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Em depoimento à Revista E, o professor de literatura Davi Arrigucci Jr. comenta a obra do escritor argentino Jorge Luis Borges

 

No conto Biblioteca de Babel, escrito em 1941, o autor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) – personagem principal da peça A Última Viagem de Borges, com cenário de Maria Bonomi, direção de Sergio Ferrara e texto de Ignácio de Loyola Brandão – descreve uma biblioteca infinita, onde estão todos os textos já escritos e os que ainda serão redigidos. Porém, tanto conteúdo reunido gerava um grande inconveniente: não era possível distinguir uma grande obra de textos incorretos e mal escritos. Décadas depois, após a popularização da internet, não há como negar que Borges foi um visionário. Afinal, é como uma grande biblioteca cheia de armadilhas que funciona a rede mundial de computadores.

 

Leitor voraz, Borges praticamente passou a infância desbravando os livros que seu pai tinha em casa – aos 38 anos, foi nomeado diretor da Biblioteca Pública Nacional da Argentina. Vítima de uma doença genética, o autor ficou cego aos 50 anos e desde então passou a ser acompanhado por pessoas que liam  para ele. Borges morreu aos 86 anos e deixou cerca de 60 livros publicados.

 

Nesta edição, a Revista E, aproveitando a estréia da peça baseada no universo do autor, convidou o professor de literatura comparada da Universidade de São Paulo (USP) Davi Arrigucci Jr., um dos mais renomados críticos literários brasileiros, autor de inúmeros livros, entre eles, Coração Partido (Cosac & Naify/2002), para um bate-papo sobre a vida e obra de Borges, sobre quem escreve um novo ensaio. Durante a entrevista, Davi fala da vez em que esteve – “rapidamente” – com o escritor em meados da década de 1980, quando o argentino participou de uma palestra no prédio do jornal Folha de S.Paulo. “Foi quando lhe perguntei se ele era melhor leitor ou escritor”, conta o crítico. “Ele respondeu que era melhor leitor. Borges considerava a leitura mais civilizada e mais intelectual do que escrever. E de fato ele cumpriu isso a vida toda.” Leia a seguir os melhores trechos do depoimento.

 

 

Raízes argentinas

Eu acredito que Borges está entre os cinco ou seis maiores escritores da América Latina. Até os anos 70, sua literatura era muito pouco lida no Brasil ou em qualquer lugar. Nessa época, ele já tinha causado polêmicas sérias, inclusive foi perseguido por Juan Domingo Perón [que assumiu a Presidência da Argentina em 1946 e depois em 1952], porque era contra o peronismo. Borges foi também muito antinacionalista num país em que o nacionalismo foi uma das linhas de força da política. Por outro lado, é bem verdade que, ao longo de sua vida, ele falou muitos disparates aos jornais. De forma muito brincalhona, irônica, sem dar muita pelota às questões, mas falou. Apesar de geralmente a crítica insistir em tratá-lo como um escritor que caiu das nuvens, como se sua literatura fosse universal e não viesse de lugar nenhum, seu trabalho possui, sim, muitas características que só caberiam no contexto literário da Argentina. Na verdade, ele  estava profundamente arraigado à tradição de seu país, rioplatense, completamente imerso na história de sua formação e nas suas questões políticas. Portanto, dizer que ele não fala sobre a Argentina, sobre seu continente, é um equívoco. Todas as raízes de sua experiência pessoal aparecem em seus contos.

 

 

