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Um palco de sol, raios e trovões

Adriana Vichi
Adriana Vichi

Grande nome do teatro brasileiro compartilha vivências e personagens de seis décadas de carreira

Sérgio Duarte Mamberti viveu a infância e a adolescência em Santos, imerso nas águas da literatura e do cinema. Começou a ler aos quatro anos e adorava gibis até ter idade suficiente para desbravar obras de Dostoiévski, Fernando Pessoa, Jorge Amado, entre muitos outros. Tinha apenas 14 quando se tornou amigo de Pagu, escritora, poeta, diretora de teatro e artista que na época já tinha 50 anos. Ambos compartilhavam a paixão pelo cinema numa época em que Mamberti foi cineclubista. De lá para cá, a vida deste ator e diretor fluiu junto às mudanças experimentadas pelo teatro brasileiro em consonância com as transformações sociais, políticas e culturais do país. Prestes a completar 81 anos, em abril, Mamberti recorda episódios que costuraram 64 anos de uma carreira dedicada à arte dramática. Personagens da comédia à tragédia que o consagraram com prêmios. Eclético, na televisão encantou as crianças nos anos 1990. Uma geração que não perdia um capítulo do Castelo Rá-Tim-Bum, exibido na TV Cultura. Em meio às estripulias e descobertas do sobrinho Nino, Mamberti era o Dr. Victor Stradivarius – poderoso feiticeiro, amigo das máquinas, animais e crianças – a esbravejar o bordão “Raios e Trovões”. Victor junta-se a uma galeria de outras vidas que ele compôs no palco. Hoje, entre novos projetos, deixa escapar um desejo: “Tem um personagem de Shakespeare pelo qual tenho uma fascinação: Falstaff [Sir John Falstaff é um personagem boêmio que aparece em quatro peças do dramaturgo]. Ele é trágico, cômico e patético. E estou com a idade e o physique para fazer. Então, espero realizar esse sonho com a energia que ainda tenho”.

Olhando para trás, quais características definiria como formadoras da sua geração?

Nascemos no início da Segunda Guerra Mundial e isso nos marcou profundamente. O Brasil vinha num processo de construção muito interessante em vários aspectos. Tivemos Anísio Teixeira na educação, e mesmo as leis trabalhistas. Havia uma espécie de processo de modernização do país para que saísse do século 19 e entrasse no século 20. Eu morava em Santos e lembro a minha mãe educadora acreditar na alfabetização do país. Já meu pai, ele era constitucionalista. Era uma família diferente, porque minha mãe trabalhava, ao contrário do que acontecia com outras famílias, e meu pai também cuidava das coisas da casa. Além disso, discutia-se muito sobre política. Então, eu tive uma família que não pertencia aos padrões da época.

E como foi a adolescência em Santos? Foi lá que se deu o primeiro contato com o teatro?

Tudo que chegava a São Paulo chegava por Santos. Foram várias as companhias de teatro italianas e francesas, repertórios de grupos que faziam temporadas em Santos e passavam pelo Teatro Coliseu. Papai era diretor social de um clube e trazia espetáculos também. Nós éramos sócios do Centro de Expansão Cultural, um espaço de concertos. Vi um concerto do Villa-Lobos. Então, esse lado da cultura e da educação sempre esteve muito presente na minha vida.

Naquela época, que outros fatores marcaram sua formação?

Estudei numa escola próxima de casa e que se chamava Instituto Anglo Americano, fundada por ingleses e brasileiros. Então, lá eu tive contato com a língua inglesa. Já a minha mãe, ela dava aula para pescadores e filhos de pescadores. Isso tudo impregnou em minha vida, na minha formação e juventude. Lembrando que meu pai promovia todas as atividades culturais do clube: desde as festas tradicionais, como Carnaval e Natal. Ele era um agitador cultural. Foi ele quem trouxe Procópio Ferreira [um dos mais importantes atores da história do teatro brasileiro, 1898-1979] com o espetáculo Deus Lhe Pague. E me lembro que o Procópio apareceu num espetáculo com uma atriz, mulher dele, e meu pai perguntou: “E os outros atores?” Ele disse: “Não precisa. Pode deixar que resolvo essa situação”. E eu puxando o braço do meu pai, porque não queria que ele brigasse com o Procópio, de quem eu era fã.

A partir de que momento você pensou em fazer teatro?

