Armas da Arte Sob o tema 2 Estados para 2 Povos, artistas defendem diálogo pacífico entre israelenses e palestinos em exposição
Há pouco mais de 20 anos, um grupo de artistas israelenses e palestinos insistem em substituir bombas pela arte. Com o recente acirramento do conflito entre esses povos, desafiam a mão de ferro do primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, e os atos de extremistas palestinos e seguem com o intercâmbio cultural entre uma das fronteiras mais sangrentas do mundo. Em cartaz de 18 de julho a 17 de agosto no Sesc Pompéia, a exposição Israel e Palestina: 2 Estados para 2 Povos reuniu 35 obras de renomados artistas israelenses, como Yigal Tumarkin, Moshe Gershuni e Dani Karavan, e palestinos, como Nabil Anani, Tayseer Barakat e Suleiman Mansour, além de mais de 35 trabalhos de artistas brasileiros. O número 35 não figura neste contexto por acaso. Trata-se de um protesto contra os 35 anos de ocupação de territórios palestinos. O movimento, na verdade um projeto chamado Portas Abertas, defende a formação de dois estados soberanos para os dois povos e o respeito e reconhecimento mútuos. Um diálogo pacífico rumo a um futuro compartilhado é a bandeira dessa difícil empreitada. Mesmo após vivenciar cinco guerras na região, Gershon Knispel, um dos idealizadores da iniciativa, não apresenta qualquer sinal de resignação. Pelo contrário. O artista plástico exala esperança e energia ao comentar seus esforços para conter os conflitos no Oriente Médio. "Eu não uso mais o fuzil. Chega! Meu fuzil é o pincel, o lápis, o nanquim. Essas são as minhas armas", afirma. Nascido na Alemanha, seus pais migraram para o Oriente Médio na ocasião da ascensão de Adolf Hitler ao governo alemão. Knispel aponta como, de geração em geração, o ódio é alimentado entre os dois povos. A obrigatoriedade do alistamento militar para os jovens de Israel - observa o artista - os força a conhecer o vizinho atrás da mira de fuzis. "Para os palestinos, visualmente, a característica de um israelense é ser soldado. Para nós, eles são vistos com um inimigo que precisamos vigiar e, às vezes, abrir fogo", critica. O engajamento de Knispel começou em 1981, quando era presidente do Conselho de Artistas Plásticos de Israel. Na ocasião, a organização dos artistas palestinos solicitou um encontro com Knispel para conduzir a queixa de que não podiam expor em suas cidades, já territórios ocupados. "Nós ficamos chocados. Não entendemos o porquê. Então, eu levantei o problema." Knispel teve a idéia de abrir as casas de artistas plásticos em Israel aos vizinhos palestinos. A primeira exposição aconteceu no ano seguinte. Em solidariedade aos palestinos, artistas de Israel também participaram da mostra. "A exposição começou a abrir ações profundas. E teve início um entendimento", segue. "Uma pacificação dessas parece milagre." A iniciativa foi um escândalo do lado israelense. Até mesmo o Parlamento do país reservou sessões para discutir a polêmica. Contudo, os bons resultados da iniciativa levaram à adesão de poetas, pintores e escritores e à criação do Grupo de Criadores Palestinos e Israelenses pela Liberdade de Expressão. Ao longo desse relacionamento, Knispel teve, entretanto, de enfrentar a resistência de israelenses que preferiam permanecer alinhados com o governo. Os primeiros contatos com o Brasil foram a convite do empresário e jornalista Assis Chateaubriand, que o convocou para produzir um painel no prédio da antiga TV Tupi, onde atualmente funciona o canal musical MTV. "Era para executar o trabalho e ir embora, mas fiquei por aqui. O Brasil é uma mostra de convivência que nunca vi em nenhum lugar do mundo. As raízes afro-brasileiras são uma maravilha. É tão diferente da nossa situação... Assim, pegamos isso como exemplo", declara. Nesta época, conheceu e trabalhou com o arquiteto Oscar Niemeyer, que mais tarde cederia a primeira colaboração para a exposição Israel e Palestina: 2 Estados para 2 Povos. Com o golpe militar de 1964, Knispel foi obrigado a retornar a Israel. A amizade entre o artista plástico e o arquiteto cresceu quando voltaram a se encontrar em Israel.
