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Literatura
Obra essencial
Evento homenageia o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw e mostra que seus textos podem conquistar platéias em qualquer lugar do mundo
Conhecer o passado para entender o presente. Foi dessa premissa que partiram a Cia. Coisa Boa e o Sesc São Paulo quando idealizaram Bernard Shaw – Um Porto de Passagem, realizado em dezembro no Sesc Vila Mariana. O evento reuniu 12 grupos para encenar seis peças do dramaturgo irlandês, nascido em 1856 em Dublin. A idéia surgiu do interesse da Cia. Coisa Boa por Bertold Brecht, dramaturgo alemão nascido no final do século 19 e morto em 1956. E o que tem Brecht a ver com Shaw? Welington Andrade, integrante do grupo, explica: “Brecht é fundamental para o teatro moderno e Shaw, por sua vez, foi fundamental na obra de Brecht. Numa etapa futura vamos montar Brecht, mas tínhamos de passar por esse porto antes”. Cada apresentação foi sucedida por um debate aberto ao público, com a participação de apreciadores da obra de Shaw. Mais que uma mostra de teatro, o projeto teve também o mérito de provar que os textos do irlandês, ao contrário do que se convencionou pensar, não são tão “difíceis”. Suas peças são longas – muitas vezes chegam a ter quatro ou cinco horas de duração –, o que terminou por criar certa resistência. Essa reação acabou incentivando o pensamento de que o autor escrevesse para poucos, que sua obra fosse de acesso restrito. “Ficou provado, depois das apresentações no Sesc, que a obra de Shaw não só é universal, como ele é também um genuíno dramaturgo, não somente um escritor para ser lido”, afirma Andrade. “Seus textos não só podem ser encenados, como isso pode ser feito num teatro em Londres ou em Recife.” A versatilidade da obra de Shaw foi mostrada, por exemplo, no trabalho do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, que imprimiu elementos da linguagem hip-hop na apresentação da peça Volta a Matusalém. Já o grupo Parlapatões empregou sua conhecida veia cômica para montar trechos do mesmo texto do dramaturgo. “Ao utilizarmos a capacidade destruidora do humor, nos aproximamos do embate que Shaw propõe em sua obra”, afirma Hugo Possolo, um dos fundadores do grupo.
O trópico é nosso
Segundo a Cia. Coisa Boa, o preconceito em relação à obra do irlandês é conseqüência do desconhecimento, tanto do público quanto dos atores brasileiros, sobre alguns clássicos da dramaturgia ocidental que são fundamentais para aprofundar a compreensão da nossa própria produção. Para os idealizadores do evento, o teatro brasileiro padece de falta de perspectiva histórica para avaliar a evolução da arte produzida em nossos palcos. É como se a dramaturgia moderna brasileira tivesse refeito o longo caminho trilhado pela cena ocidental em algumas poucas décadas, mais especificamente a partir de 1937, quando o modernista Oswald de Andrade lança O Rei da Vela. A obra narra toda a trajetória de um burguês, incluindo suas paixões, até a morte. Ainda hoje, O Rei da Vela é considerada um marco no teatro moderno brasileiro. “Assumimos o trópico”, escreveu o crítico Sábato Magaldi, em artigo sobre a peça, publicado originalmente em 1987, no Jornal da Tarde. No entanto, essa tardia “tomada do trópico” teria deixado lacunas no processo de formação da cena brasileira. Para o grupo aí está a necessidade de voltar ao passado para compreender certas obras de autores estrangeiros, tão pouco visitados pelo teatro brasileiro.
