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Casa comigo
lembro da mesma xícara
que meu pai levava à mesa
ao toque da fidelidade
centenária uma amizade assim
que não se largava eternamente
unidos pelas mesmas asas
agora entendo o tamanho
deste sentimento é
com ele que acabaremos
com o fim do mundo
a faca o garfo a colher
o prego que martelo
um quadro os instrumentos
cada um em seu ofício cego
nossas mãos à obra para
toda hora que for preciso
agora entendo a força
dos utensílios nem reparamos
em seu suor diário firmes e
fortes para nos livrar da morte
a escada o corte da tesoura
o alicate os travesseiros
há quanto tempo abraçam
os nossos sonhos os pensamentos
mais mundanos debaixo dos lençóis
os panos sem julgamento algum
agora entendo por que tanto
fugimos para lá e cá sem destino
nossa casa um ventre que espera
sorrindo a filha ou o filho ingrato
o pão o fogo o abacaxi na cesta
o ronco da geladeira que nunca
dorme a beleza da fruteira a nossa
rica natureza morta a porta aonde
ninguém mais vem sempre aberta
a qualquer coração que a visita
agora entendo o que é estar dentro
do espírito que habita os espaços fechados
no centro do umbigo na solidão dos livros
o profundo amor da casa comigo
Marcelino Freire é escritor (Ossos do Ofídio: www.marcelinofreire.wordpress.com) e autor de Angu de Sangue (Ateliê Editorial, 2000); Contos Negreiros (Record), vencedor do Prêmio Jabuti de 2006, publicado também na Argentina e no México; Nossos Ossos (Record), vencedor do Prêmio Machado de Assis de 2014, publicado em Portugal, França e Argentina; entre outras obras. Em 2004, criou e organizou a antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial). Vários de seus livros foram adaptados para o teatro. É o criador e curador da Balada Literária (http://baladaliteraria.com.br/). O texto Casa Comigo foi escrito durante a quarentena. revistae | instagram