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Ficção
O Almofadão
De início, Vera não gostou do almofadão. Herdara-o de um tio que morrera recentemente, em circunstâncias misteriosas. Vera implicou com o vermelho desbotado do couro, dizendo que tinha algo de mórbido, sem contar que não podia suportar a idéia de sentar-se onde o velho Antônio passara as últimas horas de vida. Como fosse muito apegada ao tio, com quem mantivera uma relação muito afetuosa, não quis simplesmente se desfazer do almofadão, preferindo deixá-lo no canto mais escuro da sala.
Qual não foi minha surpresa quando um dia, voltando da rua, encontrei-a toda refestelada no almofadão. O corpo praticamente mergulhado nele, as pernas para cima, Vera como que dormitava naquele mar de bolinhas de isopor. Chamei-a, ela me resmungou alguma coisa em resposta que não pude entender. Reparei que não havia janta e que a casa estava toda desarrumada, certamente uma extravagância de Vera, sempre tão cuidadosa e diligente. Não bastasse isso, ainda por cima, dormi sozinho, porque ela preferiu passar a noite na sala.
E o almofadão tornou-se a obsessão de Vera. Chegando em casa, invariavelmente a encontrava naquele estado de letargia. Mas o que passou a me irritar era que ela parecia cada vez mais desmazelada. Cinzeiros cheios, jornais jogados na sala por varrer, pratos sujos na pia, o banheiro em desordem. Foi o que lhe disse, num dia de mau humor, incomodado por não encontrar um pijama decente. Vera nem se dignou a me responder. Parecendo embriagada, apenas murmurou desconexas palavras, como se estivesse mergulhada num sonho sem fim, nem começo. Viajei a negócios por uma semana. Ao retornar, para meu desgosto, encontrei a casa desarrumada e às escuras, quanto a Vera, continuava estirada no almofadão. Tomado pela cólera, acendi as luzes, disposto a repreendê-la. Mas, ao aproximar-me dela, notei que sua respiração era profunda e que um tênue gemido escapava-lhe dos lábios descorados. A face de Vera estava quase sem um pingo de sangue, sob seus olhos semicerrados desenhavam-se fundas olheiras e, em seu pescoço, havia uma pequena ferida de bordas escuras. Chamei-a, não me respondeu. Somente algumas bolhas de saliva escaparam-lhe da boca, em meio a um balbucio que mais se parecia a um vagido de criança. Tentei inutilmente erguê-la; embora não me opusesse resistência, seu corpo parecia preso ao couro, que a envolvia quase por completo. Quando consegui, afinal, lhe libertar parte do tronco, vi que pedaços de pele tinham ficado grudados no almofadão, o que me obrigou a deitá-la de costas novamente.
Chamei um médico e, em vão, tentamos resgatá-la. Apesar de todos nossos esforços e cuidados, agora eram bocados de carne que o almofadão ganhava de Vera. Para evitar-lhe maior sofrimento, achamos melhor deixá-la onde estava. E, assim, dolorosamente, só me restou assistir à sua longa agonia.
O almofadão ainda está ali, no canto mais escuro da sala. Ainda atormentado pela imagem de Vera, esvaindo-se lentamente e expirando diante de mim, não tive coragem de removê-lo. De um vermelho vívido, parece-se com uma boca voluptuosa. Ontem, levado por um desejo que não sei explicar, experimentei sentar-me nele, e tive a sensação de que as mãos de Vera me afagavam, de que seus lábios me beijavam na base do pescoço.
Álvaro Cardoso Gomes é ficcionista, autor do romance O Sonho da Terra