Quando decidi fazer teatro, tive a sorte de ter como vizinha a Pagu [Patrícia Rehder Galvão, conhecida pelo pseudônimo de Pagu, escritora, poeta, diretora de teatro e artista, 1910-1962] em Santos. Ela era apaixonada por teatro. E eu não sabia que a Pagu era a Pagu, para mim ela era a Pati, mulher do Geraldo [Geraldo Ferraz, escritor, jornalista e crítico literário], e tinha um filho. Conheci a Pagu por causa dos cineclubes de Santos. Com 14 anos eu era cineclubista, ouvia as palestras do Paulo Emílio [Paulo Emílio Sales Gomes, 1916-1977, professor e crítico de cinema] e ia ao cinema com a Pagu, que era vizinha. Ela se apaixonou pelo trabalho do Plínio Marcos [escritor e dramaturgo, 1935-1999], que também frequentava sua casa, que era um centro cultural, até porque o Geraldo era um grande crítico de arte. Lá havia uma biblioteca maravilhosa que eles disponibilizavam. Era também um centro de agitação cultural. O presidente do cineclube de Santos era um francês da Resistência, então toda minha formação cultural também veio junto com a formação política.

Ou seja, muitas referências viviam em Santos nessa época.

Isso. Depois veio uma turma do teatro, como Ney Latorraca, Jandira Martini, enfim, muita gente. Os grupos de teatro da Baixada Santista eram numerosos. Minha família era de classe média. Meu pai trabalhou na bolsa de café, mas a grande atividade dele era a atividade cultural. Ele descobriu, por exemplo, que a Janet Gaynor e a Mary Martin [atrizes de Hollywood que visitaram o Brasil da década de 1950] estavam em Goiás e trouxe as duas para participar de um Carnaval em Santos. Nessa altura, eu já tinha me formado em inglês, aos 14 anos. Também falava francês, porque tive aula no ginásio do colégio estadual, considerado uma das melhores escolas do país, sendo ensino público. Era disputadíssimo entrar naquela escola. Na biblioteca, aos 12 anos, eu já lia Dostoiévski, Tolstói... Toda a literatura do Monteiro Lobato. Já tinha lido – escondido – Jorge Amado. Também li muitos poetas. Já com 14 e 15 anos, no colegial, eu fui apresentado à obra de Fernando Pessoa.

Foi a literatura que acendeu sua paixão pelo teatro?

Nessa época, eu via uma média de 300 filmes por ano. O cinema também foi muito marcante. Além disso, todo ano, papai e mamãe levavam a gente para São Paulo nas férias. Nossa programação era: teatro, cinema, exposições. Meu pai era mais exigente com essa questão de disciplina, horários, e minha mãe afrouxava um pouco, porque eu tinha um ótimo aproveitamento na escola, lia bastante, até de madrugada, leitor inveterado. Comecei a ler com quatro anos e minha mãe começou a me dar livros. Li muito gibi, adorava quadrinhos, e minha geração foi uma geração que lia bastante gibi. Além de ouvir bastante rádio.

O que mais contribuiu para sua formação e a de outros artistas de sua geração que renovaram os palcos brasileiros?

Quando cheguei a São Paulo, comecei a frequentar as oficinas de atores que o Vianinha [o dramaturgo e diretor Oduvaldo Vianna Filho, 1936-1974] fazia com o Sadi Cabral [ator, 1906-1986] e com o [Gianfrancesco] Guarnieri [ator, diretor e dramaturgo, 1934-2006] no Teatro de Arena, provindos da Escola de Arte Dramática (EAD). Mas, antes de vir para São Paulo, eu assisti a uma aula ilustrada do teatro feita pelo Alfredo Mesquita [ator e autor, 1907-1936, fundador e primeiro coordenador da Escola de Arte Dramática (EAD), que entrou em atividade em 1948] com atores da escola. Pensei: “Agora sei o caminho. Vou fazer exame para a Escola de Arte Dramática”. Ao mesmo tempo, eu queria ser arquiteto, então, falei para meu pai que ia a São Paulo para estudar arquitetura e teatro. Mas, é claro, o teatro me roubou. Peguei toda a efervescência cultural de 1957. Já conhecia o Zé Celso, porque tinha um amigo da EAD que era amigo dele. Conheci o Zé Celso vindo de Araraquara, de terno, gravata. Em Santos, uma cidade mais liberal, eu já falava palavrão e me lembro que falei alguns na frente do Zé e ele ruborizou.

