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Uma por todas
PROFESSORA, CRÍTICA LITERÁRIA E ENSAÍSTA
HELOÍSA BUARQUE DE HOLLANDA COMPARTILHA
A ARTE DE AGREGAR GERAÇÕES EM TORNO
DO FEMINISMO E DA DIVERSIDADE CULTURAL
Nascida em Ribeirão Preto, no dia 26 de julho de 1939, Heloísa Buarque de Hollanda carrega consigo a capacidade de observar e integrar diferentes protagonistas da sociedade. Estudiosa e autora de livros sobre o feminismo, a questão racial e a cultura da periferia, a professora emérita de teoria crítica da cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ainda coordena, no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da instituição, o projeto Universidade das Quebradas e o Fórum Mulher. Ensaísta, publicou livros seminais como 26 Poetas Hoje (1976), Cultura e Participação nos Anos 60 (1982) e, mais recentemente, quatro volumes da coleção Pensamento Feminista Hoje (Bazar do Tempo, 2019-2020). Curiosa e incansável, atenta à diversidade cultural e social brasileira, aos 82 anos a pesquisadora aposta na arte e nos saberes da periferia, observa os avanços do movimento feminista no país, graças ao potencial de difusão e conexão da internet, e nota que os homens também estão se movimentando contra o modus operandi patriarcal.
ANTES DO FEMINISMO
Sempre fui feminista. Quer dizer, sempre não, desde os anos 1980. Engraçado que nos anos 1960 eu militava pela questão racial e subestimava o feminismo, até fazer meu pós-doutorado nos Estados Unidos. A distância, entendi o peso do feminismo. Depois dos anos 1980, quando fui para Columbia [fez pós-doutorado em Sociologia da Cultura pela Universidade Columbia, em Nova York], assisti à chegada do pensamento feminista nos EUA e na Europa. Era um feminismo diferente, que interpelava as epistemologias ocidentais e tinha a audácia de falar mal do Freud [1856-1939, médico neurologista e psiquiatra austríaco, criador da psicanálise], porque ele era falocêntrico, e do Marx [1818-1883, filósofo e sociólogo alemão], porque era machista. Enfim, [essa nova corrente de pensamento] pegava todas as narrativas-mestras, pelas quais a gente se guiava e as arrasava. Esse primeiro momento foi muito radical, mas de uma alegria absurda, tanto que me enganchei no campo do pensamento feminista e não parei até hoje. Trata-se de uma ótica pela qual você pode ver o capitalismo, a literatura, o mundo. É muito interessante e sutil. Você coloca essa lente [do feminismo] no olho e não a tira mais. Foi assim que me tornei feminista. Quando voltei para o Rio de Janeiro, depois dessa bolsa lá fora, quis montar um centro de estudos feministas, mas não deixaram. No conselho da Escola de Comunicação [da UFRJ], me disseram que aquilo não fazia sentido. Era assim em 1980, para você ver como a coisa mudou. Passei 40 anos tentando virar a universidade do avesso com meu olhar feminista.
SUBI O MORRO
Quando chegaram os anos 1990, me apaixonei por outra coisa. Passamos por episódios violentos, como a chacina da Candelária, entre outros. Foi nesse momento que os intelectuais foram até as favelas: criou-se o Viva Rio [empresa social que promove a inclusão social e a cultura de paz], o Zuenir Ventura, a Regina Casé, o Waly Salomão [1943-2003, poeta e produtor cultural baiano], o Caetano Veloso e outros artistas subiram o morro. Eu subi também e me apaixonei pela cultura da periferia. Em 1990, porém, me desconectei um pouco do feminismo. Conversava com minhas colegas, que diziam que o feminismo tinha acabado e que aquela geração havia decretado o pós-feminismo. Nessa época, houve um declínio da luta feminista, dos estudos feministas, e a gente achou que tudo que tínhamos feito teria sido em vão e que não tínhamos deixado legado algum.
