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Entrevista com Ana Mae Barbosa
"Não sei se a gente ensina arte. Acho que a gente contamina com arte"
Com 82 anos, Ana Mae é uma grande pensadora da educação brasileira. Pioneira da arte-educação no Brasil, a carioca de nascimento, que foi criada em Pernambuco, é graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, mas não seguiu a profissão.
Ana Mae é referência no Brasil para o ensino da arte nas escolas, e a primeira brasileira com doutorado em arte-educação, pela Universidade de Boston. Defende a necessidade de educadores atualizados, a existência da arte nas escolas e o acesso aos trabalhos contemporâneos para todos atingirem o máximo do desenvolvimento integral.
Aluna de Paulo Freire, Ana desenvolveu a abordagem triangular, uma forma de ensinar por meio da arte. Ela atua fortemente na luta para que o direito à arte se concretize e, cada vez mais, todos possam exercer sua criatividade de diferentes maneiras e em espaços variados.
MAis 60: Ana, a gente sempre começa a entrevista pedindo à pessoa para falar um pouco sobre sua história de vida, suas origens, cidade em que nasceu...
ANA: Eu nasci no Rio de Janeiro. Eu me apresento como pernambucana porque não me sinto como carioca. Você é de onde sua cultura foi feita, foi construída, e eu saí do Rio de Janeiro com três anos de idade. A minha vida foi extremamente pontuada com duas coisas, mortes e política. Meu pai morreu quando eu tinha três anos, eu nasci e morava no Rio, a minha mãe, que era de Maceió, nunca havia trabalhado fora na vida dela e teve que se confrontar com isso. Ela não quis voltar para a casa dos pais e com toda a razão, porque senão ela ia ficar sendo tutelada. Ela resolveu ir para o Recife, que ficava próximo, mas não conhecia ninguém. Eu fico impressionada com a coragem da minha mãe. Naquela época, 1939. Ela saiu do Rio, foi para o Recife, fez um concurso na Caixa Econômica, ela era musicista, tocava piano, mas se inscreveu na Caixa Econômica, que era a única que aceitava mulheres. Acho que foi a primeira instituição a aceitar mulher, a empregar mulheres. E me levou com ela. Eu não sei como ela fazia, não tenho lembranças disso, mas imagino como era difícil ter uma criança com três anos...
E você não tem irmãos?
Não tenho. Eu com três anos de idade e ela tendo que trabalhar. Aí eu adoeci, o médico que foi atendê-la era solteiro, se apaixonaram e aí eu tenho fotos engraçadas da minha mãe, toda de luto pelo meu pai, comigo, na casa que eles estavam alugando para quando casassem, mas ela não podia casar antes de um ano, para esperar o luto do meu pai. Coisa mais maluca que tinha antigamente. Aí, infelizmente, ela morreu quando eu tinha seis anos e fui criada pela minha avó materna, meus avós maternos. Meu avô já tinha tido um AVC e não compartilhava tanto a minha educação, mais minha avó, que era uma mulher fortíssima. Logo que ela casou, o marido teve um AVC e ela assumiu a família toda. Então, eu fui para Maceió, entre seis anos e 14 anos, eu vivi em Maceió. Por exemplo, primeiro, fui educada em colégio de freiras, depois descobri que tinha coisa melhor. Eu me lembro de que com 12 anos de idade saí para tentar me matricular no Instituto de Educação, que era considerado a melhor escola em Maceió. Precisei convencer minha avó que dizia que as meninas eram muito independentes nesse Instituto de Educação. Enfim, fui para lá e acho que foi a minha salvação. ((risos))
E aí você...
Aí meu avô morreu. Por isso que eu falo que minha vida foi pontilhada. Meu pai morre, vou para Recife, minha mãe morre, vou para Maceió, meu avô morre e vou para o Recife de volta, porque meu tio, único filho da minha avó, morava no Recife. “Eu não vou deixar vocês duas aqui sozinhas, vamos embora”, e foi, para mim, uma experiência extraordinária, porque a mulher do meu tio, naquele momento, tinha duas sobrinhas da minha idade, e aí minha adolescência foi uma festa, muito reprimida do ponto de vista sexual, namorar não, essas coisas, mas era muito festiva. Eu vivia em festas e sempre os pais delas levando, acompanhando. Era tudo muito reprimido, mas era festivo. Engraçado, porque a gente hoje conversando, nós três, era gozado, era repressão, mas a gente não sentia a repressão. E era muito festivo. ((risos)) Aí, o conflito com minha avó começou quando eu resolvi fazer faculdade.
