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A casa de um homem é um templo
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída –
Quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casas
Da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
(...)
[Bertold Brecht, Perguntas de um Operário que Lê. 1935]
As vilas operárias acompanham parte da história do Brasil e da cidade de São Paulo, sua urbanização, a trajetória trabalhista e os conflitos na urbe. Se, como disse Vinicius de Moraes, a casa do homem é um templo, quais são as memórias que marcam essas vilas e seus moradores?
Era ele que erguia casas / onde antes só havia chão [Vinícius de Moraes, Operário em construção, 1956 | Imagens: reprodução webdoc EntreVilas]
A partir do final do século XIX, a cidade de São Paulo passou por um forte processo de industrialização, recebendo mais de 200 mil pessoas vindas do interior e de outras partes do país e do mundo, em busca de uma nova vida, um novo trabalho, um novo lar. O mercado imobiliário se tornou uma atraente forma de geração de renda, levando as indústrias a construírem núcleos residenciais (as vilas) próximos aos seus núcleos fabris, com base em fortes incentivos públicos. Imaginava-se que essa seria a solução para um dos principais problemas das cidades nesse momento: a “habitação do pobre urbano”, o operário trabalhador de suas fábricas.
Para Telma de Barros Correia, professora do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em São Carlos, as vilas operárias apresentavam um padrão de moradia popular oposto à favela, ao mocambo e ao cortiço, supondo ordem, higiene e decência. A vila operária (...) sugeria casas salubres e dotadas de ordem espacial interna, que se distinguia da falta de higiene, de espaço e de conforto atribuída às casas dos pobres urbanos. Também sugeria casas de famílias de trabalhadores estáveis, em oposição às misturas entre estes últimos e os indivíduos afastados dos empregos regulares (autônomos, vadios, prostitutas etc.), favorecidas pelas formas de moradia e relações de vizinhança nas habitações coletivas e em moradias precárias. [ De Vila Operária a Cidade-Companhia: as aglomerações criadas por empresas no vocabulário especializado e vernacular - Autora: Telma de Barros Correia ]
Certo é que as casas das vilas buscavam romper as degradantes condições encontradas nas precárias moradias disponíveis para a classe trabalhadora até então. Mas havia, nessa relação, um componente que estava para além da habitação e da preocupação da elite com a higiene, a segurança e a moral da cidade: como a casa da vila operária é ofertada ao trabalhador pelo patrão, ela tinha não somente um valor de uso, mas possuía também um valor de troca. E passou a interferir nas relações de produção, sujeitando o primeiro aos interesses do segundo, atuando como uma forma de controle. Nem tudo era tão bucólico quanto nos quer fazer crer a idealização do passado nesses locais.
Imagem: Reprodução | Webdoc EntreVilas
Na cidade de São Paulo, o espaço operário teve seu lugar em diversos bairros da cidade, acompanhando as fábricas, que, por sua vez, seguiam as linhas de trem, os terrenos desvalorizados ao seu redor e seus consequentes baixos valores no mercado imobiliário: Brás, Pari, Mooca, Belenzinho, Tatuapé, Barra Funda, Água Branca e Lapa. No auge das vilas operárias, a cidade contou com inúmeros desses conjuntos.
Hoje, remanescentes de muitas dessas vilas podem ainda ser encontrados pela cidade, em diferentes estados de conservação, e você pode visitá-los assim que este período de cuidados especiais e isolamento social passar. Conversar com seus moradores, antigos ou mais novos, é uma rica vivência, que dará a dimensão das experiências compartilhadas do viver operário, com seus limites e possibilidades, ontem e hoje.
Vila Maria Zélia, inaugurada em 1917 no bairro paulistano do Belenzinho, pertencia à Companhia Nacional de Tecidos de Juta [ Fotografia: Rodrigo.Argenton, CC4.0 ]
Vila Economizadora localiza-se no bairro da Luz e foi construída entre 1908 e 1915 pela Sociedade Mútua Economizadora Paulista [ Fotografia: Beatriz Manfredini - C.C.4.0 ]
As 28 casas que compõem a Vila dos Ingleses foram construídas entre 1915 e 1919 para atenderem aos engenheiros ingleses que trabalhavam nas obras da Estação da Luz e da Estada de Ferro Santos-Jundiaí [ Fotografia: Daniel Gelbaum - C.C.4.0]
A Vila Itororó é um conjunto formado por um palacete (foto) e 37 casas, localizado no bairro da Bela Vista e erguido entre os anos de 1922 e 1929. [ Fotografia: Rodrigo Argenton - C.C.4.0 ]
Mas enquanto a indicação de isolamento social permanece, convidamos você a realizar uma viagem virtual por uma vila ao mesmo tempo real e imaginária. Uma vila que une pedaços da Vila Triângulo, da Vila Economizadora, da Vila Itororó e da Vila Maria Zélia e oferece uma mostra de como era e como é, ontem e hoje, a vida numa vila operária. Mostra, também, como se dão as relações entre moradores e suas casas, localizadas nessas vilas.
Reprodução | Webdoc EntreVilas
EntreVilas é uma vila imaginária digital, localizada em um documentário interativo. Aqui é possível visitar as casas, o comércio, fábricas e até as áreas de lazer, todas elas reais, tendo como anfitriões seus próprios moradores. Logo na entrada da vila, quem nos recebe é dona Zelinda, que retira da mala sua harmônica e nos brinda com um pouco de sua história: “30 anos e 7 meses na fiação, tecendo fio, fazendo os fios para depois ir para os teares...”, “entrei lá com quase 14 anos, com 14 anos me registraram, eu fiquei até os 46 anos...”. Após ouvi-la, estamos mais que convidados a entrar.
