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Glória das letras cariocas

No escritório de seu apartamento no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, Leo Martins,Agência O Globo
No escritório de seu apartamento no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, Leo Martins,Agência O Globo

HÁ UM ANO, O BRASIL PERDIA UM DOS MAIS TALENTOSOS ARTISTAS DA MÚSICA E DA LITERATURA NACIONAIS

 

Chico Buarque certa vez resumiu a potência de Aldir Blanc: “é uma glória das letras cariocas. Bom de se ler e ouvir, bom de esbaldar de rir, bom de se aldir”, escreveu na contracapa do livro Um Cara Bacana na 19ª: Contos, Crônicas e Poemas (Aldir Blanc, Editora Record, 1996). A descrição cai tremendamente bem ao compositor e autor carioca que transbordava a literatura e a música e que deixou este plano em 4 de maio de 2020, vítima de complicações da Covid-19.

A história do músico, que nos últimos anos vivia recluso, mas não negava o passado boêmio pela noite carioca, começa no bairro de Vila Isabel – sim, aquele que eternizou outro mestre da canção, Noel Rosa. Foi lá onde Aldir, nascido em 1946, passou a infância. A casa dos avós tinha um grande quintal com mangueiras e bananeiras. A escolhida de Aldir Blanc para ser escalada e servir de abrigo ao menino sonhador era uma goiabeira branca que, curvada até o chão, revelava em sua anatomia um convite.

Antes de provar seu talento robusto para a escrita, dedicou-se à medicina. Sim, doutor Aldir era médico com especialização em psiquiatria, carreira que deixou de lado em 1973. Mas a paixão pela alma humana está presente em suas canções. Basta apertar o play em Amigo É pra Essas Coisas, música que levou medalha de prata no Festival Universitário (1970), ou em Ela (1972), parceria com César Costa Filho, gravada por Elis Regina, para sentir uma densa análise da parte mais íntima do ser.

Aquela sensação de música que vale por um ano de terapia pode vir também com Trem Bala, (1973), primeira da dupla Aldir Blanc e João Bosco a ser integrada em um disco de Elis, a Pimentinha. O álbum Elis (1972) tem a marca de ser o primeiro com arranjos de Cesar Camargo Mariano, pianista e produtor.

Quem já cantarolou Caía a tarde feito um viaduto/ E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos, da canção O Bêbado e a Equilibrista, parte do disco Essa Mulher (1979), já identificou na voz de Elis mais um sucesso de Aldir Blanc e João Bosco. A música se tornou o hino da Lei da Anistia (1979), sob a qual brasileiros exilados pela ditadura militar retornavam ao Brasil, entre eles o irmão do cartunista Henfil, o sociólogo Herbert José de Souza (Betinho), que viveu no México.

E há maneira de resumir a trajetória de Aldir? Segundo o amigo e parceiro musical, Eduardo Gudin, até que sim: “Audácia, genialidade e muita musicalidade”.

 

Palavra tem poder

Aldir amava e dominava as palavras. Tanto que as suas viraram música, verso e prosa. Suas crônicas estamparam, entre outros veículos, as páginas do jornal O Estado de S.Paulo, entre 1996 e 1998, e antes disso as do lendário O Pasquim, onde escrevia, nos idos dos anos 1970, em tom de conversa de bar. Foi nessa época que lançou um compacto de bolso vendido em bancas de jornal para a coleção Disco de Bolso d’O Pasquim. A obra trazia, de um lado, Agnus Sei (Blanc e Bosco, 1972) e Águas de Março (Tom Jobim, 1972), do outro. A ideia do disquinho era reunir novatos da música em seus lados A e B.

E qual a origem da erudição despojada de Aldir? O amigo e parceiro musical Moacyr Luz dá a pista: o compositor é lembrado por ser um leitor compulsivo, com uma biblioteca pessoal de aproximadamente 20 mil volumes. “O que sempre me chamava a atenção era o fato de ele ter dezenas de livros sobre o mesmo assunto: uma parede completa sobre a Segunda Guerra Mundial, sobre o desembarque dos aliados, coleções sobre a queda do Império Romano e outras versões”, conta Luz.

Além do Aldir enciclopédico, havia o Aldir brincalhão. Não se furtava ao hábito de pregar uma boa peça. Moacyr Luz lembra que era comum vê-lo imitando amigos e personalidades em linha cruzada, um para o outro, para “confundir até os mais próximos, desvendando as manias de cada um”.

 

Amigo dos amigos

Mesmo com estilo de vida mais recluso ultimamente, Aldir permaneceu rodeado de amigos. Sua casa ficava no Muda, bairro localizado na parte Oeste da Tijuca, no Rio de Janeiro. Viveu seus últimos anos na companhia da esposa, Mari, de um casal de netos e do labrador da família, chamado Batuque. Quem também sente falta dessa convivência é o escritor e amigo Ruy Castro. Em coluna publicada na Folha de S.Paulo, em 23 de março de 2021, grafou: “Em maio [2020], a morte de Aldir Blanc equivaleu a silenciar um milhão de palavras – as que ele ainda não tinha escrito”. No texto, o escritor lamentava as pessoas queridas de seu entorno que tinham partido em decorrência da Covid-19, entre elas, Aldir.

