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Ricardo Fasanello
Ricardo Fasanello

ENTRE HISTÓRIAS PARA ADULTOS E PARA CRIANÇAS, AUTORA PREMIADA E MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS ABRAÇA AS POSSIBILIDADES DA NARRATIVA

 

"Não foi de repente nem foi uma mudança”, conta Ana Maria Machado quando se refere a uma de suas tantas facetas: a de autora de histórias para crianças. Fisgada por enredos de medos, alegrias e anseios do mundo das crianças desde 1969, a escritora carioca concilia a criação dessas narrativas com a escrita de ensaios e ficções há mais de quatro décadas. Cadeira número um da Academia Brasileira de Letras (ABL), é reconhecida por sua versatilidade e profícua produção: são mais de 100 livros publicados em 20 idiomas e em 26 países, e mais de 20 milhões de exemplares vendidos. No mês passado, foi lançada nos Estados Unidos a tradução do romance Tropical Sol da Liberdade (primeira edição publicada em 1988), no qual a escritora mescla ficção e realidade ao contar como vivenciou o período da ditadura no Brasil como jornalista e seu período de exílio na França. No Brasil, são três os lançamentos, pela Editora Moderna, voltados ao público infantil: Igualzinho a Mim, A História que Eu Queria e O Mesmo Sonho. Dedicada à promoção da leitura e ao fomento do livro, neste Encontros, Ana Maria Machado fala sobre algumas obras voltadas para as crianças, como surgem os temas de suas histórias e sobre a carpintaria no seu ofício. “Picasso dizia que não sabia se existia inspiração, mas, se ela existir, com certeza na hora que chegar vai me encontrar trabalhando.”

 

A primeira vez

Não foi de repente nem foi uma mudança. Quando comecei a escrever para criança, em fins de 1969, eu já era jornalista, já tinha trabalhado no Correio da Manhã, dava aula na Faculdade de Letras [da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ] e estava inscrita no doutorado – minha tese acabou sendo feita no exílio e apresentada lá e foi meu primeiro livro publicado, antes de publicar romances, antes de publicar os livros infantis, eu publiquei Recado do Nome (1976), um ensaio sobre Guimarães Rosa. Mas eu nunca havia pensado em escrever para criança. E essa imagem acabou me engolindo, porque foi de muito sucesso. Comecei a escrever para criança por encomenda, em meados de 1969, convidada pela Editora Abril para uma revista que estavam lançando. Buscavam autores que nunca tinham escrito para crianças e que não tinham essa linguagem “tatibitati” ou “nhem-nhem-nhem”.

E eu não pensava em escrever para criança, não sabia por que tinham me chamado...

E me disseram que também estavam recrutando professores da universidade e nessa chegaram a mim. Depois, quando a revista começou a sair, em 1970, tinha Ruth Rocha, Joel Rufino, todos principiantes na escrita para crianças. Quando foi publicada a primeira história, em 1970, eu já estava no exílio na França.

 

Coisa séria

Continuei [a escrever livros para crianças] por duas razões. Uma é porque pagavam bem, o que permitiu que eu me profissionalizasse e pagasse minhas despesas. A segunda razão é que gostei muito de experimentar aquela linguagem. Naquela altura estava fazendo uma tese com Roland Barthes, um grande teórico, professor e linguista, com uma linguagem muito sofisticada, também estava trabalhando sobrenome próprio na obra de Guimarães Rosa, algo bem específico, com uma linguagem própria de análise literária. E gostei da ideia de trabalhar uma linguagem brasileira, coloquial, familiar, assim como se eu estivesse me sentando no chão para brincar com as crianças e poder falar de coisas muito sérias. Porque história infantil só é boa quando fala de coisas muito sérias, mas tentando trabalhar uma linguagem acessível, divertida, usando humor, poesia. Era um espaço de liberdade ótimo; então, continuei fazendo. E como os leitores gostaram, fiquei nisso, mas sempre fiz as duas coisas: [livros] para adultos e para crianças.

 

 

 

Momento do mote

Em geral não penso muito no tema antes de começar. Aparecem coisas pequenas: um personagem, uma expressão. E cada livro, seja para criança ou para adulto, tem seu próprio momento “detonador”. Por exemplo, uma das primeiras histórias que escrevi para a revista Recreio [publicada pela Editora Abril], chamada Quenco, o Pato, é a história de um patinho que não queria tomar banho porque achava a água muito molhada. Isso porque eu estava querendo dar banho no meu filho e ele não queria interromper a brincadeira. Ele tinha dois anos. Aí perguntei por que ele não queria ir. “Você acha que a água é fria?” Ele disse que não. “Você acha que ela é molhada?” Aí ele começou a rir. Percebi que aquilo era engraçado e comecei a desenvolver uma história. Quer dizer, ela sai de uma brincadeira, de algo do cotidiano. Eu sempre gostei de ler, tinha muita leitura, e já esta história estava cheia de intertextualidades, de referências a outros livros em que às vezes as pessoas nem reparam. O patinho, em vez de nadar com os outros, gostava de ficar embaixo da árvore lendo. Ele gostava muito das histórias da pata Sônia, de Pedro e o Lobo [história infantil criada pelo compositor russo Sergei Prokofiev em 1936], da história de O Patinho Feio [escrita pelo dinamarquês Hans Christian Andersen em 1843]. Aí, falo de muitas outras histórias de pato que existem. Então, essas referências, à medida que escrevo, vão entrando. Não há uma eleição prévia de um tema, nem para crianças nem para adultos.

