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Ensino desafinado
De 25 de outubro a 21 de novembro de 2002, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) estará se apresentando nos Estados Unidos, numa turnê que passará por 18 cidades, de Los Angeles a Nova York. Essa série de concertos constitui o reconhecimento internacional pelo trabalho de reestruturação iniciado pelo maestro John Neschling em 1997, com inovações dentro e fora do palco, que elevou a Osesp ao mesmo patamar das boas orquestras européias e norte-americanas. Conhecer os problemas que foram superados até esse objetivo ser alcançado ajuda a entender a dimensão das carências que o Brasil ainda apresenta nas áreas de formação de músicos e de educação musical da população.
Neschling conta que encontrou a orquestra totalmente abandonada, com músicos mal remunerados e ensaios realizados em locais improvisados, como o restaurante do Memorial da América Latina. Segundo o maestro, as metas traçadas em 1997 foram amplamente superadas, e as apresentações passaram de uma por mês para duas semanais. O trabalho de Neschling, porém, não se restringiu à Osesp. Foram também criados os coros Sinfônico, de Câmara e Infantil, além de um centro de documentação e uma editora de obras brasileiras.
Mas as mudanças mais importantes ocorreram mesmo na orquestra, que passou a fazer gravações por seu próprio selo e ainda prepara uma série de dez CDs para ser lançada pela gravadora sueca BIS, somente de obras brasileiras, com distribuição mundial. Para o público, foi instituído um sistema de comercialização de "pacotes" de concertos, que já vendeu mais de 5 mil assinaturas. Contudo, das medidas tomadas por Neschling, uma delas, talvez a mais importante, chegou a gerar polêmica: a renovação do quadro de instrumentistas da Osesp, que incluiu a contratação de diversos músicos estrangeiros.
"Infelizmente, no Brasil nunca tivemos uma tradição de ensino musical, nem uma escola sólida, principalmente para cordas. Sempre ficamos restritos a alguns bons professores muitos deles imigrantes , que formaram talentos individuais", explica o maestro. Para ele, o ensino de música não se restringe ao aprendizado do instrumento, pois abrange toda uma cultura musical que deve ser transmitida e estimulada. E no momento em que se buscou um padrão de qualidade dentro da orquestra, faltaram músicos residentes no país para compor os quadros da Osesp. A saída, então, foi abrir concursos no exterior, e um número significativo de instrumentistas de bom nível se interessou principalmente de brasileiros que tocavam fora do país e de músicos do leste europeu.
A dificuldade para encontrar instrumentistas nacionais qualificados também já havia sido enfrentada por outro maestro, Júlio Medaglia, em 1977, ao constituir uma nova orquestra a Amazonas Sinfônica. Nos testes que fez com músicos em Manaus cidade que na época da exploração da borracha chegou a apresentar intensa atividade musical , ele só conseguiu aprovar duas pessoas. Segundo o maestro, existem músicos de primeira qualidade nas orquestras brasileiras, mas estão todos ocupados, e por isso é realmente necessário trazer gente do exterior. Apesar dos problemas iniciais, Medaglia ressalta o caráter multiplicador que uma boa orquestra assume, citando o exemplo do que vem acontecendo em Manaus, onde, depois de quatro anos da criação da Amazonas Sinfônica, já existem quatro orquestras formadas por jovens. "Atualmente, é possível ver aqueles menininhos das periferias estudando com músicos que se formaram em São Petersburgo, de onde vêm os melhores instrumentistas de cordas do mundo. Cada um dos russos que para cá vieram tem hoje cerca de 20 alunos", diz o maestro.
Dificuldades no ensino
Na década de 1930, durante o governo de Getúlio Vargas, o compositor Heitor Villa-Lobos desenvolveu, com o auxílio do educador Anísio Teixeira, um projeto de educação musical baseado no canto orfeônico, que se tornou disciplina obrigatória nos currículos escolares.
