Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Caranguejo digital


Capa do disco Da Lama ao caos, de Chico Science & Nação Zumbi, que em 2019 completa 25 anos

 

Nas águas pelas quais passeia a história da música brasileira, certos álbuns são divisores. Criações que ousaram navegar rumo a novas direções sonoras e que se tornaram referências. Discos como Chega de Saudade, que marcou a estreia do músico João Gilberto, em 1959, e anunciou a bossa nova. Ou Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968, reconhecido como disco-manifesto e símbolo do tropicalismo, com composições e interpretações de artistas como Tom Zé, Caetano Veloso e Mutantes. Nas últimas décadas, outros álbuns desembarcaram com versos, acordes e batidas capazes de refletir uma época – uma cena cultural, social, política e econômica do país.

Esse é o caso de Da Lama ao Caos, de Chico Science & Nação Zumbi, que em 2019 completa 25 anos. Disco produzido por Liminha (ex-Mutantes) e que segue bulindo com a inventividade de artistas contemporâneos. Afinal, como descreve o jornalista Lauro Lisboa Garcia, organizador da coleção de livros digitais Discos da Música Brasileira (Edições Sesc São Paulo), esse álbum é a “estrela-guia do manguebeat”.

“Pelo contexto histórico, pelo tempo de maturação, pela gama de influências sonoras e pela consequente revitalização de toda a cultura pernambucana em diversos aspectos, pode-se dizer que o manguebeat foi o último grande movimento da música brasileira popular de alcance nacional e internacional”, escreve Garcia no prefácio de Da Lama ao Caos – Que Som é Este Que Vem de Pernambuco?, primeira obra da coleção, lançada neste mês.
 

DESORGANIZAR PARA ORGANIZAR

Resultado de entrevistas com músicos, produtores, diretores de gravadora, designers, fotógrafos e jornalistas, o livro foi escrito pelo jornalista paraibano José Teles, radicado em Recife desde a década de 1960. É ele quem costura as histórias narradas pelos protagonistas do manguebeat e por outros personagens que participaram dos bastidores do disco que colocou o Recife no centro da cena cultural dos anos 1990.

Também são reveladas recordações e vivências do próprio autor, jornalista da área de cultura, que conheceu Francisco de Assis França, antes de se imortalizar como Chico Science. “Quando compôs a música Da Lama ao Caos, Chico Science não tinha lido nada de Josué de Castro, mal sabia de quem se tratava, a bem da verdade. Soube do livro Homens e Caranguejos em 1993, quando foi numa manhã à minha casa, com Fred Zero Quatro, para uma audição da primeira demo da cena que estavam arquitetando”, escreve. 

Naquele momento, “enquanto escutava a fita, lembrei-me do romance de Josué de Castro, como ele tinha a ver com as letras de Chico Science e como o mangue tinha tanto a ver com o Recife. Lembro que Chico se entusiasmou e me pediu o livro emprestado. Chico foi embora com Josué na cabeça.

A citação a Josué (sem sobrenome) está na canção Da Lama ao Caos e, em Afrociberdelia, na faixa Cidadão do Mundo”, recorda Teles, no livro.

No entanto, o escritor reforça: “A gente conversava mais profissionalmente”. Momentos esparsos, em bares, na mesma roda de papo. “Uma conversa que tivemos mais longa, mais legal, foi numa tarde, num bar de caranguejo, no Pina. Quando estourou o manguebeat, viraram uma praga os bares que vendiam caranguejo. Eles acabavam de voltar da segunda turnê europeia, conversamos à tarde, eu, Paulo André, o produtor da banda, Jorge du Peixe e Chico Science. Era um bar de rodízio de caranguejo, mas nenhum mangueboy quis saber de crustáceo”, brinca.
 


Foto: Ricardo Labastier

Dividido em cinco capítulos, o livro também convida o leitor a interagir com a obra, sendo possível clicar em links que levam a canções e a imagens relacionadas ao álbum. Páginas que desembocam na grande navegação de Da lama ao Caos por ondas sonoras dos quatro cantos do mundo.

Jorge du Peixe contou que certo dia viajava com Chico num ônibus de Rio Doce para o Centro do Recife, quando o amigo se voltou para ele e disse: “O nome da parada é mangue”. O pessoal que se reunia no bar Cantinho das Graças, no bairro homônimo, na ZN do Recife, garante que, certa noite, Chico chegou lá e anunciou que o nome daquele novo ritmo seria mangue. As versões variam, mas sempre concordam num ponto: foi Chico Science que surgiu com essa história de batizar de mangue a cooperativa, ou seja lá o que fosse, que eles estavam formando.

Trecho do livro Da Lama ao Caos – Que Som É Este Que Vem de Pernambuco?, de José Teles (foto), Edições Sesc São Paulo, 2019

 

Escrito e amplificado

Coleção de livros digitais revela detalhes de como surgiram álbuns históricos

Além da revolução provocada por Da Lama ao Caos, outros projetos icônicos farão parte da coleção Discos da Música Brasileira. Na curadoria, outros quatro títulos vão trazer obras de diferentes cenas e momentos da música brasileira. Uma seleção que foge de clássicos como Chega de Saudade ou Tropicália ou Panis et Circenses. “Posso adiantar que, a exemplo do álbum de Chico Science & Nação Zumbi, são discos muito conhecidos e festejados tanto pelo público como pela crítica. E que logo eles chegarão por aí”, adianta Jefferson Alves de Lima, coordenador editorial das Edições Sesc São Paulo.

Concebida exclusivamente para o formato digital, essa coleção permite novas experimentações sensoriais. A narrativa se soma a links que conduzem o leitor por acervo audiovisual. Discos da Música Brasileira integra-se a um catálogo que, atualmente, é composto por dez livros disponíveis apenas como e-books, além de outros 125 títulos de obras impressas que foram digitalizadas. Publicações que abordam desde música até cultura digital, da comunicação à saúde, da educação aos quadrinhos.

O propósito desta coleção é “olhar esta riqueza da música por meio dos álbuns, destes grandes discos, estas peças sempre feitas como uma criação coletiva e que são, inevitavelmente, marcadas por seu contexto, por sua época”, explica Jefferson. Principalmente porque “a música, como expressão artística, como forma de conhecimento, como reflexo do imaginário que marca uma sociedade, é um campo privilegiado para observarmos e refletirmos sobre a cultura”, complementa. O livro pode ser adquirido nas plataformas: Amazon, Apple iBooks Store, Google Play Livros, Kobo ou Wook. Mais informações em bit.ly/lamaaocaos.

 

revistae | instagram