Como era o ambiente teatral nessa época na capital paulista?

No ano em que estreava Eles Não Usam Black-Tie [espetáculo de 1958, de Guarnieri, que inicia a fase nacionalista do Teatro de Arena], também inaugurou o Teatro Oficina. A Escola de Arte Dramática era um centro cultural. Eu também frequentava a Biblioteca Mário de Andrade, que era outro centro cultural da época. Além de ser da turma da biblioteca, também era do entorno, nos bares. E já de cara comecei a conviver com muitos artistas. O Arena tinha aquelas propostas de fazer autores não montados, enquanto o TBC [Teatro Brasileiro de Comédia] continuava seu trabalho e tinha a aura da Vera Cruz e de outras produtoras de cinema.

De que forma sua geração queria romper com o que se fazia na encenação?

A nossa geração já tinha um anseio pela modernização. Vieram as teorias do Stanislavski [ator, diretor, escritor e pedagogo russo que desenvolveu um sistema de interpretação, 1863-1938], com o Augusto Boal [Augusto Pinto Boal, 1931-2009, diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta] que chegou com o método dos Estados Unidos, e com Eugênio Kusnet [ator, diretor e professor de teatro russo radicado no Brasil, 1898-1975], o Stanislavski de Moscou, com suas particularidades. Tudo isso na busca de um jeito brasileiro de interpretar. Até então, as grandes influências eram companhias italianas e francesas. O TBC, por exemplo, é totalmente italianado. Enquanto isso, em Recife, tinha Ariano Suassuna [1927-2014] e Hermilo Borba Filho [1917-1976] e do sul vieram Antônio Abujamra [1932-2015], Walmor Chagas [1930-2013], entre outros. Mas a modernização do teatro no Brasil começa nos anos 1940, no Rio de Janeiro, com [o diretor e ator] Ziembinski [1908-1978].

Como foi seu encontro com Antonio Abujamra e a formação do Grupo Decisão nos anos 1960?

Conheci o Abu no último ano da EAD, quando ele tinha acabado de fazer um estágio com o Berliner Ensemble [companhia de teatro alemã fundada pelo dramaturgo Bertolt Brecht em 1949]. E a minha escola, apesar de seguir os padrões do Conservatório Dramático francês, uma formação clássica, tinha também um viés de modernidade. E quando tinha exame na escola, os diretores de teatro vinham nos assistir para já contratar a gente que saía da escola e já ia para uma companhia. Foi quando começaram a se formar grupos. O Abujamra falou que ia formar o Grupo Decisão. Foi aí que fiz minha primeira peça profissional, dirigida pelo Abu. Era uma adaptação de Antígona. Éramos eu, Dina Sfat [1938-1989] e o Cláudio [Mamberti, 1940-2001]. Eu já tinha visto o Abujamra dirigir a Cacilda Becker [1921-1969] em Raízes [do dramaturgo inglês Arnold Wesker], que já era o moderno teatro inglês, abordando temas sociais. Então, tínhamos que ter um teatro brasileiro que colocasse em cena a realidade do país naquele momento. Eles Não Usam Black-Tie foi um acontecimento, porque a peça colocava o operário e as greves em cena.

O partido comunista norteava a estética das peças que esse moderno teatro brasileiro produzia?

Não. Nossa ideia sempre foi fazer um teatro que refletisse a realidade brasileira, porque o TBC era um teatro de elite, apesar de termos visto nele o nascimento do teatro moderno brasileiro. Já é um teatro a partir da visão do diretor, de uma concepção cênica onde o diretor é determinante. A própria Dulcina de Moraes [1911-1996], quando faz [em 1944] Bodas de Sangue, de Garcia Lorca, percebe claramente isso. Antes não havia um diretor, mas a figura de um encenador. Quanto ao partido, ele não fazia interferência. Outra questão importante era buscar espaços que pudessem acolher [essas produções teatrais]. Se fosse em espaços elitizados, as pessoas não iam, porque não tinham o hábito de ir ao teatro e porque era caro. O CPC da UNE [o Centro Popular de Cultura, criado em 1961, foi uma associação ligada à União Nacional dos Estudantes com o propósito de construção de uma “cultura nacional, popular e democrática”] foi revolucionário, porque ele fazia teatro na rua. Ou seja, havia público, sim: não um público pagante, mas formador.

