Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

@Pais_e_filhos

Fez a tarefa da escola? Estudou para a prova? Arrumou seu quarto? Esses são alguns exemplos de perguntas em um diálogo corriqueiro em muitos lares do mundo. Momento em que o pai ou a mãe checam se a lista de deveres da prole está mesmo em ordem. No entanto, essa rotina voltada para a “organização da casa” é a mesma capaz de os afastar de uma conversa além das praticidades do cotidiano. Ao final, pais e filhos podem se tornar estranhos compartilhando o mesmo teto. Você conhece seu filho? Sabe quais as necessidades dele e os sentimentos que o atormentam? “As formas de patologização atual das relações entre a família, a escola e a sociedade descrevem casos em que os adultos chegam a um ponto de dizer que ‘não se tem mais o que fazer’ com os filhos. Não conseguem impor limites nem frustrar expectativas”, observa a psicanalista Fani Hisgail, professora do curso de pós-graduação Cultura Material & Consumo: Perspectivas Semiopsicanalíticas, na Universidade de São Paulo (USP). Mas quando essa “falta”, ou ruído, da comunicação entre pais e filhos começa? E o que gera essa ausência de diálogo? Para a psicóloga Valdeli Vieira, “esse ambiente de estimulação e exigências constantes, no qual às vezes damos conta das demandas que nos são impostas por nós mesmos ou pelo outro, e outras vezes não, tem uma única consequência a todos: a exaustão. Exaustos, ao chegarmos a casa, só queremos ficar mergulhados no nosso mundo”. E é nesse ponto que, complementa a especialista, “começamos a nos distanciar do nosso parceiro e dos nossos filhos, porque passamos a nos tornar indisponíveis ao outro”. Sobre esse tema, Hisgail e Vieira levantam questionamentos e possíveis caminhos.

 

Pais e filhos: tão perto, tão longe

Valdeli Vieira
 

Suicídio, automutilação, depressão, bullying, violência no ambiente escolar. Há alguns anos essas eram palavras que se referiam a eventos que aconteciam distantes do ambiente em que vivíamos e criávamos os nossos filhos. Costumávamos compreender a ocorrência desses fatos como consequência de ambientes disfuncionais e caóticos, que certamente estavam muito distantes daquele que efetivamente oferecíamos a nossos filhos. No entanto, algo mudou.

Agora, não sabemos somente por intermédio da mídia que adolescentes e crianças estão apresentando esses comportamentos, mas sabemos por experiência própria: sabemos pelos grupos de WhatsApp da escola, pelo vizinho, pelo amigo e outras pessoas próximas que compartilham conosco as suas angústias diante desses fatos que repentinamente irrompem na sua vida. Se isso já não bastasse para assustar os pais, eis que surge o desafio da baleia azul e da boneca Momo, no ambiente que os filhos mais frequentam: o virtual, onde os pais pouco conseguem ontrolar a atividade dos filhos. “O que está acontecendo com nossos filhos?” e “Como podemos protegê-los?” são perguntas comuns nos consultórios de psicólogos e psiquiatras.

Essa é uma questão complexa e podemos analisá-la a partir de vários ângulos, nos quais um não se sobrepõe ao outro, mas o complementa. Na impossibilidade de esgotar esse assunto, minha opção será analisá-lo sob a ótica da (não) comunicação entre pais e filhos, presente no cotidiano da nossa sociedade.
 

Falta ou sobra

A sociedade contemporânea se assenta, segundo vários pensadores das ciências humanas, por uma polaridade: de um lado o excesso, de outro a falta. No entanto, há muitos anos a psicanálise nos ensina: todo excesso esconde uma falta. Vivemos um momento sócio-histórico de excessos de trabalho, compromissos, desejos, expectativas e estímulos que atingem indistintamente crianças, adolescentes e adultos.

Vivemos ocupados, com agendas cheias de cursos, reuniões, compromissos e atividades extracurriculares. Não há tempo a perder e nunca antes tivemos tanto a sensação de estarmos correndo em busca do tempo perdido. A excelência de desempenho acompanha a todos na escola, no trabalho, nos demais ambientes em que estamos inseridos. Estamos conectados permanentemente e devemos estar disponíveis todo o tempo.

Esse ambiente de estimulação e exigências constantes, no qual às vezes damos conta das demandas que nos são impostas por nós mesmos ou pelo outro, e outras vezes não, tem uma única consequência a todos: a exaustão.

Exaustos, ao chegarmos a casa, só queremos ficar mergulhados no nosso mundo, para de certa forma termos (ainda que na nossa fantasia) uma compensação pelas frustrações enfrentadas ao longo do dia. E é nesse ponto que começamos a nos distanciar do nosso parceiro e dos nossos filhos, porque passamos a nos tornar indisponíveis ao outro.

