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A revolução de 32
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São Paulo comemora no próximo dia 9 de julho 70 anos da Revolução Constitucionalista de 1932 um movimento armado que teve duração de três meses e que tentou reunir forças de vários estados brasileiros para impedir a continuação do governo provisório de Getúlio Vargas, instaurado em 1930, exigindo eleições presidenciais, uma nova Constituição e o retorno imediato do país ao estado de direito.
Considerado o maior choque civil ocorrido na história do Brasil contemporâneo, esse episódio permanece envolto até hoje em brumas emocionais, intrigas políticas, ressentimentos e disputas ideológicas que dificultam seu entendimento. É vasta a bibliografia sobre o tema, mas em sua maior parte ela se ressente desses fatores de um lado temos uma documentação impregnada de romântica exaltação, vertida no estilo empolado e ingênuo da época, que pretende fazer ver no Movimento Constitucionalista apenas um episódio heróico, com ampla arregimentação popular; de outro, a niveladora, simplista e preconceituada crítica marxista, que o define taxativamente como "reacionário", "contra-revolucionário" e "separatista", como mera tentativa, frustrada, de se voltar à antiga política "do café-com-leite", que representava a hegemonia da oligarquia cafeeira e a alternância de São Paulo e Minas Gerais no poder central.
Somente nas duas últimas décadas é que vários historiadores, mais objetivos e distanciados como Boris Fausto, o brazilianist Stanley Hilton e Hernâni Donato, para citar somente três , puderam se situar de maneira imparcial diante do vasto material que se espalha por vários arquivos, tanto em São Paulo como em outros estados, e do qual uma parte importante (como a dos Arquivos do Exército) permaneceu durante muito tempo inacessível à pesquisa e conservada sob a rubrica "confidencial".
Em seu livro A Revolução de 30 (Brasiliense, 1989, 12ª ed.), Boris Fausto faz uma análise lúcida de Getúlio Vargas e uma avaliação do que realmente representaram tanto seu caráter como sua política ambígua. Desfaz o mito do "esquerdismo" ou "modernidade" do ditador e diz: "O Estado que emergiu da Revolução de 1930 manteve o papel fundamental de desorganizador político da classe operária, reprimindo duramente a vanguarda e suas organizações partidárias". Tanto que já em 1931 Vargas firma posição contra o comunismo e caça subversivos; um pouco depois, faz restrições à entrada de operários estrangeiros no país (declaradamente "passageiros da terceira classe dos navios"). Vai, enfim, moldando seu pensamento político em um reconhecido fascismo nacionalista que resultaria no Estado Novo e em 15 anos de ditadura.
Essa avaliação histórica torna-se absolutamente necessária a todos os que se proponham a compreender, com imparcialidade, o Movimento Constitucionalista de São Paulo.
Antecedentes históricos
A década de 1920 trouxera uma série de levantes militares e agitações populares em todo o país. Um profundo descontentamento se espalhava por segmentos da classe média urbana e pelos setores agrícolas não-cafeeiros e industriais, cuja presença no panorama econômico era prejudicada pela política elitista dos "barões do café". Esse espírito de rebeldia encontrava ecos até mesmo nos quartéis. Os governos sucessivos de Epitácio Pessoa, Artur Bernardes e Washington Luís, formalmente legais, na realidade assumiam atitudes discricionárias e ditatoriais, exerciam uma forte repressão sobre o povo e se mantinham no poder somente graças a um sistema eleitoral corrompido, com resultados manipulados dominava o cenário político do país o arcaico Partido Republicano, com siglas pouco variáveis de estado para estado (em São Paulo, Partido Republicano Paulista PRP) , que favoreciam os "coronéis", por meio do voto de cabresto em eleições em que até os mortos votavam.
A problemática social era tida como "uma questão de pata de cavalo", pois as manifestações populares eram dissolvidas pela cavalaria. A criação da Lei Celerada por Washington Luís, em 1927, restringiu inclusive a liberdade de imprensa e o direito de reunião, dando também poderes maiores ao governo para reprimir as greves operárias, causadas pelo elevado nível de desemprego da população.