Também foi na capital paulista que um episódio curioso aconteceu entre você e o filósofo Jean Paul Sartre. Como foi?

Eu cheguei a conhecer Sartre pessoalmente. Quando ele veio ao Brasil, por acaso o descobri no jardim da praça da Biblioteca Mário de Andrade. Ele e Simone de Beauvoir estavam hospedados no Hotel Jaraguá e eu tinha acabado de assistir a uma conferência dele e tinha ido jantar ali por perto. De repente, vejo os dois de chinela, na praça. Sentei-me no chão e fiquei conversando com eles por uma hora e meia. Eles foram acessíveis, maravilhosos. Foi algo importante, porque A Idade da Razão mudou a minha vida com o existencialismo. Você tem dois marcos na vida – o nascimento e a morte – e o que está no meio é você quem escolhe. Essa autonomia sobre a qual o Sartre falava influenciou a minha geração.

Além de conhecer filósofos e artistas fundamentais para seu desenvolvimento como ator e diretor, com quem você já contracenou que marcou sua carreira?

Certamente, Cacilda Becker. Ela era excepcional e assisti a tudo que ela fez. Raul Cortez [1932-2006], com quem fiz muitas peças – O Balcão, Drácula, Chuva, Noite de Campeões –, só que o Raul tinha algum problema de disputa, feito criança. Mas ele tinha um fogo em cena. Outro ator memorável com quem trabalhei foi o Fauzi Arap [1938-2013]. Ele era, de certa maneira, uma encarnação stanislavskiana, ele vivia os personagens quase no limite do transe, além de ter um carisma... Fauzi era padrinho do meu filho Carlinhos, e a gente teve uma relação muito próxima. Também era o “demônio” para trabalhar, de temperamento forte, exigente, como o Raul, apesar de ser um homem generoso. Outro ator fulgurante com quem trabalhei é o Marco Nanini. Também teve Fernanda Montenegro, que é maravilhosa. Outra coisa linda que fiz foi Pérola [peça do dramaturgo brasileiro Mauro Rasi], com Vera Holtz: um momento extraordinário. Nós acabamos de comprar os direitos autorais para fazê-la de novo. 

E quanto aos diretores?

O primeiro foi o Alberto D’Aversa [1920-1969], com quem fiz Bodas de Sangue e Os Persas. Ele foi um grande amigo meu, frequentava minha casa em São Paulo e, se estivesse em Santos, meus pais o recebiam. Foi um grande mestre. Outro mestre foi o Abujamra. Também teve o [Gianni] Rato [1916-2005], talvez o diretor com quem eu mais trabalhei e por quem tenho uma admiração profunda. Em outro plano, o Mauro Rasi [1949-2003], que me falava: “Eu vou ser o seu autor. E depois de Pérola, fiz três peças dele. No cinema, com Rogério Sganzerla [1946-2004] e Arnaldo Jabor. Mas dois dos melhores trabalhos que já fiz na minha vida foram dirigidos pelo Paulo José. Um foi a peça Réveillon [de Flávio Márcio], com a qual ganhei todos os prêmios de 1975, e foi encenada no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação.

No teatro, você sente que faltou interpretar algum personagem?

Sei que sou um ator muito eclético e um ator de composição. Tanto que eu fazia muitas colagens nas paredes e espelhos dos camarins. Uma vez o Flávio Império [cenógrafo, arquiteto e artista plástico brasileiro, 1935-1985] viu e falou: “Seus personagens são colagens de imagens que você vai colecionando. É assim que você cria”. E é verdade. Também foi importante, e não posso deixar de falar do Castelo Rá-Tim-Bum, uma das experiências mais marcantes da minha vida. O programa ainda faz parte do imaginário de muita gente. Nele eu fazia o Dr. Victor Stradivarius. Tanto que em qualquer lugar que vou, todos me cumprimentam com esse nome. Mas tenho carinho por uma galeria de personagens, como o Murilo de Réveillon, o Sr. Green, de Visitando o Sr. Green. Agora, algo que faltou? Tem um personagem de Shakespeare pelo qual tenho uma fascinação: Falstaff [presente em várias peças do dramaturgo inglês]. Ele é trágico, cômico e patético. E estou com a idade e o physique [porte físico de um ator ou atriz que favorece a personificação de um papel]. Então, espero realizar esse sonho com a energia que ainda tenho.

 

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