Celeiro
O que é que a Irlanda tem? Tem James Joyce, Oscar Wilde, Samuel Beckett e George Bernard Shaw. Como se pode ver, esse celeiro abriga escritores e dramaturgos que habitam o panteão da literatura ocidental. A pequena ilha foi a primeira colônia da Inglaterra e até hoje está marcada pela dominação inglesa. Para Welington Andrade, essa condição marginal na Europa está intrinsecamente ligada à obra desses escritores. “Essa posição é também fundamental na obra de Shaw. Esses autores estão na periferia da Inglaterra. Por isso eles fizeram críticas tão violentas à sociedade inglesa ou à Europa de uma maneira geral”, explica. Shaw ficou conhecido como um dos homens mais polêmicos de sua época. Consagrou-se por suas peças mordazes e também se tornou notório pelas frases ácidas que soltava. Não se sabe ao certo a veracidade do episódio, mas é famosa a história do escritor com a bailarina americana Isadora Duncan. Ela lhe teria dito: “O seu cérebro é o maior do mundo, e o meu corpo é o mais belo. Deveríamos produzir o filho perfeito”. Foi quando ele disparou: “Sim, mas que será desse filho, se tiver o meu corpo e o seu cérebro?” Também é conhecida a história de uma atriz que, irritada com uma crítica negativa que ele teria feito a sua peça, lhe enviou uma carta, em que dizia: “Sr. Bernard Shaw, se eu fosse sua mulher, colocaria veneno no seu vinho”. A resposta foi cortante: “E, se eu fosse seu marido, eu beberia”. Ele era considerado um frasista genial e muito bem-humorado.
Filho de pais separados, aos 13 anos Shaw mudou-se com a mãe, uma aspirante a cantora lírica, para a Inglaterra. Por essa época o dramaturgo começou a ter contato com o mundo da arte. A intimidade com a música deu-lhe seu primeiro trabalho, como crítico musical. Portanto, sua primeira grande contribuição foi para o jornalismo cultural. Nessa época ele começou a escrever e a dirigir as próprias peças. E foi a partir do lançamento da polêmica A Profissão da Senhora Warren (1893) que o dramaturgo entrou para o hall dos mais mordazes de sua geração. Na peça, uma mulher rica dá à única filha uma educação elitista, com formação na aristocrática Cambridge, mas uma revelação perturba a tranqüilidade burguesa na qual vive a família. Até morrer, em 1950, o escritor parece ter ocupado a posição de consciência, de advogado do diabo da sociedade inglesa. Aliás, função que ele dizia cumprir com muita honra, pois não era inglês. Socialista, foi um dos fundadores da Sociedade Fabiana, na Inglaterra, partidária do socialismo, do humanismo e da divisão de riquezas. O grupo teve uma intensa participação política no país e foi uma das células que originaram o partido trabalhista inglês.
Esse lado polêmico, intenso e engajado, entretanto, contrastava com um certo puritanismo que habitava sua personalidade, sobretudo na vida particular. Dono de hábitos ortodoxos, não comia carne, não bebia, não fumava e, ele próprio costumava dizer, mal praticava sexo. Nunca teve filhos e seu casamento também não foi fruto de nenhum sobressalto do coração. Simplesmente casou-se, por volta do 30 anos, com a enfermeira que o havia ajudado a cuidar de uma inflamação no pé e por quem tinha se afeiçoado.
No auge de seu prestígio como escritor, ganhou em 1926 o Prêmio Nobel de Literatura, em reconhecimento de uma carreira que também produziu prefácios de peças, muitas vezes reunidos em volumes autônomos, e alguns estudos sociais. Mais tarde, em 1938, sua peça Pigmaleão (1916) ganhou uma versão cinematográfica. Shaw responsabilizou-se pelo roteiro, trabalho que lhe rendeu um Oscar. Já em suas primeiras peças, como Casa de Viúvos (1892), O Homem e as Armas (1894), A Profissão da Senhora Warren (1893) e Cândida (1895), surge o provocador teatro de idéias, que iria marcar toda a carreira do autor. Trata-se do texto feito para instigar o espectador e não o que valoriza somente as ações dos personagens – este último conhecido como teatro físico.
“Se nosso pequeno mundo não nos permite compreender o grande mundo que nos rodeia e nos cerca, é porque ou somos medíocres ou não conseguimos entender coisa alguma da vida. Ou as duas coisas.”
“Tem gente que sonha com realizações importantes, e há quem vai lá e realiza.”
“Traduções são como mulheres. As bonitas não são fiéis. E as fiéis não são bonitas.”
“Um jornal é um instrumento incapaz de discernir entre uma queda de bicicleta e o colapso da civilização.”
“O problema dos pobres é a pobreza; o dos ricos é a sua inutilidade.”
“Alguns homens vêem as coisas como são e dizem: por quê? Eu sonho com as coisas que nunca foram e digo: por que não?”
“Tudo o que faço é jornalismo, e nada que não seja jornalismo sobreviverá.”