O "tenentismo", surgido no início da década de 20, congregava jovens oficiais descontentes com a rígida hierarquia do exército e com a falta de condições estáveis de vida no Brasil. Sua reivindicação principal era o voto secreto e a moralização eleitoral, mas não tinham um ideário político consistente. De um romantismo acentuado, o movimento incluía características de esquerda, sem radicalizar na época, o comunismo de modelo soviético começava a se organizar no país, com a fundação do Partido Comunista, em 1922. Participante do "tenentismo", vinha do Rio Grande do Sul o tenente Luís Carlos Prestes no momento ainda completamente ignorante da ideologia marxista. Participaram os "tenentes" do levante dos Dezoito do Forte de Copacabana, em 1922, e da Revolução de 1924, movimento armado liderado em São Paulo pelo general Isidoro Dias Lopes e logo reprimido pelas forças federais.
Como conseqüência de 1924, os oficiais rebeldes, inconformados com a derrota, organizaram a Coluna Prestes, sob o comando de Miguel Costa, e realizaram uma marcha de mais de 24 mil quilômetros, durante dois anos, pelo interior do país, numa tentativa de doutrinação política da população.
Em São Paulo, já havia descontentamento político acentuado contra a hegemonia perrepista, mesmo nos setores empresariais. Em 1926 era fundado o Partido Democrático (PD), com o apoio de intelectuais e artistas. Em 1928, o aristocrático conselheiro Antônio Prado saúda Luís Carlos Prestes pelo seu aniversário e direciona seu partido para a coalizão progressista a Aliança Liberal, fundada em 1929 pelos estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, teria o apoio dos democratas paulistas e apresentaria como candidato à presidência da República Getúlio Vargas, contra o candidato perrepista, Júlio Prestes, que ocupava o cargo de governador de São Paulo.
O crash da Bolsa de Nova York em 1929, com a conseqüente desvalorização do café nosso principal produto de exportação , precipitou uma grande crise político-econômica. O clima violento em que se processavam os preparativos da eleição de 1930 causaria assassinatos políticos, ódios e rancores, e acentuaria o "propósito de mudança a todo custo". E assim, quando a eleição de 1º de março de 1930 deu a vitória a Júlio Prestes, os aliancistas reclamaram de fraude eleitoral e decidiram-se pelas armas. O movimento deflagrado por Vargas no Rio Grande do Sul em 3 de outubro daquele ano visava diretamente à eliminação dos políticos perrepistas, à debilitação dos exércitos estaduais (a Força Pública de São Paulo era a segunda maior corporação militar da América do Sul, dispondo de cavalaria, artilharia e aviação), e atingiu seu ápice com a ocupação da capital paulista. Aclamado pelos partidários da Aliança Liberal em São Paulo, acompanhado ao Palácio dos Campos Elísios por uma multidão delirante, Getúlio Vargas, ali chegado, fez questão de tirar um retrato vestido a caráter bombachas, esporas, lenço no pescoço , estirado em um canapé Luís XV. Contrariando a fúria dos tenentes que o acompanhavam e que insistiam em partir imediatamente para a conquista do Rio de Janeiro, Vargas preferiu limitar-se a esperar tranqüilamente que o poder federal lhe fosse entregue pela Junta Pacificadora, formada pelos generais Tasso Fragoso e Mena Barreto e pelo almirante Isaías de Noronha, a qual no dia 24 de outubro depusera o presidente Washington Luís, obrigando-o ao exílio.
A humilhação dos paulistas
Nos dois anos seguintes dizem os historiadores , o país se viu mais agitado do que nunca, de norte a sul, pela incerteza política e pelas circunstâncias econômicas. Entregue por Vargas a um interventor militar, o coronel João Alberto, o estado de São Paulo fermentou um amargo ressentimento e sofreu com a instabilidade decorrente das disputas de poder entre os próprios "tenentes" (então já coronéis e generais), principalmente entre João Alberto e Miguel Costa.
Durante a "ocupação", São Paulo vivia sob um rígido controle policial censura à imprensa, proibição de manifestações populares, vigilância sobre clubes e sociedades. Edgar Baptista Pereira descreve o "martírio de São Paulo", em seu livro Diário da Capela, como "um espezinhamento sistemático, tratamento bárbaro e desumano" que agitaria todo o território paulista e que seria a fagulha capaz de atear fogo em todos os lares: "Forma-se uma atmosfera eletrizada, cruzada de relâmpagos, pronta a deflagrar em temporal e ciclone, ao primeiro abalo que lhe rompa o equilíbrio. E veio a revolução como um fenômeno sísmico".
