Postado em
Mariana Ianelli
A MESMA SORTE
Para Ramon
Podíamos ter nos dispersado
Depois da primeira noite
Como no fim de um trecho de neblina
Ter nos gastado numa aposta, por esporte
Podíamos ser hoje
Desses que se acenam mornamente
Como a render respeito a um morto
Ou por força maior
Podíamos ter ficado
Cada um numa cidade diferente
Enlouquecendo pouco a pouco
Dentro de apartamentos limpíssimos
Ou ao longo dos anos podia ter sido somente
Um discreto afrouxar de dedos,
Intervalos mais e mais espaçados
De alimento, sem que atentássemos
Que abandonos também semeiam
Podíamos ter nos perdido
Por nada, por muito, e afinal
Depois de mais de sete mil noites
Aqui estamos, depois do deserto,
Depois da loucura, depois de tudo
Velhos teimosos na nossa sede primitiva,
Tensionando o fino fio
Sobre o escuro dos possíveis
De uma sorte que é a mesma das aranhas.
APÓCRIFO E SEM DATA
Ouvi dizer que habitamos quartos contíguos
De paredes tão finas que se nos concentrarmos
Lograremos conversar por sinais –
É o que tenho feito, e assim até que o tempo
Se espalme nessa guarida de nada:
Um sopro, realmente apenas um sopro,
Como num conto para crianças,
[e as paredes vão abaixo.
CARTA PARA MINHA FILHA HOJE FELIZ
Amanhã você descobrirá
Que a nossa terra estava cheia de monstros
Que não eram os dos nossos jogos.
Que preferimos nos vingar ardentemente
Minando de absurdas alegrias
Um pesadelo seco de caça e de fome.
Você descobrirá que existiam
Multidões de árvores desesperadas.
Árvores que não eram nossas árvores,
Árvores que não renasciam.
Talvez você se lembre (sem muita certeza)
De emaranhados sonoros
Que inflamavam no ar e lhe doíam.
Helicópteros. Sirenes. Máquinas de demolir.
Também coisas a que dispensávamos
[dar palavra
Nos doíam. Coisas quebradas.
Corações sem pulso. A gorda colheita da ira.
Mas dentro do seu orbital eram outras leis,
Bichos e plantas falavam e eram ouvidos,
Num barco de pano singrando no vento
Subíamos até a Lua num minuto
Noutro minuto boiávamos no mar da Paraíba.
Ali também eu era uma criança entre crianças
E só o que não fecundasse vida era clandestino.
Hoje você ri seu riso puro
Amanhã descobrirá a bravura disso.
EM MEMÓRIA DO POETA TONINO GUERRA, PROIBIDO DE VER COM OS PRÓPRIOS OLHOS O CHÃO DE PÉTALAS DO PALAZZO FLORIO
A menina que viu as rosas se despetalando
Num vaso no centro da mesa da sala
E (cantando) com as mãos em concha as recolheu
Para espalhá-las pelo chão da casa
Nada sabe das pétalas que Filippo Palizzi
Pintou sobre um chão de azulejos de um palácio
Nada sabe sobre as pantomimas dos amantes
Ela apenas executa o gesto simples e completo –
Como encarnasse um vento leve –
Não sabe o quanto lhe cobiçam essa leveza
(O quanto dariam por ela) artistas, poetas e amantes.
AOS QUE NÃO PARAM
Desculpem-me da culpa
De não estar aí
Ajudando a girar a velha roda,
Perdi o grande evento
Perderei outros, perderia sempre
Se assim pudesse
Ocupada
Com a fantástica respiração
De uma inocência –
Essa graça alienígena
Que me coube
Essa flor adventícia –
Ninguém diz, mas o rumor
É de morte certa:
Basta um choque, uma queda
Ou alguém se debruçar
Para beber dessa água pura
E turvá-la de repente
No entanto
Nada disso me ocupa
Não ainda, não enquanto
Essa graça vibrar lúcida
Como se em seu habitat
Enquanto não estiver perdida
Desculpem-me da culpa
De perder tudo o mais sem pesar.
Mariana Ianelli é poeta, ensaísta e crítica literária, autora dos livros Duas Chagas (2002), Fazer Silêncio (2005), O Amor e Depois (2012), editados pela Iluminuras, além do livro de crônicas Entre Imagens para Guardar (Ardotempo, 2017) e do infantil Bichos da Noite (Positivo, 2018).
revistae | instagram