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Bela Fera

A obra da poeta, dramaturga e ficcionista Hilda Hilst, que faria 75 anos em abril, deve ganhar um instituto cultural e conquista cada vez mais leitores para seus escritos revolucionários

 

Fotos: Edu Simões/Cadernos de Literatura Brasileira/Acervo Instituto Moreira Salles

 

Na noite de 8 de março, o segundo andar do Sesc Pinheiros estava especialmente agitado. O público que aguardava do lado de fora do auditório chamava a atenção por misturar faixas etárias. Porém, não se tratava de nenhum evento sobre convivência entre gerações. O que levava jovens, adultos e terceira idade para a mesma platéia era o primeiro debate do projeto Palavra Viva: Hilda Hilst (1930-2004), uma série de quatro encontros semanais que reuniu atores, críticos literários e amigos para falar sobre a obra e a vida de uma das maiores autoras brasileiras, que completaria 75 anos em abril. A julgar pela quantidade de gente e pelo ecletismo do quorum, o medo da autora de que seus livros ficassem incompreendidos e inacessíveis parece não ter mais fundamento. Preocupação que começou a se dissipar nos seus últimos anos de vida, especialmente após a Editora Globo reeditar sua obra completa em 2001. Com seus escritos distribuídos por uma grande editora, Hilda finalmente conseguiu aumentar o alcance de suas palavras. Foi então que ela aplacou um pouco a angústia de ter sido considerada uma autora marginal durante quase toda a vida. “Quando você faz uma revolução, demora”, disse à amiga Nelly Novaes Coelho, em entrevista publicada no número 8 dos Cadernos de Literatura Brasileira, lançado em 1999 pelo Instituto Moreira Salles. “A aceitação chega a demorar meio século ou até mais.” Prova-se agora que a revolução de Hilda encontra eco cada vez mais longe – antes do meio século previsto por ela. “Hilda Hilst ocupa um lugar único não só na nossa literatura, mas também em toda a literatura ocidental do século 20”, comenta a crítica literária Eliane Robert de Moraes, uma das convidadas do evento do Sesc Pinheiros. “Ela escreveu uma obra de tom experimental, mas também de forte dramaticidade.” Ainda, segundo Eliane, fato raro na paisagem literária brasileira.

 

 

Tábua etrusca

Hilda Hilst publicou Presságio e Balada de Alzira, seus primeiros livros de poesia, no início dos anos 50, respectivamente em 1950 e 1951. Depois desses, seguiram-se mais 18 livros de poesia, 13 de ficção e nove peças de teatro. Considerada uma escritora muito reclusa e de palavras “difíceis”, teve a maior parte de sua trajetória literária marcada por um grande desencontro com o público e também pelo silêncio de boa parte da crítica. “Sinto-me uma tábua etrusca”, disse em entrevista aos Cadernos. “Ouço muito que as pessoas não me entendem. Quando alguém me entende, fico besta.” A curadora do Palavra Viva, Beatriz Azevedo, também atriz e compositora, conheceu Hilda nos anos 80, a qual desde então elegeu-a como uma de suas preferidas para declamar seus poemas. Beatriz diz lamentar o equívoco de interpretação da obra da autora, vista como inacessível em termos de linguagem, principalmente porque trata de temática universal. “Ela fala sobre amor, paixão, Deus e medo da morte”, diz a curadora. “De fato, a linguagem usada por ela não é aquele bê-á-bá que nos acostumamos a ouvir no cinema e na televisão. Ela tinha rigor. Para Hilda, a linguagem não era apenas algo funcional e sua obra invoca profundamente a nossa imaginação.”

 

 