O historiador Hernâni Donato, autor de A Revolução de 32 (Círculo do Livro/Abril, São Paulo, 1982), descreve a crítica condição de São Paulo: "Não há, pois, satisfeitos no São Paulo vergado pela crise econômica, a desolação no campo, a agitação proletária nas cidades industriais, a ocupação militar e administrativa, os atritos nas ruas com os grupos da Legião Revolucionária e os provocadores do Partido Popular Paulista" (órgãos criados por Vargas expressamente para aliciar partidários ao seu governo). Tumultos de rua sucedem-se desde o final de 1930, reprimidos duramente pela polícia, que prende até mesmo um líder do PD, Vicente Rao que fora justamente o idealizador do projeto de desmonte do perrepismo.
O Partido Democrático, que colaborara com João Alberto, rompe com ele, denuncia o governo provisório de Vargas e renuncia a todos os cargos que preenchera. Durante o ano de 1931 o descontentamento aumentava no país todo, pois Getúlio já mostrava intenção de prorrogar ao máximo sua provisoriedade. Aos que lhe reclamavam as promessas feitas, de eleições e retorno ao estado constitucional, respondia que "antes da constitucionalização, a capina do terreno, das ervas daninhas que o esterilizam". E referia-se a seus opositores como "carpideiras, saudosistas das delícias fáceis do poder ou incorrigíveis doutrinários alheios às realidades nacionais".
Em São Paulo, um primeiro levante, o do 6º Batalhão de Infantaria do Cambuci, é abortado em 28 de abril de 1931. No Rio Grande do Sul, o líder político Borges de Medeiros inutilmente alerta Vargas sobre os perigos da continuidade discricionária, enquanto os partidos Libertador e Republicano unem-se para reclamar a volta ao estado de direito. No Rio de Janeiro, a Ordem dos Advogados e a Sociedade de Medicina somam suas vozes ao protesto. Em São Paulo, em 28 de maio de 1931, funda-se a Liga da Defesa Paulista, com a finalidade de "...propugnar pelos interesses paulistas e reconquistar seus direitos, afastados pelos acontecimentos políticos posteriores à Revolução de Outubro" (de 1930).
Um ambiente de conspiração e rebeldia une as capitais, com nítida exacerbação de ânimos das facções opostas: o tenentismo getulista, as forças democráticas. As pressões obrigam Getúlio a demitir seu interventor predileto, o homem que se julgara capaz de dominar ferreamente São Paulo João Alberto. Há uma prontidão do exército no Rio de Janeiro, no nordeste, no Paraná e no Rio Grande do Sul, para impor pelas armas a continuidade do militar no governo paulista.
Contudo, entre os próprios "tenentes" havia dissidência, e assim Miguel Costa se opôs à intervenção armada. Além disso, firmou posição contrária à candidatura do civil Plínio Barreto ao cargo de governador de São Paulo. Diz Hernâni Donato, na obra citada: "Miguel Costa não só desaprovou [a candidatura de Barreto] como tumultuou a vida paulistana, mostrando ostensivamente ser o senhor de São Paulo e o único capaz de indicar o novo interventor que, necessariamente, deveria ser obediente a seus quereres. Correrias, espancamentos, tumultos, ameaça de dinamitação da Faculdade de Direito, reduto do barretismo". Desistindo da investidura, Plínio Barreto escreve no dia 23 de julho de 1931 a Osvaldo Aranha, explicando seu gesto reconhecia que o apoio do governo federal à sua candidatura representaria a deflagração da guerra civil em São Paulo, e dizia: "Se ela for inevitável, outros que lhe assumam a responsabilidade".
Seguem-se, nos Campos Elísios, dois interventores de curtíssima duração: primeiro, o civil Laudo de Camargo, ministro do Tribunal de Justiça (de 25 de julho a 13 de novembro de 1931), que se demite por julgar-se desmoralizado por Vargas. Em seguida, os "tenentes", vitoriosos, nomeiam um dos seus para interventor, o coronel Manuel Rabelo, comandante interino da Região Militar. O descontentamento crescente dos paulistas clama ao menos por um interventor "paulista e civil". Apesar da violência cada vez mais patente da ocupação militar, São Paulo não se dá por vencido, e os grandes partidos rivais, o PRP e o PD, aliam-se para lutar pelas eleições e pela Constituição. E assim inicia-se o ano de 1932.