Castro comenta que era mais amigo de Aldir do que conhecedor de seus escritos e numa quase memória restabelece o fio que conecta a obra e a amizade. O musical Era no Tempo do Rei (2010) foi uma adaptação do romance homônimo de Castro, com roteiro de Heloísa Seixas e 22 canções originais de Carlos Lyra e Aldir Blanc. “A noite da estreia foi – acredite ou não – das últimas vezes que o Aldir saiu de casa para um lugar público. Mesmo assim, subiu para o balcão e ficou chorando escondido atrás de uma pilastra”, relata Castro. Outra curiosidade do espetáculo é que as letras levaram um ano para ser compostas, mas, como foram feitas para o teatro, “o CD [que existe] não foi lançado comercialmente”. Dessa forma, as canções permaneceram “inéditas, embora estejam no livro de Luiz Fernando Vianna Aldir Blanc: Resposta ao Tempo” (2013, edição esgotada).

No último ano, o nome do compositor esteve presente na vida de muitos outros artistas brasileiros por meio da Lei Aldir Blanc, sancionada como medida de auxílio à classe artística durante a atual fase de isolamento. A partir dela, financiaram-se ações emergenciais no setor cultural, um dos mais afetados pela pandemia da Covid-19.

 

Em 2003, ao lado do músico João Bosco, amigo e parceiro de composições que marcaram a história da canção brasileira | Leo Aversa | Agência O Globo

 

 

Quando a luz acende é uma tristeza, trapo, presa

Minha coragem muda em cansaço

Toda fita em série que se preza, dizem, reza

Acaba sempre no melhor pedaço

Bala com Bala, 1972

 

Eu hoje me embriagando

De whisky com Guaraná

Ouvi tua voz murmurando

São dois pra lá, dois pra cá

Dois pra lá, dois pra cá

Dois pra Lá, Dois pra Cá, 1974

 

A esperança equilibrista

Sabe que o show de todo artista

Tem que continuar

O bêbado e a equilibrista, 1979
 

 

No ritmo da crônica

UMA SELEÇÃO DE PERSONAGENS E FATOS HISTÓRICOS QUE FORMAM UMA DUPLA SONORA

Letrista de mais de 600 composições, Aldir Blanc costura, com suas músicas, páginas importantes da história do Brasil. Conheça alguns exemplos.

De frente pro crime (1975)

   Da etiqueta Aldir Blanc e João Bosco, era uma das faixas de Caça à Raposa, disco de estreia de Bosco. Traçando uma conexão inesperada entre futebol e violência urbana, o título alude aos bordões do esporte feitos pelo narrador Januário de Oliveira.

 

Querelas do Brasil (1978)

   Parceria com Maurício Tapajós, revela no título a intersecção em contraste com outro clássico brasileiro, Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, música de 1939 que é uma exaltação ao Brasil. Trocando a paleta de cores da aquarela por querelas, a letra faz a passagem da harmonia para o conflituoso momento histórico da ditadura no país.

 

O bêbado e a equilibrista (1979)

   Imortalizada na voz de Elis Regina, tornou-se a trilha sonora da Anistia. Para a letra, foram usados recursos para driblar os censores da ditadura militar, deixando-a repleta de metáforas, a exemplo da estrofe Caía a tarde feito um viaduto, referindo-se à queda de um viaduto no Rio de Janeiro, aludindo a uma falsa noção de prosperidade da época.

 

Resposta ao tempo (1998)

   Composição de Aldir Blanc feita na base musical do violão de Cristovão Bastos. Música feita nas cores de um Brasil contemporâneo, ganhou fama na voz de Nana Caymmi, sendo escolhida como parte da trilha sonora de uma minissérie sobre Hilda Furacão, adaptada do romance homônimo de Roberto Drummond.

 

Aumenta o som que é poesia

PARA MATAR A SAUDADE, UMA HOMENAGEM EM SOM E VERSO

A Poesia de Aldir Blanc (Selo Sesc) é o disco da cantora portuguesa Maria João em homenagem ao compositor. O tributo traz versões revigoradas de canções já conhecidas em arranjos inéditos e os hits cantados Brasil afora, resultado de sua parceria com João Bosco e Guinga. Juntam-se às releituras letras até então inéditas da parceria com o violonista Carlos Paredes e o pianista Mario Laginha.

 

Divulgação

 

Antes ou depois de escutar o disco, disponível no seu tocador de streaming preferido, vale conferir a entrevista de João Bosco para a série Muito Prazer, Meu Primeiro Disco, do Sesc Pinheiros. Na oportunidade, além de tratar de seu primeiro disco, lançado em 1973, há bastidores e recordações saborosas de seu convívio com Aldir Blanc. Acompanhe no Sesc Digital: https://sesc.digital/conteudo/musica/muito-prazer-meu-primeiro-disco/muito-prazer-meu-primeiro-disco-joao-bosco ou no Canal do YouTube do Sesc Pinheiros: https://www.youtube.com/watch?v=5VPeU2KuzQ4.

 

 

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