Imagem: Reprodução Webdoc Entrevilas
No centro dessa vila imaginária está o “Fim de Expediente”, o coração de qualquer vila e onde você poderá visitar oito moradores, depois de "bater cartão" na fábrica – que, como numa bem planejada vila operária, fica logo ali ao lado. Cada diferente porta nos leva ao universo particular de uma pessoa diferente.
Imagem: Reprodução Webdoc Entrevilas
Você poderá visitar também outras áreas, como a escola, a guarita, a estação de trem, cada uma delas com depoimentos, fotografias, mapas, textos e documentos de época. Há materiais que revelam a infância operária da época áurea das vilas, há imagens panorâmicas atuais do que restou da Escola de Meninos e da Escola de Meninas, criadas em 1917 na Vila Maria Zélia, e imagens e informações acerca da primeira piscina privada de uso público de São Paulo, na Vila Itororó.
Escola das crianças filhas de operários | Reprodução Webdoc EntreVilas
Imagem aérea da Vila Itororó | Reprodução Webdoc EntreVilas
Mas antes de lhe dar sua passagem para você viajar por todas essas histórias, queremos lhe convidar para conhecer o poema Operário em Construção, de Vinicius de Moraes. Publicado em 1956, quando o processo de industrialização brasileira se consolidava, ele é uma chamada à reflexão sobre o desenvolvimento da consciência de classe dos trabalhadores. Ouça aqui a versão na voz da atriz Odete Lara.
Agora sim! O operário ouviu a voz / de todos os seus irmãos. Entre e seja bem-vindo ao EntreVilas! Para viajar por todas essas histórias de moradores e suas casas de vilas, recomendamos que coloque seu fone de ouvido, para não perder nenhum detalhe. Depois, é só clicar aqui ou na imagem abaixo.
[http://www.entrevilasdoc.com.br]
Agradecimentos: Estudio CRUA; Marina Thomé; Márcia Mansur
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Para viajar mais...
Arquiteturas
As duas temporadas da série documental disponível no SescTV abordam novas formas de vivenciar os espaços e as atividades humanas nas cidades. A primeira temporada destaca construções e complexos públicos e privados que representam marcos arquitetônicos brasileiros, enquanto a segunda temporada tem como foco o urbanismo e as diversas maneiras de ocupação de espaços públicos nas cidades. Direção de Paulo Markun e Sérgio Roizenblit
Para viajar nessa série por duas vilas operárias, nós sugerimos:
Vila Itororó – Da Série Arquiteturas do Sesc TV:
Vila de Paranapiacaba – Da Série Arquiteturas do Sesc TV:
A vila de operários de Paranapiacaba
Todos os anos, no mês de julho, a Prefeitura do município paulista de Santo André organiza o Festival de Inverno em seu distrito histórico de Paranapiacaba. Originalmente, Vila de Paranapiacaba, como ainda é carinhosamente conhecida, o local nasceu como o centro de controle operacional e como vila residencial para os chefes e operários funcionários da São Paulo Railway Company, empresa que operava as estradas de ferro que se encarregavam do transporte de cargas e pessoas do interior paulista para o porto de Santos. Para o Word Monuments Fund - organização internacional não-governamental que atua na área de preservação do patrimônio histórico, Paranapiacaba está entre os 100 monumentos mais importantes do mundo. Hoje, o patrimônio tecnológico e seu entorno são tombados por diversos órgãos e desde 2008 o local é candidato a patrimônio da humanidade pela UNESCO. Com o isolamento social definido para evitar a propagação do coronavírus, a realização do Festival de Inverno deste ano ainda está indefinida, mas você pode conhecer melhor a vila de operários neste guia de pontos turísticos produzido pelo Sesc Santo André, clicando aqui ou na foto abaixo.
Outros lugares, diferentes histórias!
Se quiser ampliar sua viagem por mais lugares e histórias, você pode conhecer outros webdocumentários interativos desenvolvidos pelo Estúdio CRUA em parceria com o Sesc São Paulo no projeto Hackathon Webdoc. Com mais de 100 criadores envolvidos, veja abaixo quantos lugares bacanas para visitar em webdocs:
- Bixiga Existe [www.bixigaexiste.com.br]
- Retiro Retratos [www.retiroretratos.com.br]
- Parada Centro [www.paradacentro.com.br]
- Expresso Pinheiros [www.expressopinheiros.com.br]
- Itinerâncias [www.itineranciasdoc.com.br]
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Onde a casa mora em nós
Nestes tempos de distanciamento social, a série "Onde a casa mora em nós" convida para um passeio diferente, sem sair do lugar. Uma viagem que se propõe a ressignificar a presença da casa para além das paredes, para onde ela vive em cada um de nós. Para inspirar essa reflexão, vamos viajar pelos significados e memórias que vivem em casas de artistas e de personagens do cotidiano de nossas cidades. Um chamado para, junto com o Turismo Social do Sesc em São Paulo, aproveitarmos este raro momento de pausa e emergirmos com um novo olhar sobre nossa própria casa e sobre nós mesmos. Para saber mais clique aqui ou na imagem abaixo.