Em 1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) substituiu a disciplina Canto Orfeônico pela Educação Musical: a música deveria ser sentida, tocada, dançada, além de cantada. Em 1971, uma nova LDB extinguiu a Educação Musical e incorporou o ensino de música ao de Educação Artística. A pianista e educadora musical Teca Alencar Britto, que vivenciou essa mudança, diz que a partir dela surgiu a figura do professor polivalente, o qual, dentro do curso de graduação, teria uma pequena introdução a todas as linguagens artísticas, com um pouco de música, outro tanto de artes cênicas e de artes plásticas, saindo depois para trabalhar direto com os alunos.
"Durante vários anos dei aula no curso de graduação em educação artística e via qual era a realidade", diz Teca. Ela conta que havia alunos que não tinham nenhuma vivência musical, e em dois anos, para os que cursavam a licenciatura curta, era necessário fazê-los passar pelas etapas de introdução, sensibilização e um processo de musicalização, como se faz com crianças. "Só que eles saíam da faculdade e tinham de ser responsáveis pelas aulas de artes, que, nas séries iniciais do ensino fundamental, incluíam música", ela acrescenta.
Com a redemocratização do país e a entrada em vigor da Constituição de 1988, começaram as discussões que iriam culminar na LDB de 1996, que considera a arte componente obrigatório do currículo da educação básica, destacando a música como uma das linguagens artísticas a ser ensinada na escola, ao lado das artes visuais, da dança e do teatro. Atualmente, nas quatro primeiras séries, o ensino da arte, e o de música dentro dele, é responsabilidade do professor de classe um só, polivalente , num sistema que, para funcionar adequadamente, dependeria de investimento muito grande na formação dos educadores. Da quinta à oitava série, as aulas são ministradas por um professor de educação artística que pode não ter habilitação específica em música. Segundo Teca Alencar, essa é a realidade do ensino público. As condições só são melhores em algumas escolas particulares, que contratam professores especializados para cada modalidade artística.
Parece evidente que o ensino musical na escola pública não é uma prioridade para os responsáveis pela educação no Brasil, embora seja do conhecimento de todos que o aprendizado de música, além de ampliar a atividade cerebral e melhorar o desempenho escolar dos alunos, como atestam pesquisas e experimentos realizados no passado, contribui para integrar socialmente o indivíduo. É o que pensa a jovem Kilsen Girotto. Ela tinha 9 anos quando começou a estudar violino no Centro Estadual de Estudos Musicais Maestro Tom Jobim (CEM) antiga Universidade Livre de Música (ULM). Atualmente com 18, diz que qualquer modalidade de arte que se faça desde pequeno proporciona uma visão diferente do mundo e uma mudança de comportamento. "Iniciei cedo na música, na mesma escola em que estou até hoje. Lá não se tem por que enveredar por um caminho de agressividade, de rebeldia, pois existe algo que vai despertando a sensibilidade", afirma.
Busca por talentos
Roberto Dante Cavalheiro, professor de teoria musical da Escola Municipal de Música de São Paulo, tradicional instituição pública dedicada à formação de instrumentistas de orquestra, aponta a falta de uma boa estrutura de ensino musical como um grave problema, que influencia negativamente a preparação dos músicos brasileiros. Em sua opinião, há áreas nas quais a pessoa pode começar a estudar aos 18 anos, mas quando se trata da música é necessário iniciar mais cedo. "Não é numa faculdade que o indivíduo vai aprender a se tornar um instrumentista de orquestra", diz Cavalheiro, que sugere a criação de disciplinas que incentivem o aprendizado de dança e de música voltada para instrumentos de orquestra. Segundo ele, uma importante fonte de instrumentistas, surgida nos últimos anos, foram as igrejas evangélicas, muitas das quais possuem orquestras próprias, que tocam durante os cultos.
Mas engana-se quem pensa que uma boa formação é garantia de sucesso na carreira de um músico. Priscila Bastos de Souza, por exemplo, violinista de 24 anos, que estudou durante cinco na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e depois se diplomou na Universidade Estadual Paulista (Unesp), reclama das dificuldades para arrumar emprego. Ela conta que começou a tocar com mais de 15 anos e lamenta não ter tido a oportunidade de iniciar mais cedo.