Educar filhos, formá-los, é tarefa para a vida inteira e exige disposição, tempo, vitalidade e dedicação, e o fato é que, embora na teoria estejamos todos comprometidos com isso, na prática nem sempre estamos dispostos. Terceirizamos essas tarefas para professores, psicólogos, avós e babás. E, quando não temos essas pessoas à disposição, silenciamos as crianças dando-lhes a possibilidade de passar horas diante de alguma telinha: se antes era a televisão, hoje vemos crianças em idades cada vez mais precoces com um Ipad na mão. Não queremos ser perturbados no nosso mundo, no nosso silêncio e, sem percebermos, vamos criando abismos nas nossas relações.

 

A comunicação entre pais e filhos é construída na intimidade e proximidade: quando elas não existem, não existe comunicação

 

Desconectar para reconectar

Nunca estivemos tão conectados ao mundo virtual e tão desconectados do mundo real. Cena comum é vermos famílias inteiras sentadas em uma mesa em um restaurante e cada um com um celular na

mão: não conversam, não interagem. Ou, então, pais com os filhos no parque, onde estes ficam brincando sozinhos enquanto os pais estão teclando no seu aparelho. E, assim, os momentos de interação de pais e filhos só ocorrem em situações de conflito, quando há um problema a ser resolvido.

“Mas eu converso com meu filho!” – me falam os pais. E quando eu pergunto sobre o que conversam, a resposta é invariavelmente: “Ah... Eu pergunto como ele foi na prova, se fez a lição, essas coisas de escola”. Ou seja, as conversas entre pais e filhos envolvem, na sua maioria, perguntas sobre o seu desempenho escolar. Poucos pais sabem dizer quem são os amigos do seu filho; qual a sua brincadeira preferida; qual o seu super-herói favorito; o que os faz sentir inseguros e com medo. “Ah, meu filho não gosta de conversar comigo” – me dizem alguns. Talvez ele não tenha aprendido a fazer isso...

Crianças e adolescentes gostam, sim, de conversar, se forem estimulados a isso. O fato é que muitas vezes inibimos o diálogo para não sermos perturbados e, quando nos damos conta, quase nos tornamos estranhos uns aos outros dentro de uma mesma casa.

A comunicação entre pais e filhos é construída na intimidade e proximidade: quando elas não existem, não existe comunicação. Assim, as crianças e adolescentes são mergulhados num universo de solidão e vão procurar acolhimento e atenção em ambientes e espaços virtuais em uma condição de vulnerabilidade que os deixa expostos aos mais diferentes riscos.

Concluo minhas reflexões lembrando que nunca é tarde para começar a fazer diferente, para fortalecer vínculos com os filhos: basta, para isso, que se tenha uma genuína disposição interna e sensibilidade para entrar no mundo deles com delicadeza e cuidado. Comece hoje, comece agora. Em vez de perguntar a ele como foi na prova, pergunte o que o fez rir.

Em vez de perguntar o que ele aprendeu no dia de hoje, pergunte se algo o deixou triste. Permita que ele fale de suas emoções, receba suas dúvidas, converse sobre o mundo, sobre a vida. Permita-se conhecê-lo e permita que ele o conheça. Seja presença. Crianças e adolescentes estão sofrendo no silêncio de seu quarto, então dê ao silencio uma voz, porque só assim você conseguirá protegê-lo de tudo aquilo que hoje assusta não só a ele, mas a você também.

 

VALDELI VIEIRA, é psicóloga, neuropsicóloga e

psicanalista, mestre pela Universidade Federal

de São Paulo (Unifesp); colaboradora do Hospital

Dia Infantil do Instituto de Psiquiatria do Hospital

das Clínicas da Faculdade de Medicina da

Universidade de São Paulo (HCFMUSP).

 


 

A família e seus destinos

Fani Hisgail
 

A infância e a adolescência tecem a história pessoal e fornecem, a cada um de nós, os elementos de construção do “mito individual do neurótico”, com o qual se vive e revive dentro dos complexos familiares. A família surge com o nascimento do filho, quando, aos poucos, vai se produzindo certa realidade psíquica de expressão do meio ambiente, dos fatores culturais e das normas vigentes da sociedade. As representações do grupo doméstico em família se baseiam pelas contingências hereditárias e étnicas e pela região do planeta, mas a lógica que permeia a lei da descendência edípica tem considerável cota de importância para o grupo social, ao fundar a lei simbólica.

Os fatos psíquicos da família humana são as manifestações da linguagem inconsciente inscrita na relação mãe-bebê, sendo que, nas primeiras impressões de prazer e desprazer, o ser desponta pelas sensações corpóreas e pela identidade de percepção da experiência vivida. Contudo, o Eu se estrutura a partir da fase preliminar da vida (0 a 2 anos), sendo que esse período, segundo o psicanalista Jacques Lacan, “representa a forma primordial da imago materna”, que serve de base para todas as identificações que o sujeito irá projetar na vida adulta.

O complexo do desmame designa, na satisfação oral do bebê, uma usina pulsional que fabrica e jorra a libido em todos os lados e direções. Quando suplanta a necessidade, alcança a satisfação de prazer da saciedade da fome. Nos animais, o instinto materno cessa quando a amamentação se completa; entre nós, o desmame constitui, no aparelho psíquico, um lugar de morada para o Eu, o narcisismo infantil.