MST e palestinos Nos últimos anos, o recrudescimento da violência entre israelenses e palestinos despertou novamente a idéia de usar a arte como arma para frear a guerra. Da boa relação de Knispel com artistas brasileiros, surgiu a idéia de convidá-los para participar da mostra em oposição aos 35 anos de ocupação. Entre os mais de 35 brasileiros que integram a coletiva, estão os consagrados Tomie Ohtake, Paulo Caruso e Emanoel Araujo. Obra de Flávio Império, cedida por sua família, engrossa o elenco de grandes nomes. Integrante da mostra, Guto Lacaz ressalta a importância da contribuição da expressão artística para o cessar-fogo. "Até hoje, não sei exatamente como e por que esse conflito acontece. Mas sei que a arte é poderosa. Tem um poder discreto, diferente de uma arma. Não adianta cobrar praticidade da arte, porque isso ela não tem. Mas foi através dela que unimos os dois lados da questão e, desde que a exposição foi lançada, muita gente passou a refletir sobre o assunto. Isso é muito poderoso." O uso da arte para disseminar a paz é também defendido pela gravadora Renina Katz, outra participante do evento. "Qualquer coisa que sirva para mostrar solidariedade e isenção de preconceito em relação aos dois povos envolvidos é de extrema importância. A paz é urgente", reforça. A solidariedade dos artistas brasileiros foi desencadeada por Oscar Niemeyer. Logo que soube da nova iniciativa de Knispel, o arquiteto o chamou para uma conversa. Knispel relata que Niemeyer fez, na parede de seu escritório, grafites dedicados aos trabalhadores sem-terra. Segundo o artista plástico, o arquiteto propôs a união dessa obra com desenho feito por Knispel na ocasião em que se encontraram após o Golpe Militar. Com isso, o brasileiro traçou um paralelo entre a situação dos palestinos, que assistem à ocupação israelense, e os trabalhadores sem-terra brasileiros que lutam pela distribuição de terras no País. Um projeto que reúne a questão palestina e os sem-terra brasileiros está a caminho, segundo Knispel. "Vamos dar também uma resposta de solidariedade aos artistas brasileiros", afirma ele, que defende a necessidade de execução da reforma agrária "de uma vez para sempre". Por enquanto, Israel e Palestina: 2 Estados para 2 Povos, que já foi exibida em Jerusalém com o título 35 Prints 35 Years of Occupation, pode ganhar uma versão australiana, com artistas locais. Os Estados Unidos também estão na fila para receber a exposição. Mesmo após a larga repercussão internacional, a exposição é encarada com cautela por membros da comunidade judaica. Gershon Knispel, forte crítico da atual política de Israel, afirma que o fato de promover o intercâmbio das artes não é sinônimo de antipatriotismo. "Tenho relações muito boas com palestinos. Eles não são menos amigos que os israelenses que apóiam as minhas idéias. Tenho tantas coisas para falar com meus amigos palestinos... Sobre cores que eles usam nas paletas das paisagens, sobre a nossa tradição. Somos da mesma tradição. Tudo igual. Nós nascemos lá. Juntos."
Cavalos e melancias - Em entrevista à Revista E, o artista plástico Gershon Knispel relata experiência onde ressalta a diferença de tratamento entre palestinos e israelenses pelo Exército de Israel. A história se passou após a realização da primeira mostra coletiva reunindo os dois povos no início dos anos de 1980 e demonstra como atos pacíficos podem render resultados:
"Recebi um telefonema uns dois meses depois da exposição, do presidente da organização em Jerusalém, dizendo que um pintor (que vivia num campo de refugiados em Gaza) tinha sido preso, com pena de seis meses. Eu perguntei: o que aconteceu, porque não se leva uma pessoa presa assim. A acusação foi que ele pintou um cavalo, subindo em cima de um muro, com as cores da bandeira palestina. No dia seguinte, resolvemos mandar um ônibus de cada cidade grande, de Tel-Aviv, de Jerusalém... Nos juntamos para ir a Gaza, porque é relativamente longe. Um jornalista de televisão famoso integrava essa comitiva. Não foi a primeira vez que eu estive nesse campo de refugiados, que se chama campo de concentração, que é terrível. São condições que a gente nem consegue entender, como um ser humano pode passar por isso. São casas pequenininhas, como celas de prisão, de 2,20 por 2 metros. E todas as famílias estão dentro de uma casa dessas. Você conta os colchões e dá para ter uma idéia de quantas pessoas moram no lugar. Às vezes, são três crianças para um colchão. Quando entramos na casa desse pintor, nesse campo de refugiados de Gaza... é como uma favela. Uma situação que a gente nem consegue entender. Vimos sua mulher grávida, com cinco ou seis meses de gravidez. E ainda quatro crianças em torno dela. E ela estava completamente... Já não importava nada, já nem queria falar. Estava completamente fora. Tinha lá umas coisas abandonadas... Papel e tintas. Saímos para uma praça pequena... Tudo é muito pequeno... E eu peguei uma melancia e comecei a pintar, que por acaso tem as cores da bandeira da Palestina. Eu pintei a melancia de preto, vermelho, branco e verde. Daí chegaram os soldados da fronteira, que são os piores, têm um jeito arrogante. Olharam e perguntaram: - O que você está fazendo? - Estou fazendo uma coisa que agora vocês devem me trancar atrás de grades. - Não. Essas leis não são para vocês, são especialmente para eles. Então eu disse: - Ah... Tem leis para mim e leis para eles. Que beleza, né?! Eu posso fazer coisas que eles não podem fazer. Voltamos para Tel-Aviv, Jerusalém... Na mesma noite, o canal de TV oficial deu todos esses acontecimentos. Uma hora depois da exibição dessa reportagem, o porta-voz do Exército (de Israel) anunciou que todos os presos palestinos, que haviam sido detidos por seis meses, poderiam ser soltos por causa de uma festa religiosa. É claro que eles não iam falar que foi por causa da reportagem que haviam cedido. Acharam uma solução."
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