Cláudio Cruz, primeiro violino da Osesp e maestro da Sinfônica de Ribeirão Preto (SP), concorda que os problemas são muitos, mas, para ele, o principal é o fato de não existirem escolas de iniciação musical em número suficiente. Por isso há muitos principiantes ingressando nas universidades, ao passo que em outros países o aprendizado começa aos 12 ou 13 anos. "Não conseguimos preencher nossas orquestras com 90% de músicos brasileiros porque, quando terminam a faculdade, eles não estão prontos", diz o maestro.
Cruz, que sempre teve aulas particulares e se aperfeiçoou no exterior, explica que a escolha dos professores se faz em função do nível dos alunos e que, por essa razão, acabam não sendo contratados grandes músicos para ensinar, uma vez que os aprendizes são iniciantes. Em sua opinião, se todas as orquestras brasileiras têm dificuldades na área de cordas, é porque o ensino no país está atrasado, devido à carência de professores. "Os famosos dão aula particular, não estão ensinando na escola", afirma ele. "Eu quis ser contratado, mas, uma vez que a universidade só admite professores com doutorado, não consegui, porque não tenho titulação. Acho que deveríamos seguir o exemplo dos Estados Unidos, onde em vez de habilitação se busca um perfil. Na área de música, neste momento, mais importante que o título é o nível musical", acrescenta.
A diretora do Instituto de Artes da Unesp, Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, faz algumas ressalvas às afirmações de Cruz. Ela lembra que a LDB de 1996 diz que as universidades públicas devem dar preferência a professores com título de doutor. Somente em casos excepcionais são admitidos docentes portadores apenas de diploma de graduação. Segundo a diretora, no que se refere à área de música, há menos professores titulados do que em outras áreas, mas isso não significa que grandes músicos sejam deixados de fora, pois esses podem inscrever-se em cursos de pós-graduação e assim conseguir o título. Não é tarefa impossível, e um considerável número de músicos competentes está nesse caminho.
Marisa Trench explica que a instituição universitária dedica-se não apenas ao ensino, mas ao tripé ensino/pesquisa/extensão, e por isso o docente titulado tem melhores condições de estimular a pesquisa entre os alunos do que aquele não afeito às regras da universidade. Quanto à afirmação de que chegam à universidade apenas iniciantes, ela rebate: "Só posso responder pela instituição que dirijo, mas acredito que outras universidades públicas concordarão comigo quando afirmo que os alunos se submetem a provas específicas e enfrentam forte concorrência na disputa de vagas, o que torna muito difícil a admissão de iniciantes".
Se é senso comum que as orquestras brasileiras, em geral, têm carência de bons instrumentistas de cordas, nas áreas de sopro e percussão, porém, não faltam talentos, originados, em sua maioria, nas bandas musicais, cuja tradição é forte no país.
Flores no asfalto
Uma experiência considerada bem-sucedida na área de formação de músicos é a da antiga Universidade Livre de Música atual CEM , criada há dez anos pelo governo do estado de São Paulo com a finalidade de oferecer cursos à população em geral, sem a exigência de diploma de segundo ou terceiro grau. O coordenador pedagógico dos cursos de música popular da entidade, o saxofonista, maestro e professor Roberto Sion, explica que a liberdade é a principal característica da escola, pois os alunos podem optar tanto por estudar a tradição da música erudita quanto a da popular. Para ele, um dos problemas do ensino brasileiro é o fato de os conservatórios, em sua maioria, ensinarem tradição musical do século 19, embora, atualmente, o mercado de trabalho abra mais espaço a composições contemporâneas. "Se uma escola une a tradição erudita à formação de música popular, o resultado é um profissional mais versátil", diz ele.
A carência na área do ensino musical nas escolas também vem suscitando o aparecimento de projetos alternativos de capacitação de professores. Carlos Kater, presidente da ONG Atravez, junto com sua mulher, Aude, desenvolve um trabalho de formação na área musical e de criatividade para educadores, principalmente os da rede pública de ensino da prefeitura. O projeto atende mais de 40 professores da região de Heliópolis (uma das maiores favelas de São Paulo), que atuam em escolas municipais de educação infantil e ensino fundamental, em creches e no programa de liberdade assistida. Segundo Kater, o objetivo é difundir o conhecimento musical entre pessoas que seguramente têm necessidade dele: os professores que trabalham nas periferias, regiões onde o acesso a esse tipo de informação é bastante difícil.
