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Ficção Inédita

Carlos Alberto Bombig

 

Quando o moleque falou “pai”, eu senti um arrepio, um troço esquisito, igual aquela vez que a Janaína disse “Oswaldo”, e baixou os olhos até o saleiro no meio da mesa. Mas ele não desviou o olhar, não, me encarou, fez um pequeno silêncio e disse que não queria mais ser jogador de futebol e que não iria mais começar no Bandeirantes de Birigüi e que Jesus tinha mostrado que a bola não estava no caminho dele.

 

Eu fiquei quieto, mas só por pouco tempo, tive vontade de levantar os braços, de gritar, de bater nele, de chutar alguma coisa, uma cadeira, quebrar um vaso, sei lá, de chorar, mas não fiz nada. Só o que saiu foi alguma coisa como “o que aconteceu, meu filho?”, e ele começou a dizer de novo que “Jesus...”. E eu não ouvi mais nada. Saí para a rua.

 

Sempre gostei de bola, a vida inteira, como também sempre gostei de mulher, de cerveja, dos amigos e de mais um monte de coisas que um monte de gente gosta. Mas agora, por que diabos agora, tinha de ter um filho crente, um moleque que era habilidoso com a bola nos pés, jogava sempre de cabeça erguida, lembrava até o Ademir da Guia o moleque.

 

Era crente, igual à mãe, a Edilaine, que não entrava em igreja quando eu a conheci naquele dia, uma morena bonita, ao sair da fábrica pra pegar a condução em frente à barraca do Zé Amaro, vendedor de cachaça e arrumadinho, pai do Zé Américo, beque burro, mas forte no tranco, atarracado, e que hoje disputava a terceira divisão do Campeonato Nacional em um time do Paraná. Não acredito, até o Zé Américo tinha virado profissional. E o moleque era crente e queria ser administrador de empresas.

 

O moleque era muito melhor que qualquer cabeça-de-bagre, muito melhor do que eu fui na época do Vasquinho e daquela vez que eu fiz um teste na peneira do Juventus e me botaram na ponta-direita, e o lateral, depois de me desarmar duas vezes seguidas, deu uma risadinha e falou que era gostoso jogar futebol, mas que também era difícil. Sempre penso nisso: é gostoso, mas também é difícil. Muitas coisas na vida são assim: gostosas, porém difíceis.

 

A fala do moleque tinha me deixado meio tonto. Então, eu fui pro bar do seu Celso e pedi uma cerveja enquanto esperava o jogo na televisão, uma partida importante, que valia classificação, mas que eu não consegui acompanhar porque só pensava na frustração de não ver meu filho em um time profissional. Pedi uma cerveja e uma pinga com limão espremido, que por aqui chamam de maracanã.

 

Lembrei de novo da Janaína, as lágrimas escorrendo na cara dela, os olhos no saleiro.  “Eu não te quero mais, Oswaldo, você é um fraco.” A minha vontade de chorar foi maior que a dela, tenho certeza, mas eu não consegui e fiquei olhando os grãos de arroz dentro do saleiro. Já fazia um tempo tudo isso, mas a minha espinha ainda esfria quando eu penso nela. Eu poderia ter mudado o rumo da minha vida com a Janaína. Já fazia um tempo.

 

A voz do locutor na TV engordurada me irritava. Ia pedir para abaixar o volume, só que aí o Paulinho me falou “o seu filho tá namorando a filha do pastor, parece até que vai casar”. De cara, achei que ele tava de sacanagem. Calei. O moleque freqüentava os cultos, eu sabia, a mãe levava. Só não tinha idéia de que saía com uma mulher, com compromisso, negócio sério. Porra, eu conhecia a menina, bonita, calada, estudava em uma faculdade à noite. Não imaginava.

 

O jogo na TV tava acabando, meu time perdia. “Você tem um menino de ouro, Oswaldo, vai à igreja, estuda e também trabalha. O meu tá andando com uma galera pesada, os caras do Marcão, não quer saber de nada”, completou o Paulinho. Nada diminuía minha tristeza, minha frustração, ele não entendia. Quando o juiz apitou, eu vi de novo o exato momento em que havia sido reprovado na peneira do Juventus. O lateral rindo da minha. Era gostoso, mas difícil. O nó na garganta, a vontade, só a vontade, de chorar que me deu naquela tarde.

 

Pedi mais uma cerveja, tomei, paguei e fui para casa, a noite já avançava. De manhã, eu tinha muito serviço, logo cedo, não podia chegar atrasado. As contas penduradas na geladeira. Entrei devagar, a sala estava vazia. A Edilaine não assistia a televisão, seria bom se não fosse por causa da igreja, mas era. Até isso. Vi as coisas do moleque arrumadas para o dia seguinte. Caminhei até a cozinha e sentei-me à mesa que estava posta para o café-da-manhã. Um silêncio tomou conta da rua, acho que do mundo.

 

Uma lágrima caiu em cima da letra A do saco de pão onde um bicho feio e mal desenhado dizia que agradecia a minha preferência. Fez um barulho seco. Deve ser isso que a gente sente antes de morrer.

 

O autor está na coletânea de contos Uma Antologia Bêbada – Fábulas da Mercearia São Pedro (Ciência do Acidente, 2004)