Faculdade de Direito?
Primeiro eu queria Medicina, e ela era como uma dinossaura, foi para cama, pressão alta, chama o médico, a tal história, “essa menina me mata”, ((risos)) “imagina, fazer Medicina, cheio de homens, vendo cadáveres nus”, era isso que ela não aceitava, e era muito forte. E eu tive que abdicar da Medicina e fui para o Direito. Na minha época, eram três áreas que o bom aluno tinha para escolher: Medicina, Direito ou Engenharia. Eu odiava Matemática, Medicina eu não podia, fui para a vala comum do Direito, que era uma faculdade muito interessante, a do Recife, naquela época, muito política e tudo. Mas foi assim, eu saia de casa escondida para fazer o vestibular, e o vestibular de Direito era um espetáculo lá no Recife na época. Fala-se muito hoje sobre a cultura do espetáculo, na época, virou a educação do espetáculo, que era do estudante de Direito, que tinha que fazer seus discursos inflamados... As provas, na faculdade de Direito, eram em anfiteatros, até hoje são em anfiteatros e ia gente assistir à performance dos candidatos, de outros anos, de outras faculdades.
Em que momento você conheceu Paulo Freire?
Eu entrei na faculdade de Direito e, mais ou menos ao mesmo tempo, conheci Paulo Freire. Eu tinha pânico de me tornar professora, porque minha avó tinha me obrigado a fazer o curso pedagógico na época, que era de terceiro grau. Era, na minha época, mais ou menos como estão querendo, havia três escolhas: o clássico, para quem ia fazer Letras, científico, para quem ia fazer Ciências e o pedagógico, para quem ia parar de estudar e se tornar professora. Era para meninos e meninas, mas a minha escola, por exemplo, que era o Instituto de Educação de Pernambuco, era só de mulheres. Eu sentia que com tudo que eu havia estudado, que era quase tudo voltado para a escola primária, eu não ia passar no vestibular de Direito, que tinha carga pesada de latim. Aí eu quis fazer a preparação do vestibular, e minha avó: “Não, de jeito nenhum, não precisa fazer universidade, eu não vou pagar cursinho para você”, e eu: “Ah, então vou trabalhar” e ela disse: “Tudo bem”. E eu: “Vou pedir emprego para a mãe ou pai de alguma amiga minha”. Ela disse, “Não, a única profissão decente para mulher é ensinar”. É impressionante como eu obedecia. Obedecia reclamando, argumentando, mas fui fazer um preparatório para um concurso de professores primários e quem organizou esse curso: Paulo Freire e Elza Freire, a mulher dele, os dois estavam organizando. Paulo Freire já estava começando a desenvolver a epistemologia dele, no sentido de que você tem que começar a aprender através do seu campo de referência. Ele (Paulo Freire) foi meu professor de português, de teoria da educação e como professor de português, a primeira coisa que ele me mandou escrever foi o seguinte: digam por que vocês querem ser professoras.
E como foi esse primeiro exercício que o Paulo Freire te passou?
Eu estava uma fera, porque não queria ser professora. Era um curso diário, intensivo, no dia seguinte ele deu as redações de todo mundo e não deu a minha. “E a minha?”. “Ah, eu quero conversar com você depois. Vem amanhã mais cedo”. Eu fui mais cedo e ficamos conversando três horas. Ele me mostrou que educação não era o que eu tinha tido, que eu tinha tido uma repressão. Uma repressão carinhosa, porque minha avó era muito carinhosa, mas era repressão. Tinha que seguir as normas da sociedade, por mais absurdas que fossem. Aquelas de “conheça o seu lugar de mulher” ((risos)). E aí a gente teve uma relação extraordinária, porque ele foi meu professor, eu fui professora da filha dele, Madalena. Madalena foi professora da minha filha, Ana Amália. Ana Amália foi professora da Carolina, filha da Madalena. Então, foi uma tessitura educacional de geração para geração. E ficamos muito amigos.