DE VOLTA ÀS RUAS
Até que, em 2015, o deputado Eduardo Cunha [então presidente da Câmara dos Deputados] resolveu mexer na legislação que permitia o aborto em caso de estupro [ele propôs o PL 5069/2013]. Cunha queria tirar essa permissão, e milhares de mulheres foram às ruas. Era uma quantidade imensa de jovens com força e gana. Mulheres que saíram das marchas de 2013, que trouxeram uma ideia de revolta diferente daquelas organizadas nos anos 1960, pelo uso intenso da internet, e que conseguiram mobilizar milhares de pessoas. Essas mulheres saíram com o corpo nu escrito: “Não é não” e “Meu corpo, minhas regras”. Foi incrível! Fiquei muito curiosa com esse movimento e deixei a periferia quietinha um pouco, para me dedicar a reuniões, eventos, blogues, sites e hashtags feministas.
ENCONTRO DE GERAÇÕES
Nessa época, a editora Companhia das Letras, que sabia que eu estava estudando e falando sobre o feminismo, me pediu um livro. Explosão Feminista (2018) tem 500 páginas. Chamei jovens mulheres que me ajudaram no trabalho de campo, porque elas traziam as questões do ponto de vista delas. Foi um livro muito difícil de fazer, mas muito gostoso, porque escrevi com mulheres que podiam ser minhas netas. Foi uma relação linda porque elas me diziam: “Você não está entendendo nada”. Cada capítulo foi feito a muitas mãos, e esse é o tom do trabalho. Foi muito importante para mim porque entendi o que estava acontecendo, e elas ganharam certa visibilidade, já que o livro foi para as faculdades, que legitimam e chamam a atenção. Fiz esse livro agregando a cultura aos movimentos das ruas e da internet. A diferença dessa geração para a minha é justamente a vantagem da internet, [pois assim] esse novo feminismo foi ouvido. Os homens ouviram. No meu, não. Tampouco teve repercussão pública [naquela época], apesar da ressonância política e acadêmica.
FRUTOS DE ESTUDOS
Nesse livrão (Explosão Feminista, 2018), que falava de poesia, teatro, música e cinema, também incorporei o transfeminismo, o feminismo indígena, o feminismo negro, o feminismo evangélico – que é fascinante – e o feminismo asiático. Cada capítulo trata de um deles. Ao fazer esse livro, percebi que essas meninas de hoje tinham força, eram proativas, mas não tinham repertório. Apaixonada por elas, como qualquer avó, escrevi os quatro volumes do Pensamento Feminista Hoje (Bazar do Tempo, 2019-2020) para elas, com quem compartilho o que estudei. No primeiro volume, Conceitos Fundamentais, reuni todas as feministas básicas que mudaram a trajetória desse pensamento e vi que nele não havia brasileiras. Como assim? Aí fiz um volume só de brasileiras, chamado Pensamento Feminista Brasileiro: Formação e Contexto. É o volume de que eu mais gosto, porque essas mulheres não tiveram a ressonância que mereciam. Enquanto isso, começou uma onda gigantesca de estudos pós-coloniais, que reenquadram a questão racial e mostram os problemas produzidos pelo choque colônia-metrópole. É uma área de estudos muito interessante, porque você vê o nascimento do preconceito em função da força de trabalho. Então, fiz [o terceiro volume] Perspectivas Decoloniais. Aí, vi que no feminismo decolonial havia a questão da sexualidade decolonial, e a sexualidade é um tema vigoroso. Foi quando escrevi Sexualidades no Sul Global [quarto e último volume da coleção]. Agora, estou fazendo outro livro que se chama Feminista, Eu?, que fala sobre a ideia de ser feminista na minha geração e na atual, que é completamente diferente. Quando vi Rita Lee dizendo que não era feminista de jeito nenhum, logo reagi: “Opa”. Ela diz aos berros que não é feminista, e é inacreditavelmente ousada. Então, nesse próximo livro pego o trabalho da Rita Lee, das cineastas, de outras mulheres da cultura, e mostro o impacto do feminismo, não da ideia em si, mas da posição feminista.