"Nos ambientes em que as famílias estão desestruturadas e onde há uma imensa precariedade de recursos, em geral as pessoas só têm acesso à música através da mídia, e na maioria dos casos encontram-se desenraizadas culturalmente", diz Kater. Para ele, são justamente essas pessoas que mais têm necessidade da música e de exercer a criatividade, como fatores que podem contribuir para a redução da violência, da baixa auto-estima, da marginalidade social e cultural.
Uma iniciativa importante, também com o objetivo de ampliar o universo dos benefícios culturais a segmentos da sociedade até então marginalizados, é o Projeto Guri, da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. O programa, dirigido a crianças e adolescentes de 8 a 18 anos, trabalha com núcleos de ensino musical que utilizam a metodologia do aprendizado coletivo de instrumentos de cordas e de sopro, convergindo para a formação de orquestras-escola. Iniciado em 1995 na Oficina Cultural Amácio Mazzaropi com a participação de 180 crianças, o projeto foi implantado no ano seguinte na Febem, com a formação de uma orquestra em que 300 crianças tiveram a oportunidade de conhecer e aprender música. Esse sucesso ampliou os horizontes, e hoje 8 mil crianças são atendidas em 36 pólos espalhados pelo estado.
Outro trabalho que merece destaque nessa área são os cursos regulares de iniciação musical do Sesc, com programas desenvolvidos nas unidades Consolação e Vila Mariana, em São Paulo, que oferecem cerca de 1,9 mil vagas a comerciários, dependentes e usuários de diversas faixas de idade. Andrea Nogueira, diretora do Centro de Música do Sesc Vila Mariana, explica que a proposta tem por base o ensino em grupo e não visa à formação profissional, mas à sensibilização musical, com a vantagem de colocar os instrumentos à disposição dos alunos.
Sinfonia de deficiências A Academia Brasileira de Música (ABM), entidade sediada no Rio de Janeiro, dirigida atualmente por Edino Krieger, fez no ano passado, com apoio do Ministério da Educação, um cadastramento das orquestras brasileiras em atividade e identificou 124 delas, sete na região norte, dez no nordeste, cinco no centro-oeste, 84 no sudeste e 18 no sul.
Uma pesquisa feita pela entidade com 66 orquestras apontou diversos problemas, como a dificuldade de acesso a partituras, falta de divulgação, escassez de recursos e, principalmente, deficiências na qualificação dos músicos, cuja formação acadêmica está concentrada nas capitais. Na região norte, só Belém oferece essa possibilidade. No nordeste, apenas Natal, João Pessoa, Recife e Salvador têm bacharelado em instrumento. Na região centro-oeste, somente Brasília e Goiânia dispõem de cursos de formação em nível superior de instrumentistas de orquestra. As regiões sudeste e sul são as únicas que, além de disponibilizar ensino musical em todas as capitais, com exceção de Florianópolis, também formam músicos em cidades do interior, como São Carlos (SP), Uberlândia (MG) e Santa Maria (RS).
A pesquisa da ABM serviu de subsídio para as discussões realizadas no 1º Fórum de Orquestras Brasileiras, realizado em Brasília em maio de 2001. Entre as conclusões do encontro, apresentadas ao ministro da Cultura, Francisco Weffort, está a inclusão obrigatória da disciplina Educação Musical nos níveis fundamental e médio do ensino.
Enquanto isso não acontece, a Abemúsica, entidade privada que representa os fabricantes de instrumentos musicais, decidiu investir R$ 400 mil na capacitação musical de professores de educação artística da primeira à quarta série do ensino fundamental da rede estadual da capital paulista. A finalidade dessa iniciativa, que não deverá onerar os cofres públicos e tem apoio das secretarias estaduais de Educação e de Cultura, é incrementar as vendas do setor, que caíram bastante desde que a música abandonou as salas de aula.