Como dizia Freud, His Majesty, the Baby, isto é, Sua Majestade, a Criança, pois a pauta aqui é a constituição do imaginário. São as imagens idealizadas e fantasiadas da criança que fazem frente à instância comparadora, dos valores e ideais dos pais. Trata-se da expansão narcísica dos ideais e desejos dos pais quando o bebê reconhece a si mesmo no sorriso da mãe.

O desenvolvimento infantil se entrecruza com a dimensão do mito social, familiar e individual; desse ponto de vista, a constituição humana do sujeito se compõe pelo genitor biológico, a mãe e o filho. Assim, a estrutura dos complexos familiares modela três lugares vazios a serem preenchidos conforme o estatuto vigente de família na sociedade contemporânea.
 

Grande família

No Brasil, o conceito de família se alargou nos últimos 20 anos. A comunhão afetiva assegura às uniões homoafetivas o direito de procriação e criação dos filhos, especialmente com os avanços das múltiplas formas de reprodução assistida. Entretanto, em muitos lares brasileiros e no mundo contemporâneo, a sociedade impõe um determinado status no campo dos complexos familiares, com modelos de famílias que se organizam segundo a classe social, grau de instrução, situação econômica, entre outros.

As formas de patologização atual das relações entre a família, a escola e a sociedade descrevem casos em que os adultos chegam ao ponto de dizer que “não se tem mais o que fazer” com os filhos. Não conseguem impor limites nem frustrar expectativas e exigências mercantilistas da garotada. São reféns de um mandamento de que ter é também ser o objeto de consumo e a satisfação garantida da submissão forçada aos pequenos escravos do mercado.

As demandas básicas das etapas do desenvolvimento infantil são sobrepujadas por demandas inventadas que a sociedade de consumo impõe à família e à escola. A criança vai, por tentativa e erro, se moldando até onde consegue. Os mais frágeis desenvolvem sintomas e a medicalização infantil se expande em larga escala para acalmar pais e mestres.

Entretanto, a expressão dos afetos no seio familiar demonstra como a “função possessiva” sobressai nas relações do grupo doméstico. O sentimento de posse, vivido por um ou outro, desenvolve na experiência humana a agressividade entre os laços libidinais parentais, dentro de um campo de batalha geracional e de gênero. As “formas intoxicantes” da vida cotidiana expõem, no sofrimento psíquico de filhos e pais, os sintomas da cultura presentes no grupo social.
 

As “formas intoxicantes” da vida cotidiana expõem, no sofrimento psíquico de filhos e pais, os sintomas da cultura presentes no grupo social


Maternidades

No Brasil, a licença-maternidade é de quatro meses e, invariavelmente, o desmame costuma ocorrer com aviso prévio. O drama e a angústia que muitas mães vivenciam nesse período mostram como as fantasias de abandono e de descuidos para com o bebê são culpas que se cultivam, tornando-as eternas devedoras. Muitas delas são obrigadas a deixar a criança com os avós ou babás ou, quando regressam do trabalho, exaustas, têm que cuidar da casa ou de outros filhos; por fim, dormir, se conseguir...

As mães já não conseguem mais exercer a maternagem; a satisfação psíquica que a mulher deveria ter para se assegurar de que preserva a criança do abandono nem sempre corresponde.

Na perspectiva materna, o desmame pode ser penoso e sofrido, em que a fantasia de morte é a expressão da tendência psíquica à morte. Da mitologia grega, a Medeia de Eurípedes encarna o semblante da mãe que assassina os filhos para se vingar do marido que a abandona; enquanto isso, nos dias de hoje, o mito do amor materno não dá conta de uma relação saudável e sem conflitos.

Afinal, qual é o horror que se enuncia na relação mãe-filho, sobre um prazer contaminado pelo sinistro quando a força mágica da Cuca assusta a ambos?

O desejo da mãe é soberano e pulsa sob a insígnia da mãe fálica; para agradá-la, é suficiente ser o falo, ainda que o filho deslize numa sequência de importância em que a sorte estará lançada.

No complexo do desmame, ambos são sobreviventes da função possessiva que a civilização deixou como legado do sentimento de posse do amor do Outro.

De outro modo, o conhecimento humano se igualaria ao animal. Por fim, a saturação desse complexo funda o sentimento materno que se desdobrará no destino familiar e de descendência, desde que a função paterna faça a parte que lhe cabe nessa operação de corte da mãe com o filho.

 

FANI HISGAIL, é psicanalista e professora do curso lato senso Semiótica Psicanalítica: Clínica da Cultura, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e do curso de pós-graduação Cultura Material & Consumo: Perspectivas Semiopsicanalíticas, na Universidade de São Paulo (USP); autora de Pedofilia: Estudo Psicanalítico (Iluminuras, 2007), entre artigos e outras publicações.

 

revistae | instagram