Preparativos para a guerra
Armando Brussolo era repórter de "A Gazeta" em 1932, e em seu livro Tudo pelo Brasil nos dá o acompanhamento passo a passo da revolução, na capital paulista e nas próprias trincheiras, a partir do dia oficial do levante, 9 de julho de 1932 "o dia em que a revolução estourou" , até o armistício, em 2 de outubro de 1932 ("o dia em que São Paulo foi traído").
O período de ação militar, curtíssimo, revela uma intensidade nenhuma outra vez igualada na história pátria. Somente explicável pelo estado de guerra civil que vinha sendo mantido desde fins de 1930 em todo o estado. A "Guerra de São Paulo" compreende, portanto, um período de dois anos. Ou até mais: o rescaldo do Movimento Constitucionalista de 32 permaneceria na memória do povo paulista.
O ano de 1932 inaugura-se com a escalada do sentimento de rebeldia. No dia 17 de janeiro o presidente do Partido Democrático rompe com o governo federal e, juntamente com o rival Partido Republicano Paulista, integra a Frente Única, que já estava em campanha contra o governo provisório. Em um gigantesco comício na Praça da Sé no dia do aniversário de São Paulo, 25 de janeiro, os oradores já falam em luta armada. Um mês mais tarde, o orador mais veemente e violento da campanha, Ibrahim Nobre, em outro grande comício chama os tenentes de "eunucos de Vargas". À eloqüência somam-se, nos bastidores, a preparação militar, a tessitura das alianças. Vargas, num gesto de conciliação, permite que um interventor "paulista e civil", como era exigido, seja dado ao estado. Pedro de Toledo, de 73 anos, diplomata, ex-deputado e ex-ministro da Agricultura, assume em 7 de março. Poucos meses mais tarde, ao renunciar ao cargo de interventor, de que fora investido por Vargas, e assumir o de governador instado pelos rebeldes ele se transformaria em uma das grandes personagens da revolução.
É exigido do novo "governador" que a posse de seu secretariado o primeiro aceito por unanimidade pelos paulistas seja marcada para uma data já histórica na crônica da cidade 9 de julho, e em local também histórico, isto é, no Pátio do Colégio, onde em 9 de julho de 1562 um núcleo de moradores, liderados pelos jesuítas, rechaçara o maior ataque de índios hostis à recente povoação. Vê-se, portanto, que havia por trás da agitação revolucionária um esquema consciente de fazer coincidir as duas datas e com isso reforçar o sentido da epopéia paulista. A história, porém, corria mais depressa do que os planos e precipitava a ação rebelde os dias 22, 23 e 24 de maio de 1932 são realmente os mais importantes do movimento. Marcam, com o primeiro sangue derramado, a ouverture da revolução reconhecido como tal, o dia 23 teria sido, no dizer de Hernâni Donato, "o dia da cólera dos justos".
MMDC
Quando o recém-empossado ministro da Fazenda, o gaúcho Osvaldo Aranha que substituíra o único paulista do ministério de Vargas, José Maria Whitaker , programa uma vinda a São Paulo, em 22 de maio, expressamente para interferir na formação do secretariado paulista de Pedro de Toledo, a população arma um protesto gigantesco, espalhado por toda a cidade. No centro, grupos vociferantes ovacionam oradores que pedem armas para o povo e a derrubada do governo provisório. No bairro da Luz, diante do Quartel-General da Força Pública, a multidão está reunida; pelo gradil, um capitão assegura-a do apoio da tropa. Mas enquanto o comandante substituto da Força hesita e acaba recebendo uma comissão de políticos, de repente na Avenida Tiradentes rompe o esquadrão de cavalaria da mesma Força Pública, arremetendo contra a multidão. Há tiros, correria, e no chão está caído o estudante Lima Neto a primeira vítima da campanha.
A arregimentação faz-se, acelerada, de ambos os lados, o povo continua nas ruas, madrugada adentro. Pedro de Toledo define-se pela revolução. Às 20 horas do dia 23 de maio as estações de rádio divulgam para o país o novo secretariado escolhido pelo governo paulista e um manifesto, lido por Francisco Morato, de repúdio ao tenentismo e ao ditador. Diz Hernâni Donato: "A noite planaltina cresceu em clima de vitória. O homem-multidão sente-se, outra vez, senhor do seu destino, não reconhece aos lados perrepistas ou democráticos, mas apenas frentistas e paulistas, camaradas na luta".
