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Liberdade de criação
Educadora, professora, pesquisadora e escritora, Ana Mae Barbosa nasceu no Rio de Janeiro e foi criada no Recife. Graduada em Direito, na década de 1960, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi com o mestrado em Art Education, pela Southern Connecticut State College (1974), e com o doutorado em Humanistic Education, pela Boston University (1978), que ela abraçou sua vocação na arte-educação. Professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Anhembi Morumbi, teve de driblar preconceitos pela carreira escolhida, por ser mulher e nordestina. “Contaminada pela arte”, como ela mesma enfatiza, Ana Mae segue provocando especialistas e leigos sobre o papel do ensino da arte e sua capacidade de transformação na sociedade. Essas e outras questões foram abordadas no Congresso de Ensino/Aprendizagem das Artes na América Latina: Colonialismo e Questões de Gênero, realizado em abril, no Sesc Vila Mariana, idealizado pela educadora. Na ocasião, Ana Mae também lançou o livro Mulheres Não Devem Ficar em Silêncio – Design, Arte e Educação (Cortez, 2019).
Arte-educação
Temos coisas extraordinárias e experiências fantásticas de educação que estão paradas. Estamos falando muito de educação neste momento, em entrevistas, televisão, e outros meios. Mas não é só o sistema educacional que precisa mudar. Precisa mudar o sistema de acolhimento da educação, o sistema cultural para acolher a arte-educação. É muito difícil um artista se reconhecer arte-educador, mesmo que ensine na universidade. Assim como é muito difícil que um curador reconheça a arte-educação. Aliás, não sei se a gente ensina a arte, a gente contamina com a arte o indivíduo para que ela lhe sirva como uma coragem. Viajo muito sozinha e me perguntam se não me sinto isolada. A pessoa que tem o hábito da arte, que se entrosa bem com a arte e é contaminada por ela não se sente isolada em lugar nenhum do mundo.
Invasões bárbaras
Nosso desenvolvimento artístico não é autóctone, e sim colonizado. A primeira grande invasão cultural no Brasil foi a criação da Escola de Belas Artes, em 1816. Temos 200 anos de colonização, algo que segue me preocupando agora. Analisando essa história é que a gente vê como na arte continuamos a ser colonizados. Chega a ditadura. Ela é ambígua. E uma das coisas mais difíceis na vida é operar na ambiguidade. A arte no ensino se tornou obrigatória, algo que era uma conquista para a gente, mas foi a Universidade de San Diego que norteou o currículo mínimo de licenciatura em Artes Visuais, que operou nas secretarias de educação e na formação de professores. Prezou-se uma polivalência (dos professores), mas polivalência não é interdisciplinaridade. Interdisciplinaridade se faz na cabeça dos professores e na cabeça dos alunos. Precisamos de professores verticalmente aprofundados numa área e que horizontalmente se entendam através do projeto.
Assista aos vídeos deste Encontro:
Identidade própria
Aí saímos da ditadura, lembro de um congresso da Universidade de São Paulo, fomos rever o currículo e chamaram um professor espanhol que nunca viveu no Brasil para formar o currículo mínimo e dar licenciatura em Arte-Educação. É ele quem determina o currículo mínimo para licenciatura em Artes Visuais, o que determina os Parâmetros Curriculares que legislam em todo o Brasil. O país inteiro responde a um currículo feito por alguém que nunca viveu no Brasil. Ele fez todos os livros didáticos para o MEC de todas as áreas, inclusive os de Arte-Educação que os professores de Arte rechaçaram. Ou seja, novamente, dependência cultural. E agora? Walter Mignolo, um dos maiores estudiosos da América Latina, diz que não significa esquecer a Europa, mas significa olhar para a Europa como estudo de caso e não como modelo. O grande problema é transferir o modelo europeu para o Brasil sem pensar no contexto. O contexto tem que liderar porque ele é que impõe as necessidades de um país. Tem que liderar qualquer política educacional.
A PESSOA QUE TEM O HÁBITO DA ARTE,
QUE SE ENTROSA BEM COM A ARTE E É CONTAMINADA
POR ELA NÃO SE SENTE ISOLADA EM LUGAR NENHUM DO MUNDO
Razão e emoção
Para cada um de nós, a arte tem uma função. Para mim, nessa idade, uma das funções é consolar. Lembro quando meu marido ficou quatro meses numa UTI. Eu saía de lá para ver alguma coisa de arte, como maneira de me consolar. Aí, descobri: meu intelecto tem uma recepção e meu ser tem outra. Sou fã da arte digital. Acontece que me lembro de sair do hospital para uma exposição, mas saía zangada comigo porque não me sentia consolada. Aí, tinha outra exposição do Tomie Ohtake, de gravuras. Então, saía do hospital direto para essa exposição, pedindo aos céus para não encontrar ninguém e ficar sozinha dentro daquele espaço. Essas contradições a gente traz. Temos que trabalhar essas contradições dentro da gente e ser flexível com o aluno, porque ele também tem suas contradições.
Inteligência no parque
As teorias da criatividade mostram que para desenvolver uma capacidade criadora na ciência, você precisa de um QI alto. Agora, para você desenvolvê-la nas artes, não é necessário um QI alto. Não é o QI, nem a capacidade intelectual, que vai permitir que alguém seja criador em arte. Já provaram o contrário: trabalhando com arte, a gente desenvolve essa capacidade intelectual medida pelo teste de QI. Então, nós, que trabalhamos com arte, somos um pouquinho mais inteligentes do que seríamos se não estivéssemos trabalhando com arte. Mas há um movimento cerebral que não é completamente conhecido. Gosto da fala de [Albert] Einstein: “Criatividade é a inteligência se divertindo”.
ANA MAE BARBOSA
esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 11 de abril de 2019.