Nenhum best-seller

Por mais que a polêmica tenha rondado sua produção – e, segundo os que a conheceram, também sua vida –, a parcela mais controversa de sua obra se resume, na verdade, a quatro volumes produzidos no início dos anos 90. Uma trilogia erótica, composta de O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990), Cartas de um Sedutor (1991) e Contos de Escárnio – Textos Grotescos (1990), e um livro de poemas do mesmo tema, Bufólicas (1992). A fase lhe rendeu a alcunha de pornográfica e foi, segundo analisam hoje estudiosos, superestimada pela crítica, que enxergou nela uma tentativa apelativa de atingir maior popularidade. A reação de Hilda à má interpretação, no entanto, não se traduziu exatamente numa indignação. Ela jamais negou o desejo de ser mais lida. Ainda no conjunto de entrevistas publicado nos Cadernos de Literatura, isso fica claro: “Eu tinha uma certa alegria em saber que eu escrevia bem, mesmo não sendo lida”, diz ao amigo Millôr Fernandes, responsável pelas ilustrações de Lori Lamby. “Mas comecei a sentir um afastamento completo de todo mundo. Eles nunca me liam, nunca.” Hilda continua contando que, ao saber, então, que a escritora francesa Régine Deforges ganhara milhões com o best-seller erótico A Bicicleta Azul (Editora Best Seller, 1987), decidiu fazer um livro explorando o mesmo universo. “A idéia era tentar conseguir vender mais livros, mas não consegui”, afirma. “Pensei: 'Vou fazer umas coisas porcas'. Mas não consegui.” De fato, do ponto de vista comercial, a aventura erótica foi um fracasso. “Mas, pessoalmente, acho que mesmo dentro dessa proposta, ela fez literatura de alto nível”, comenta Massao Ohno, editor de 11 livros de poemas de Hilda. Já para o escritor e amigo José Luís Mora Fuentes, o que a crítica não engoliu foi a audácia da escritora e não exatamente o que ela escreveu naquele período. “O que realmente chocou os literatos foi ver uma escritora da estatura de Hilda, com uma linguagem inovadora, magnífica, e com uma obra considerada um dos cumes da literatura nacional, ter a coragem de dar uma guinada absoluta e se permitir uma linguagem chula, além da liberdade de tocar todos os temas”, afirma. “E ela fez isso com maestria.” Mora Fuentes morou com Hilda em duas fases da Casa do Sol, em Campinas, seu lar-refúgio. A primeira nos tempos que ele chama de áureos e a segunda já nos últimos anos de vida da escritora. E ele conta que o fim serviu, no entanto, para desfazer o angustiante mal-entendido que resultou no desencontro com o público durante tanto tempo. “Assim que começou a ter uma distribuição mais próxima do normal, a resposta dos leitores foi apaixonante”, observa.  Além da reedição de todos os seus livros pela Editora Globo, segundo ele, o interesse demonstrado por sua obra estendeu-se, também, aos gabinetes acadêmicos e até à popular internet. “Há muitas teses sobre seu trabalho, assim como há também comunidades virtuais dedicadas a ela.” Porém, há os que enxergam ainda um grande espaço a ser desbravado no tortuoso caminho traçado pelas palavras de Hilda. “Há muito o que se pesquisar nesse celeiro”, afirma a crítica Eliane Robert de Moraes.

 

 

De corpo inteiro

A vida de Hilda Hilst nos tempos em que São Paulo era uma festa

 

Filha do fazendeiro e poeta Apolonio de Almeida Prado Hilst, Hilda nasceu na cidade de Jaú, em uma família rica do interior paulista. Seu pai morreu esquizofrênico aos 35 anos, o que fez com que Hilda optasse por não ter filhos, uma vez que um médico lhe teria dito que a doença atacava geração sim, geração não. As pessoas que conviveram com a poeta a descrevem como uma pessoa deslumbrante, generosa, dona de palavras ácidas, íntegra e culta. Na juventude, foi tida como uma das mulheres mais bonitas de sua geração. “Mistura da beleza de Ingrid Bergman e da sensualidade de Rita Hayworth”, descreve o editor Massao Ohno. A beleza e a personalidade forte tocaram também Carlos Drummond de Andrade, que dedicou um poema a ela (veja reprodução do poema acima). Hilda foi musa de artistas, poetas – Vinicius de Moraes chegou a se apaixonar por ela – e intelectuais. Foi amiga de Lygia Fagundes Telles – “até o fim da vida”, afirma Lygia – e, com seu comportamento avançado, sempre chocava a sociedade paulistana em meados da década de 50. Entre as muitas histórias que sua biografia revela, diverte aos amigos lembrar do namoro com o ator norte-americano Dean Martin (aquele mesmo, famoso parceiro do comediante Jerry Lewis) e a tentativa, frustrada, de seduzir Marlon Brando. “Em Hilda tudo era extremado”, lembra a professora Nelly Novaes Coelho, apresentada à escritora por Lygia Fagundes Telles. “A tudo que fazia, entregava-se de corpo inteiro. Não conseguia o meio-termo, virtude rara que, se por um lado deixou o mundo maior e mais belo do que quando nele chegou, por outro lhe causou contínuos dissabores e problemas. Pois a vida comum exige o meio-termo, o disfarce...”