Na euforia, a multidão decide atacar a sede do Partido Popular Paulista entidade governista e encontra uma reação armada, fuzis, revólveres, submetralhadoras. O tiroteio se prolonga até a madrugada do dia 24 de maio. No chão, na esquina da Praça da República com a Rua Barão de Itapetininga, estão os cadáveres de quatro jovens: Miragaia, Martins, Dráusio (de apenas 14 anos) e Camargo.
Horas depois, as iniciais desses primeiros mortos formariam a sigla MMDC com que se tornou conhecida uma organização secreta, uma das maiores forças da revolução. Seus ativistas conseguiram criar em toda a cidade pelotões de guerrilha que, ativados por senhas altamente sigilosas, no momento decisivo estariam prontos para ação fulminante, ocupando pontos estratégicos. Iniciada a luta em 9 de julho, o MMDC foi oficializado, ligado ao gabinete do secretário da Justiça, e espalhou-se por todo o estado, com a missão de manter a segurança nas cidades.
A traição
Para tantos preparativos, arregimentação tão poderosa, a campanha armada (a revolução propriamente dita) constituiria fracasso sem precedentes. "Estourada" oficialmente no dia 9 de julho, a verdade é que estaria perdida poucos dias depois. Diz o historiador Mário Donato, autor de O País dos Paulistas: "O Movimento Constitucionalista foi uma guerra de posições até o instante em que, dando tempo aos governistas de se refazerem da surpresa, estes deslocaram seus efetivos em direção ao território paulista. Daí por diante, com raros êxitos, nossas tropas sempre refluíram em direção à capital, não resistindo ao avanço de tropas mais numerosas, mais treinadas, mais bem armadas e municiadas".
O próprio general Góis Monteiro comandante das tropas governistas afirmou mais tarde que se as tropas paulistas, em vez de manterem suas posições, tivessem aproveitado o impulso inicial para desembarcar no Rio de Janeiro, o governo de Getúlio teria caído. O marechal Cordeiro de Farias também diria, em suas memórias: "Até hoje estou convencido de que o Rio não caiu porque os paulistas foram tímidos, pouco agressivos em termos de concepção militar. Não tiveram espírito revolucionário".
Mas se os comandantes paulistas de 32 não souberam tirar partido estratégico do elemento "surpresa", inerente a todo movimento armado que quer triunfar como acontecera com os gaúchos, em 1930 , foi porque, segundo os especialistas do histórico movimento, os aliados com os quais contavam na Frente Única, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, os haviam traído. A aliança militar, que se julgava sólida, não durou na verdade um dia. Os governos de Olegário Maciel, em Minas Gerais, e Flores da Cunha, no Rio Grande do Sul, mobilizaram forças não pró mas contra os constitucionalistas.
E São Paulo, sozinho, descobriu que de nada valeriam seus 25 mil voluntários animados e idealistas, sem armas e munição. Os dois meses de luta que se seguiram foram pródigos em criatividade e heroísmo. A eloqüência dos tribunos, as histórias guardadas nas sagas familiares paulistas em cujas casas as sucessivas gerações preservaram as relíquias constitucionalistas, capacetes, granadas e cartuchos, e esconderam a "bandeira das 13 listas" cantada pelo poeta Guilherme de Almeida e queimada e proibida por Getúlio formariam acervo precioso de que hoje ainda bebem historiadores.
Fábricas improvisadas de munição, nas quais trabalhariam, participantes, mesmo os membros do operariado que já haviam sido seduzidos pelo incipiente populismo de Getúlio Vargas; comitês de senhoras que tomavam parte no esforço bélico, costurando fardamentos e agasalhos para os voluntários, trabalhando como enfermeiras nos hospitais e nas trincheiras; o apoio da Igreja; a grande campanha do "ouro para o bem de São Paulo". E o martírio, como sempre acontece, da população civil, anônima, desinformada, colhida nas circunstâncias históricas principalmente nos vários pontos de luta alastrados pelo interior do estado.
Nos últimos dias de setembro de 1932, enquanto os comandantes trocavam consultas e protocolos de um possível armistício, as tropas decidiam em vários pontos prosseguir a luta. Inconformados, oficiais e praças fogem para tentar continuar a campanha em Mato Grosso, mas aos poucos, nos primeiros dias de outubro, as forças revolucionárias se desbaratam. No Palácio dos Campos Elísios, no dia 2 o governador Pedro de Toledo despede o secretariado: "Vamos para casa esperar a prisão", e num manifesto ao povo informa-o da derrota.
