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Por trás da música, há sempre a história de um povo
Por Carlos Daniel*
Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.
Cancioneiro 167 20-9-1933
Fernando Pessoa
Lembro da minha primeira vez num terreiro de Umbanda e de como a música do lugar me impressionou. Eu era muito jovem, admirador do samba de roda tocado nos bares da periferia da Zona Leste de São Paulo, mas só naquele momento a minha ficha caiu, e eu percebi que o samba nascera dali, daquele tambor vigoroso, daquele gingado característico do povo preto, cheio de alegria e força. A partir daquele instante, foi fácil notar a linha tênue que separava músicas ancestrais, trazidas pelos africanos escravizados, daquilo que eu ouvia frequentemente nas ruas, nas rádios e nos bares, o bom e velho samba, interpretado por Cartola, Candeia, Dona Ivone Lara, Clara Nunes, Ismael Silva, Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Beth Carvalho e Jovelina Pérola Negra. Então descobri que, por trás da música, há sempre a história de um povo.
Mas o samba é só um exemplo dessa hereditariedade; outros ritmos musicais também estão impregnados dos costumes e tradições de nossos antepassados - é o caso do jongo, do carimbó, do choro, do sertanejo, do maracatu, do axé e até do rap. A gente pode torcer o nariz, dizer que um ou outro não agrada, mas a riqueza cultural que cada umas destas vertentes musicais carrega, independente do nosso gosto, é fruto da resistência das comunidades de cultura popular, que mantiveram no arco do tempo estar tradições tão valorizadas e pesquisadas por parte de músicos, historiadores, sociólogos e alguns curiosos que se aventuram pela rica história do povo brasileiro.
Numa conversa com a Sheila, educadora do Centro de Música do Sesc Consolação, sobre o papel da música na vida das pessoas, ela destaca que “a música é uma linguagem universal. Por meio dela o povo se afirma e se conecta. Para os brasileiros essa marca está viva e evidente nas suas manifestações musicais e culturais. Podemos traçar nossa história e nossa trajetória através da música que aqui estava e que foi sendo modificada, assimilada, misturada, estabelecendo nosso jogo de cintura, nosso swing, nossa identidade, nossa riqueza cultural”.
Neste contexto, vale ressaltar a importância de três povos, extremamente presentes em nossa miscigenação: os indígenas, os africanos e os portugueses. Todos eles desempenharam (e desempenham) um papel fundamental em nossa cultura, fornecendo diversos elementos que estão dispostos em nosso dia a dia, seja na literatura, no vocabulário, na culinária, na dança, na moda ou então na música, tema desta matéria.
Bob Souza, também educador do Centro de Música do Sesc Consolação, explica o reflexo desses povos em nosso fazer musical: “As músicas ancestrais estão presentes em nosso inconsciente coletivo e podemos senti-las refletidas nas diversas produções musicais urbanas e regionais. Os cantos e tambores de matriz africana permeiam a maior parte das produções musicais brasileiras. Os vissungos são manifestações da cultura Bantu da região sudeste e influenciaram diretamente a obra de compositores como Geraldo Filme e Milton Nascimento. Já as canções do mar estão muito presentes na cultura musical portuguesa e, no Brasil, a marujada ganhou vários sotaques, com a rítmica e musicalidade das diferentes regiões. Pela distância física e cultural podemos citar dois exemplos que transparecem esta diversidade: a marujada de Santana Catarina e a marujada de Bragança, no Pará. Também encontramos a marujada ou fandango em outros estados brasileiros, como Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e Piauí. A musicalidade indígena está presente em nossa música de forma mais subjetiva que a africana. Podemos percebe-la em manifestações como: O caboclinho pernambucano, as guarânias, o cururu mato-grossense e as canções ribeirinhas”.
Portanto, pode ser que até agora você não tenha ouvido falar sobre “marujada”, “vissungo” ou cantos indígenas, mas certamente, em algum momento, já ouviu alguma música influenciada por estas vertentes presentes no DNA do povo brasileiro.
Finalizando, para ilustrar tudo que foi dito até aqui, os educadores do Centro de Música do Sesc Consolação, prepararam um vídeo onde reproduzem, cada um de sua casa, músicas ligadas à cultura indígena, africana e portuguesa, numa mixagem que combina vozes, instrumentos e muita inspiração. Acompanhe:
Sobre as músicas
Seu marinheiro sua morada é no mar
Esta canção compõe o repertório da marujada, uma tradição de cultura popular brasileira de música e dança com origem portuguesa que evoca o contexto das grandes descobertas marítimas dos séculos XVI e XVII e que, no encontro com as tradições afro-brasileiras, foi ressignificada e ganhou sua identidade: brasileira, sincrética e com diversos grupos mantendo esta tradição no interior do país. As canções da marujada falam da rotina dos marujos e marinheiros no mar, das grandes descobertas de terras a aspectos rotineiros da vida no mar; evocam também a irmandade, as forças da natureza e a importância de continuar remando.
Tche Nane
(Índios Jaboti, de Rondônia )
Canto entoado num ritual noturno que ocorre após uma grande festa de pescaria realizada na época da seca, quando os Jaboti utilizam o timbó, um cipó venenoso que embebeda os peixes, batendo-o dentro d'água e construindo barragens.
Cangoma
Este vissungo – um dos cantos de escravizados das lavras de mineração de Minas Gerais do século XVII – celebra a abolição da escravatura no Brasil. A palavra cangoma está relacionada ao termo ngoma, que significa tambor nas línguas africanas de origem banto e suscita, por decorrência, diversos significados simbólicos e inspiracionais, tanto na África quanto no Brasil: caminho de ligação com o sagrado, música, dança, festa, entre outros.
Depoimento dos educadores envolvidos no projeto
“Realizar este vídeo a 5 mãos foi simbólico, pois, apesar de estarmos distantes, estamos conectados através da música!!! E é essa mensagem que gostaríamos de passar para nosso público, que nosso afastamento no momento é apenas físico, não social. Que podemos continuar realizando, sonhando e fazendo música juntos!!!”
Sheila Ferreira
“O isolamento social nos possibilita reinventar nossas ações, individuais e coletivas. No caso dos profissionais vinculados ao nosso Centro de Música escolhemos algumas ações, entre elas fazer música em forma de vídeos que foram sendo compartilhados e somados como camadas musicais. Creio que foi um aprendizado e ao mesmo tempo um desafio para todos envolvidos, mas realmente o fazer musical em grupo e ao vivo me faz muita falta. Certa vez, Miles Davis respondeu à um entrevistador que ele não fazia Jazz e sim ‘Música Social’ e é assim que me sinto, fazer música para mim é antes de tudo uma ação social e coletiva”
Bob Souza
Ficha técnica
Concepção musical: Pedro Beviláqua
Arranjo e pesquisa: educadores do Centro de Música
Bob Souza: baixo, cajon, baixolão e cavaquinho
Pedro Beviláqua: cello, zabumba e ganzá
Sheila Ferreira: voz, piano, percussão e acordeon
Solange Assumpção: voz, piano e percussão
Edição e mixagem: Mauricio Perez – educador do Espaço de Tecnologias e Artes
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*Carlos Daniel, assessor de imprensa do Sesc Consolação