FEMINISTAS HOJE
O que vai mudando no feminismo ao longo dos anos são os canais de divulgação, mas as pautas são as mesmas. O que eu queria na minha idade? O direito ao aborto, ao mercado de trabalho, a não violência. Era o que a gente reivindicava. O que as meninas hoje pedem? A pauta é a mesma. A gente andou muito pouco para a frente. Quer dizer, tivemos avanços, mas andamos muito pouco em relação ao que se pedia nos anos 1960. Só que hoje as estratégias são outras. Antes, tinha a Carmen da Silva [1919-1985], aquela jornalista explosiva, vestida de empregada doméstica na Avenida Rio Branco [no Rio de Janeiro], com um balde de água lavando a via e dizendo [ironicamente]: “Pra isso que serve a mulher!”. Quer dizer, era uma performance como as de hoje, mas ninguém fotografou. O jornal não estava nem aí para ela e aquelas outras mulheres na avenida. Então, o que mudou foi a possibilidade e a força da difusão. Agora, essas meninas fazem [performances, protestos], postam em várias redes, e a coisa se expande. O feminismo está nas músicas, nas novelas, nas charges. Não é mais uma coisa da elite.
QUANDO HÁ POSSIBILIDADE DE PROVER MAIS REPERTÓRIO
– FILOSOFIA, LITERATURA, OFICINAS DE ESCRITA E DE LEITURA –,
A PERIFERIA DECOLA
SOBRE OS HOMENS
Eu ia fazer um programa, que acabou não acontecendo por falta de financiamento, para um canal de televisão. Como antes fiz a série O que Querem as Mulheres? (Canal Brasil, 2020), em que cada episódio tratava de um feminismo diferente, propus O que Querem os Homens?. Fui fazer uma pesquisa e [descobri que] a quantidade de grupos de homens pelo Brasil inteiro estudando masculinidade é grande. Há grupos de homens estudando masculinidade de norte a sul do país. Foi uma interpelação das mulheres, sem dúvida alguma. Outra coisa, não sei se a tal masculinidade tóxica é muito fácil de identificar. Naquele homem cafajeste é muito fácil, mas nos outros, os bonzinhos, os cooperativos etc., também há essa masculinidade tóxica, e nós não vemos. Acho que os homens estão muito assustados e, ao mesmo tempo, aplicados porque, de repente, caiu a ficha. Não digo que é porque as mulheres não os estão deixando em paz. Não é isso. Uma parte significativa da população masculina ouviu o que foi dito [pelo movimento feminista] e ficou interessada. Isso é muito bonito! São jovens que formam esses grupos. Essas gerações mais novas estão metabolizando essas mudanças e estudando.
APRENDER COM A PERIFERIA
Tenho um laboratório de tecnologias sociais no qual a gente trabalha possíveis parcerias com outros saberes. Chama-se Universidade das Quebradas, e ela já tem mais de dez anos. Anualmente, entram vários artistas, produtores e ativistas da periferia. É muito interessante por ser um laboratório de trocas entre eles e a comunidade acadêmica. Fiz isso porque percebi, quando comecei a trabalhar na periferia em 1993, que a potência dessa cultura não é brincadeira. A classe C que está nas favelas vai ser, obviamente, a classe dominante. Por exemplo, o feminismo na periferia é de uma força e organização sem tamanho. Eu tenho paixão pela periferia! O que fico me perguntando é: que lugar é esse e que cultura é essa com que estou trabalhando? Cheguei à conclusão de que essa cultura não é uma cultura de raiz, de pobre, uma cultura parada. É uma cultura que conversa com as outras. Ela é uma cultura de um interesse gigantesco. Quando você começa a estudar a respeito, vê claramente como ela metaboliza a cultura de alta classe média, com sérias perspectivas de se tornar mais interessante do que o atual mainstream. Então, quando há possibilidade de prover mais repertório – filosofia, literatura, oficinas de escrita e de leitura –, a periferia decola. Acho que esse é o futuro.
Assista aos vídeos deste Encontros com Heloísa Buarque de Hollanda no YouTube da Revista E.