser ainda um anexo conhecido como parque das bicicletas, que, segundo o biker Renato Frosch, é perfeito para levar as crianças. “Tem muito cara de domingo”, brinca.
Sesc Verão 2005
Com o tema Jogos, Brincadeiras e Movimento, nona edição reforça a noção de esporte para todos
Depois de abordar os temas Corpo Legal, Corpo Feliz, Escolha Seu Corpo, e Corpo e Ambiente, a comissão que organiza o projeto Sesc Verão, composta de técnicos de unidades do interior, da capital, do litoral e da Gerência de Desenvolvimento Físico e Esportivo (GDFE), concluiu que era hora de partir para a interação entre as pessoas e as múltiplas maneiras de brincar praticando atividades físicas. Surgiu assim o Sesc Verão 2005 – Jogos, Brincadeiras e Movimento. Uma série de atividades de esporte, lazer e cultura em todas as unidades do Sesc que oferece uma ótima oportunidade para todos praticarem atividades físicas – mesmo aqueles que não se encaixam em perfis mais “radicais” e preferem uma tranqüila caminhada a se aventurar no rapel em viadutos. “Percebemos que os esportes de um modo geral podem, em alguns momentos, restringir a participação das pessoas dadas as habilidades especiais que algumas modalidades exigem”, explica Ricardo Gentil, técnico da GDFE. “E, tendo em vista que as ações do Sesc enfatizam a democratização do esporte, a melhoria da qualidade de vida e o exercício da cidadania, as atividades do projeto neste ano procuram incentivar a prática da atividade física regular como manutenção da saúde e do bem-estar por meio de jogos.” Tendo como ponto de partida essa filosofia, a grade de programação pode oferecer atividades que Ricardo chama de desportivas. Ou seja, a espontaneidade e a ludicidade, comum à maioria dos jogos, entram em cena, extrapolando regras e lugares predeterminados, equipamentos muito sofisticados ou horários fixos. Com segurança e orientação, vale tudo na busca pelo lazer com qualidade. “Desde tentar se equilibrar em um skate até subir em árvores, é tudo uma grande brincadeira de desafios.”