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Matérias da edição

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Antonio G. F. Ferreira

Foto: Antonio Geraldo
Foto: Antonio Geraldo

sopro

 

(…) la man che ubbidisce all’intelletto

Michelangelo Buonarroti¹

 

¹Tradução em português:

(...) a mão que obedece ao intelecto.

 

a chuva caiu forte, uma ventania furibunda, destelhou várias casas, derrubou metade da mangueira do vizinho, coitado, um furdunço de galhos, cacos e folhas, remoinhados em todas as direções, incluído meu quintal, por infelicidade,             um pecado, porque as mangas espalhadas verdes na terra,            haja compotas e doces agora...,                sim,      deu medo,

                  dona quinquinha foi categórica,

                                              uma tempestade dos infernos, os demônios em briga braba, saídos em horda pelo mundo, arruaceiros, se não mesmo em baile enfezado, botando pra quebrar, santa bárbara nos protegesse daquela dança legionária...,

             lá na vila progresso, o granizo fez uma catapora de estragos, cicatrizando fundo, com gélidas lapadas, a lataria infensa de carros, motos e caminhões, um grosso prejuízo, ...ou a minha sorte, como espalharam os linguarudos de sempre,              

                                              ri deles todos, sem deixar de esconder a metade dos dentes para uma óbvia circunstância, porque a hipocrisia profissional deve ter algum sensato limite, se não quiser afamar a concorrência..., 

        mas nem tudo foram lucros futuros,           em casa, tive de colocar algumas bacias em goteiras esquecidas, refeitas manchas na memória do assoalho,

paciência,         depois passo uma lixa fina, 400,         graxa de sapato,         elas somem, ou quase somem, vá lá, porque impressas ainda mais fundas na retina, sem possíveis funilarias,

            ...as desgraças são assim, vistas e revistas porque encobertas, e, por isso mesmo, nas lembranças, a capa sobressaindo os contornos do escuso, então salientados,

                       dois dias de sol, subo no telhado, pra ver, troco umas telhas,        e pronto,

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                                                            limpava o quintal quando dei com ele, num canto, atrás do vaso de antúrios, me espiando,                 era um galho bonito, que ficou em pé, feito bicho, levantando as patas num mijamijando sem fim,

            levei um susto, na hora,              depois, achei o bichinho até que bonito...,

                                     sim, as recordações é que derrubaram esse animalejo das árvores, só pode, despencado em pedradas frias de um céu granizado, quebrando também o galho dos funileiros endividados, não posso mentir,                        ...esse falso dolorido derretendo-se com muito gosto nas mãos da molecada, antes mesmo das minhas, num prenúncio bom,

disseram que os meninos se divertiram bastante, chupando o gelo,          ...teria gosto de limonada, não sei se é verdade,

                ...enfim, o meu bichinho ali, me encarando,               parei até de varrer,

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Ilustrações: Paulo Sayeg
 

tive um cachorro, pitágoras, que morreu faz três anos,     ...ou quatro?,      parecia gente,  aquele vira-lata, falava comigo, entendia tudo, quando não antecipava os pensamentos, respondendo antes das perguntas, com os olhos,          o abano do rabo,            os latidos, sua correta linguagem,

               a gente não devia chorar por besteiras, pelos resultados cientes, antecipando as questões adivinhadas, mas...,              fiquei tão triste que disse pra mim que nunca mais teria outro bicho, que a gente morria um pedaço grande, pesado, quando o animalzinho ia embora, bastando pra isso a vida, poxa, que nos arranca os nacos da alegria, sem avisos, sempre e aos poucos, o que é pior, porque dos supetões a gente se livra como eles mesmos se derrubam, em espatifados repentes, e fim de papo, tal as pedras no capô dos carros, é ou não é?,

                                                    pitágoras ficou doentinho, arrastou-se, morreu miando, agarrado talvez a outras possibilidades de ser e permanecer, quem sabe?,             chorei, sim, não me envergonho de confessar,

                     enterrei-o no quintal, um paralelepípedo de triste lápide, que depois retirei, porque ficava jururu o dia inteiro, toda vez que via a pedra, imóvel na morte, sentada sobre as alegrias, assim me esperasse...,