A ditadura reinstala-se na capital paulista. Vargas ameniza seu poderio, em 1933
entrega o governo do estado de São Paulo a um civil paulista, Armando de Sales Oliveira,
e em 1934 simula se render ao espírito constitucionalista. Mas a Constituição que
promulga dura, na expressão de João Camilo de Oliveira Torres, "o tempo de uma
rósea manhã " logo mais, a excepcionalidade prevaleceria e o Estado Novo se
instalaria, sem disfarces.
Mas essa já é outra história.
Homenagem aos heróis Quem circula pela movimentadíssima Avenida 23 de Maio, na capital paulista, não pode deixar de ver, fincado nos jardins do Parque Ibirapuera, um grande obelisco, um dos símbolos mais marcantes da cidade. É o Monumento Mausoléu ao Soldado Constitucionalista, concebido por Galileo Emendabile e erguido ali em homenagem aos mortos no movimento de 1932 os mais conhecidos, lembrados pelas iniciais MMDC, perderam a vida na noite de 23 de maio.
Entre soldados regulares e voluntários, os combatentes paulistas somaram cerca de 35 mil, que se renderam dia 2 de outubro, após três meses de luta. Segundo o historiador Jeziel de Paulo, o número oficial de mortes em combate atingiu 634, embora ele acredite que tenha sido maior. Somente na Santa Casa de São Paulo, diz ele, deram entrada 1.273 soldados feridos (do lado getulista, estima-se que as baixas foram cerca de 200).
De acordo com Hernâni Donato, o número oficial é ligeiramente diferente: 601 mortos, lembrados no monumento, onde além do obelisco uma cripta-igreja de 1,4 mil metros quadrados, sem bancos, convida os visitantes a reverenciarem, de pé, os mártires da revolução. As inscrições no local têm a assinatura do poeta Guilherme de Almeida.
Testemunha ocular
Rareiam hoje os sobreviventes da "Guerra de São Paulo" de 1932. Mas é na sua memória, na expressividade das coisas por eles contadas, que os historiadores ainda vão buscar vestígios daquele emocionalismo que empolgou o Movimento Constitucionalista. Um deles é Rui Coutinho, um escrivão de polícia aposentado que, prestes a completar 90 anos (no próximo dia 4 de julho), divide hoje seu tempo entre leituras, conversas com amigos e passeios diários pelo Parque da Aclimação.
Rui Coutinho é paulista de Taquaritinga. Chegou à cidade de São Paulo aos 12 anos, vindo de mudança com o resto da família, e desembarcou na Estação da Luz por coincidência em uma data que passaria à história: 5 de julho de 1924, dia em que irrompeu a revolução chefiada pelo general Isidoro Dias Lopes contra o governo Artur Bernardes. Ele recorda o caos absoluto da capital naquele dia, a população seguindo a pé, sob bombardeio, a confusão, a completa falta de transportes públicos, a escassez de víveres no menino obrigado a caminhar da Estação da Luz ao Brás, o primeiro impacto da confusão urbana, do desespero de uma população colhida no meio de acontecimentos políticos que não entendia e dos quais não participava.
Mas suas recordações de 1932 são bem diferentes. O jovem de 20 anos trabalhava então no gabinete do secretário da Justiça, Tirso Martins seu padrinho, para ser exato. Alistou-se no Batalhão José Bonifácio de Andrada e Silva, subordinado à própria Secretaria da Justiça e encarregado de dar apoio logístico às operações do front. Colocado diretamente dentro do cenário político, o jovem Rui conheceu assim, bem de perto, as principais figuras históricas da revolução. Acompanhou todos os lances, ouviu intrigas de bastidores, deixou-se empolgar como a maioria da população paulistana pela oratória vibrante do grande tribuno Ibrahim Nobre, gritou slogans nos comícios, abalou-se com o morticínio de maio de 1932, viveu intensamente aqueles dias históricos. E, naturalmente, desiludiu-se com o fim abrupto, incompreensível, da revolução.
Mas hoje, 70 anos mais tarde, faz questão de dizer, quando interrogado sobre o possível caráter "separatista" do movimento: "Absolutamente. Isso foi uma calúnia, uma distorção. Não se pensava em separar São Paulo do resto do Brasil. Basta lembrar uma frase de Tirso Martins, ao partir para o exílio: Aqui, como alhures, com o Brasil no coração e São Paulo no pensamento ".