 

ACHO QUE DÁ PARA FALAR DE TUDO DEPENDENDO DA MANEIRA COMO SE FALA. MAS ESSE TUDO TEM QUE NASCER DE UMA NECESSIDADE VERDADEIRA DO AUTOR

 

Nhem-nhem-nhem

Entendi que eles [da Editora Abril] não queriam uma linguagem infantiloide. Eu raramente uso diminutivo. Por exemplo, um dos primeiros prêmios que recebi foi por História Meio ao Contrário (1977), que começa com a frase: “Então, eles se casaram, tiveram uma filha linda como um raio de sol e viveram felizes para sempre”. E acaba com a frase: “Era uma vez”. Era o desafio de inverter os padrões tradicionais. Eu era professora de teoria literária, estava estudando aquilo, sabia o que estava fazendo, mas ao alcance do leitor que não está acostumado a ler muita coisa, ele conhece o padrão e acha divertido inverter esse padrão.

 

Meu e seu

Por exemplo, na História Meio ao Contrário, eu achava que a princesa, que era filha do casal que viveu feliz para sempre, ia ser a personagem principal do livro. Comecei a contar a história. De repente, entra na história uma pastora. É como se ela tivesse dado uma cotovelada na princesa e dito: “Sai para lá”. E a pastora se torna a personagem principal. Isso já me aconteceu. O mais importante para mim passou a ser a história dessa pastora e não da princesa, mas não por causa do leitor. Cada leitor se identifica com um personagem que não precisa ser o meu. Cada leitor tem sua própria leitura. Isso que é maravilhoso da literatura.

 

Sem tabu

Não acho que haja temas proibidos. Vai depender de como ele é tratado. Se ele corresponder a uma verdade interna, uma necessidade do autor, que está precisando falar daquilo, e o autor tiver talento e sensibilidade, ele vai encontrar uma maneira de falar. Tenho uma história sobre a morte, por exemplo, chamada Fiapo de Trapo, publicada, primeiro, na revista Recreio e que depois eu reuni com outras histórias, formando um conjunto de quatro histórias num livro chamado Quem Perde Ganha (1985). Todas são histórias de perdas diferentes. A Fiapo de Trapo é uma perda pela morte, mas a morte é contada pela imagem do espantalho que vai se desmanchando com o vento, com a chuva. Os fiapos dele vão sendo levados para lugares diferentes: um passarinho pega um fiapo, outro faz um ninho, e assim vai. Ele se desmancha todo, mas continua em outras coisas. É uma história sobre a morte, mas contada de uma maneira que não é aterrorizante ou deprimente. Ela [a morte] é um eterno continuar. Tenho histórias sobre monstros, por exemplo, O Domador de Monstros (1996), em que o menino enfrenta os medos dele pelo humor. Toda vez que aparece um monstro, ele inventa outro monstro mais aterrorizante para assustar o anterior. Enfim, não acho que existam temas proibidos, acho que dá para falar de tudo dependendo da maneira como se fala. Mas esse tudo tem que nascer de uma necessidade verdadeira do autor, senão fica forçado e ele pode errar a mão.

 

Pelas manhãs

Eu procuro escrever todo dia, mesmo que não aproveite. Sou casada com um músico [Lourenço Baeta] e ele toca escala todo dia, se eu fosse casada com um atleta ele faria ginástica todo dia, então, para escrever, eu escrevo todo dia. Picasso dizia que não sabia se existia inspiração, mas, se ela existir, com certeza na hora que chegar vai me encontrar trabalhando. Claro que a grande maioria [do material que escreve] não aproveito. Mas estou ali “tocando escala”. Gosto muito de escrever de manhã, logo cedo, quando ainda está tudo muito perto do sonho, do inconsciente. Meu marido, às vezes, brincava comigo quando eu acordava muito cedo para escrever. Ele dizia: “Ih... Corre que o João Ubaldo começou às 4 horas”.

 

História antes da história

Muitas vezes, eles [os pequenos leitores] me inspiram porque é conversa de criança. É uma possibilidade de trocar ideias sobre um mundo de histórias. Eu lembro, por exemplo, uma vez em que estava numa escola em Belo Horizonte (MG), conversando com uma turma sobre um livro, e tinha uma menina que a toda hora levantava o dedo para fazer uma pergunta. E, quando chegava a vez dela – porque muitos queriam falar –, ela falava: “Sabe...”, e fazia uma pergunta. Foi muito engraçado. Porque ela começava a falar por um “Sabe...”, como se ela fosse informar em vez de perguntar. Achei graça nisso. Enfim, passaram-se meses. E eu estava na frente da máquina de escrever, sem ideia. Aquela folha em branco. Sem saber como começar e me lembrei daquela menina. Escrevi: “Sabe...”. “Sabe o quê?” Mudei de linha. A coisa natural de alguém dizer “sabe” não é fazer o que ela fez comigo, de fazer uma pergunta, mas de contar algo. E a frase seguinte que escrevi foi: “Vou lhe contar uma coisa que ninguém desconfia. Um segredo muito escondido”. E aí o que eu ia contar? Eu não conseguia escrever naquele dia porque uma das minhas irmãs, Beatriz, nós chamamos de Bia, estava enfrentando um problema de saúde muito sério e aí eu ia dizer que só consiguia pensar na Bia. Mas, em vez de escrever isso, eu me lembrei que já havia algum tempo que eu queria escrever uma história sobre minha avó para meus filhos. A história da bisavó deles, que Bisa Bia mora comigo, bem dentro de mim. E aí foi indo… Então, essa era a história que foi evocada por essa visita à escola. Esse livro nasceu dessa visita. Um livro meu de muito sucesso, o livro mais vendido até hoje, traduzido para 12 línguas: Bisa Bia Bisa Bel (1981). É assim: a gente pega no ar alguma coisa e vai indo pelo exercício.

 

ANA MARIA MACHADO esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 18 de março de 2021
 
 
 
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