                                                        estas nuvens escuras, rojando-se pelo céu baixo,

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uma coisa minha avó me fez lhe prometer, a única,      ...ou antepenúltima, pra ser exato,

   que lavasse os túmulos da família, todos eles, em agosto, no mais tardar em setembro, pra não parecer que fosse mera tarefa, por espalhafatosa obrigação do dia de finados, o que acabaria sendo um lustroso desrespeito,                ...e ai de mim se me aproximasse do túmulo do meu ex-avô, como a ele se referia, que o homem não era mais da família, por escolha própria, dele, e que só não pedia o contrário, que eu despejasse em sua campa um balde de lama, porque a imundície por dentro da cova era maior, e, ainda, por mais sujo fosse o líquido, no fundo, no fundo estaria, isso sim, limpando a sempre maculada imagem daquele safado sem-vergonha...,

                                                     de todo modo, mesmo sem polir o bronze do seu nome, nunca deixei de ir ao cemitério e passar por ele uns minutinhos, que, ao menos, soube seguir o peito, não obstante o escândalo, e ser feliz, como sempre me disse,

    falava isso pra mim não por dispensável desculpa, mas lição de velada sinceridade ‒ o que hoje

reconheço ‒, toda vez que nos encontrávamos, escondidos da parentalha, que nunca o perdoou, embora recebessem, com fingido malgrado,

o dinheiro que também nunca nos deixou faltar,

e não apenas pingado, o chuvisco de uma obrigação, mas entornado para além da capacidade de nossas tantas e medidas precisões, porque a nova família, lá dele, com as posses nunca sonhadas por ele mesmo, amontoadas, e, por isso, desnecessárias para si, em si mesmo, apesar de tudo que se disse de uma interesseira conduta, no que descreio,

                                  ...e, ainda que verdade, vá lá, o coração aperta o passo na correria, fato que não seria estranho aos sentidos da paixão, empurrada ladeira abaixo do mundo, no mais das vezes, sem os corrimãos, que é que tem?,

 

                            o diogo via nesse desprendimento uma continuada confissão de culpa, pelo que reproduzia o rumoroso caso de amor somente para garantir o eco dos cobres, anos e anos depois, como lhe disse certa vez, indignado com as cabeludas excrescências que passou a inventar a respeito do romance antigo do nosso avô, falatório que se fazia presente, afinal, o tempo inteiro, nesses relambidos e cultivados ressentimentos,

               meu irmão sempre foi meio filho da…             inteireza que não lhe reconheço apenas por ônus da consanguinidade,

enfim, pensando no assunto, hoje,    ...há túmulos cujo epitáfio é uma infindável arenga, em distintos monólogos ouvidos segundo o deturpável entendimento do indivíduo que os visita, mal e mal de passagem, uma vez por ano, no dia de finados, vovó que me perdoe,

                      bem, com a vida não é diferente, é?, 

                                           escutamos com as nossas orelhas sujas na caliça dos rebocos,

muita inveja deles todos, sei disso, já que montei a minha oficina com a ajuda de vovô, que gostava mesmo de mim,

                                                    minha avó está velhinha, mas a cabeça afiada,

                       acho que se fincou no passado e foi ficando,                     falam, inclusive, que o seu passatempo é amolar quem estiver por perto,       ...maledicências,

a longevidade pode ser uma teimosia, quando alguém bate os pés com força, anteontem, por algum resumitivo fato, de alegrias ou infelicidades, tanto faz, prendendo-se nele, então, esquecido de branquejar os cabelos, e aí...,      

                                                             os infortúnios também nos tocam adiante. (...)

 

 

ANTONIO GERALDO FIGUEIREDO FERREIRA é paulista, autor do romance as visitas que hoje estamos (2012) e da coletânea de poemas eu, morto (2020), ambos editados pela Iluminuras. Entre outros livros, publicou o infantil o amor pega feito um bocejo, pela Companhia das Letrinhas; o de poemas peixe e míngua, pela Nankin; e o romance siameses, pela Kotter, em dois volumes (com apoio do programa Rumos Itaú Cultural, 2015-2016). Um excerto do conto inédito sopro, reproduzido nesta seção, fará parte do livro um treminhão na banguela cruzando sem freios o fusquinha da vida, ainda sem previsão de lançamento.