 

 

Família eletiva

O escritor e jornalista Mora Fuentes, um dos amigos mais próximos de Hilda Hilst, conta como era viver com a poeta e seus cachorros na Casa do Sol

 

“Foi graças a minha irmã e a uma linda vira-lata chamada Flika que eu conheci Hilda. Era final de 1968, quando acompanhei minha irmã à Casa do Sol. Minha irmã ia se mudar para a Alemanha, tinha uma cachorrinha muito querida e não podia levá-la. Ouviu, então, falar de Hilda e do seu amor pelos animais e combinou de deixar a cachorrinha lá. Sentimos uma forte ‘amizade à primeira vista’. Comecei, então, a passar boa parte do meu tempo na Casa do Sol. No começo de 1970 ela me convidou para morar lá. Esse seu jeito aberto transformou a Casa do Sol num ambiente muito estimulante e criativo, com muita troca de informação entre as pessoas. O folclore que criaram de que Hilda vivia como uma reclusa nunca foi verdade. Sempre fomos um grupo, uma família eletiva.

 

Aqueles que se chocaram com Hilda foram somente os moralistas, os preconceituosos e as pessoas banais. Ela era muitíssimo bem informada e sabia defender suas idéias e ideais muitíssimo bem. Sua obra, essa sim, é chocante pela beleza e exatidão dos seus versos e textos de ficção, a lucidez e perguntas essenciais que seus personagens nos colocam. Quando se referem à literatura de Hilda como chocante, estão falando da sua trilogia erótica, O Caderno Rosa de Lori Lamby, Cartas de um Sedutor e Contos de Escárnio – Textos Grotescos, e ao livro de poemas Bufólicas. Mas são quatro livros num total de 40 que a autora escreveu, e mesmo esses quatro livros não seriam considerados chocantes se tivessem sido escritos por um homem.

 

Nossa convivência durou até o fim da vida dela. Em 1983, quando meu filho ia nascer, minha mulher, Olga, e eu resolvemos retornar para São Paulo. Mas voltei para a Casa do Sol em 1998. Hilda já estava muito fragilizada, tinha tido três isquemias. Foi um tempo muito especial e muito triste também. Mas todo o legado de Hilda ainda continua lá. Os cachorros estão ótimos, são muito queridos. Estamos a poucos dias de transformar a casa num espaço vivo, de intercâmbio cultural, fundando a Instituição Hilda Hilst – Casa do Sol Viva. Temos um interessante calendário para 2005, o primeiro ano da instituição, que inclui, além de cursos sobre sua obra, eventos teatrais e também o lançamento de um CD produzido por Zeca Baleiro, que musicou dez poemas de Hilda.”

 

Abro a “Folha da Manhã”.

Por entre espécies grãfinas,

emerge de musselinas

Hilda, estrela Aldebarã.

 

Tanto vestido assinado

cobre e recobre de vez

sua preclara nudez!

Me sinto mui perturbado.

 

Hilda girando em boates,

Hilda fazendo chacrinha,

Hilda dos outros, não minha...

(Coração que tanto bates!)

 

Mas chega o Natal e chama

à ordem Hilda: não vês

que nesses teus giroflês

esqueces quem tanto te ama?

 

Então Hilda, que é sabi(l)da

usa sua arma secreta:

um beijo em Morse ao poeta.

Mas não me tapeias, Hilda.

 

Esclareçamos o assunto.

Nada de beijo postal.

No Distrito Federal

o beijo é na boca - e junto.

 

Poema escrito para Hilda Hilst por

Carlos Drummond de Andrade em 31/12/52

 

(...) Aflição de ser eu e não ser outra.

Aflição de não ser, amor, aquela

Que muitas filhas te deu, casou donzela

E à noite se prepara e se adivinha

Objeto de amor, atenta e bela.

 

Aflição de não ser a grande ilha

Que te retém e não te desespera.

(A noite como fera se avizinha.)

Aflição de ser água em meio à terra

E ter a face conturbada e móvel.

E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.

Aflição de te amar, se te comove.

E sendo água, amor, querer ser terra (...)

 

Trecho de Da Morte.

Odes Mínimas (1980), Hilda Hilst