Leitura contestadora

Durante toda a sua vida Borges teve uma relação muito profunda com a leitura. Sua escrita deriva diretamente do ato de ler. Por suposto que isso ocorra com muita freqüência, a maioria dos escritores escreve porque lê. Mas nele isso se transformou no centro de sua vida intelectual, pois sua escrita não nasce somente a partir de sua vida, de suas experiências, daquilo que ele apreende no mundo. Sua obra deriva, diretamente e com o mesmo peso, também daquilo que leu. E ele não foi um leitor passivo, sempre se intrometia nos textos, comentava-os, por vezes de maneira polêmica. Trata-se de um exímio contestador. Todo o tempo, Borges pratica uma espécie de jogo de espelhos em que uma imagem reflete outra, que reflete outra e outra, como se fossem espelhos encadeados. Ou seja, ele tem desde o início uma paixão pelo tema do infinito e pelas séries de imagens do real, séries de personagens que reproduzem os mesmos caracteres. Desde o começo há uma fixação muito grande no universo múltiplo e caótico do qual a literatura tenta dar conta. E o sujeito sempre aparece como um ser perplexo diante dessa multiplicidade avassaladora. Há um jogo muito forte entre o eu e o outro, esse outro que, na leitura, de algum modo nos invade e que nos desconcerta. Esse leitor inquisitivo é desde o começo um narrador do mundo e dos livros.

 

 

Temática

O labirinto é uma figura recorrente em sua obra, porque ele é uma imagem da perplexidade humana. Essa busca incessante no labirinto é uma imagem  muito borgeana. É a busca pelo conhecimento, pelo saber,  uma busca intelectual, que se defronta com um tema fundamental, que é a busca do homem por saber quem é. Só que, para isso, ele depende da morte. Inúmeras histórias de Borges desembocam na história de um homem à procura de saber quem é. Há sempre a mola da busca da identidade, de saber quem eu sou. E isso só é possível diante da morte, ou seja, quando se completa a demanda. Só a morte bota um fim nisso. Essa pergunta é a mola das histórias todas, dos poemas todos, dos ensaios. A biblioteca também é uma figura recorrente em sua obra, funciona como uma espécie de receptáculo por onde entram os vastos ares do mundo. O tigre, da mesma forma, é outra figura recorrente em Borges. Trata-se de um tema que tem raízes em sua infância e se fixou no escritor como uma de suas primeiras imagens dessa fase, quando viu a figura de um tigre, ao folhear as enciclopédias da biblioteca do pai. Aquela terrível simetria do tigre, a violência contida na beleza, isso fascina o menino e é um desconcerto na vida dele inteira. Ele escreveu diversos poemas sobre o tigre, na  tentativa de recuperar aquela imagem.

 

O fantástico também é um dos pilares na obra de Borges, porém não de maneira irracional. Não se trata de um destrambelhamento irracionalista. Muito pelo contrário, ele é um homem extremamente racional. Só que uma coisa é razão, outra coisa são os limites da razão. Ele considera  a palavra como um símbolo mágico do universo. A palavra também é música, além de ser um instrumento da comunicação. Uma das forças de Borges é justamente ter mexido com a palavra, como símbolo mágico do universo e também como música. Ele tem um grande ouvido e é também um poeta muito importante, mais do que as pessoas costumam aceitar. Porque, em geral, se valoriza mais nele a figura do ensaísta e do contista que a do poeta. E isso é um equívoco. Ele é dos poetas fundamentais da língua espanhola no século 20, um dos inventores da poesia moderna em língua espanhola.

 

 

Rigor intelectual e internet

O fogo sagrado da literatura de Borges é o rigor intelectual, de uma narrativa capaz de representar com uma linguagem precisa. Trata-se de uma literatura crítica, altamente lúcida com relação a seus limites e possibilidades. É uma espécie de ética do escritor, saber até onde ele pode ir com seu instrumento verbal. Isso virou uma espécie de patrimônio da Argentina. Borges, muito antes da internet, tem uma imaginação enciclopédica, mas sem perder as raízes. E ele não seria o grande escritor que é se não tivesse essas raízes.

Ele provavelmente seria tocado pela idéia da rede mundial de computadores, sem perder a idéia de todo o chão que tem atrás dela. Mas creio que a internet o fascinaria principalmente porque ele tem um grande fascínio pela etimologia, pela busca da raiz das palavras. E isso está muito facilitado na internet. Você pode juntar tudo em torno de uma palavra que saiu no mundo inteiro. Onde mais se consegue isso? Você pode pensar que a internet funciona como uma biblioteca internacional a sua disposição. A internet é uma biblioteca de Babel. E ele previu isso.