E a partir daí você foi se interessando?
A partir daí, entrei em Direito, mas chegando no meio da faculdade – a faculdade de Direito foi uma das piores experiências educacionais que eu tive, porque era muito machista na época – eu comecei a namorar com meu marido no primeiro dia de aula.
Você sofreu preconceito por ser mulher?
Muito, era muito, muito mais dos professores do que dos colegas. Porque os colegas, não sei bem por que respeitavam. Se era por ser namorada de um colega, não lembro bem o motivo. Mas era assim, a mulher que entrava na faculdade de Direito já era suspeita de se tornar amante de alguém, de um professor, de um juiz, de alguma coisa assim. Nós éramos oito para 200 homens. Eu tive o azar de passar em segundo ou terceiro lugar, não me lembro bem em qual lugar, mas foi um dos três lugares. Eu me lembro do primeiro dia de aula de Introdução à Teoria do Direito, o professor fez uma pergunta e me chamou para responder, e eu não soube. Daí ele falou: “Está vendo, passou na frente de vocês todos e não sabe nada”. E não jogou a pergunta para a turma. Ele sabia que ninguém iria responder. Então, essa foi minha primeira experiência. Até o último dia de Direito, houve esse tipo de preconceito. Poucos professores foram respeitosos. Havia professores respeitosos, mas eram poucos. A maioria deles era brutalmente machista. Era de desqualificar. Eu brincava muito com meu marido, com quem fui casada 47 anos, eu brincava com ele dizendo que eu começara a namorar com ele para me proteger. ((risos)) Casamos no quarto ano.
E você não chegou a atuar?
Nunca. Eu já estava engajada com Arte-Educação. Paulo Freire, àquela altura já era presidente da escola de Artes do Recife, no curso que eu fiz com ele, veja como Recife era pioneiro em muitas áreas de cultura, já havia Arte-Educação como disciplina no curso que o Paulo Freire organizou. Já tinha feito o tal do concurso para professora, tinha passado em segundo ou terceiro lugar, aí o secretário da educação mandou escolher para onde eu queria ir, eu escolhi ir para a escolinha, que não era pública, mas tinha professores da rede pública na escolinha para poderem dar estágios para professores da secretaria, dar cursos para professores da secretaria, então, eu escolhi lá e fiquei lá.
E o que é Arte-Educação, Ana Mae?
Eu não mentiria a você que não é ensino de arte. Não sei se a gente ensina arte. Acho que a gente contamina com arte. A ideia é aproximar o ser humano, em qualquer idade, da arte. Fazê-lo buscar arte. Cada um com seu motivo para buscar arte. O meu, por exemplo, como eu não sou muito religiosa, quer dizer, oficialmente eu sou católica, mas eu não sou praticante. Ao longo da vida fui deixando de ser praticante, embora minha raiz cultural seja católica, mas, para mim, a arte é muito consoladora. Eu me lembro de meu marido no hospital, na UTI, passou muito tempo na UTI, eu ia todos os dias vê-lo, saía, sempre para ver alguma coisa de arte para me consolar. Tive surpresas interessantes, por exemplo, eu sou uma fã de arte digital, mas ela não me consolava. Descobri uma coisa curiosa, a arte digital me excita intelectualmente, mas consolo eu tinha, principalmente, nas chamadas clássicas artes, na escultura, desenho, gravuras. Lembro que tinha uma exposição no instituto Tomie Ohtake, que fui várias vezes. Eu tinha a necessidade de voltar à exposição, quando saía da UTI. Ficava lá, diante de uma gravura, e me sentia mais consolada. Então, você vai absorver a arte conforme os teus componentes emocionais, afetivos, intelectuais também.
Você acha que impacta em faixas etárias diferentes, tem impactos diferentes ou é de pessoa para pessoa, como a pessoa sente a arte?
Acho que tem impactos diferentes. A recepção é diferente, mas até a idade adulta. Depois da idade adulta, o que diferencia é a experiência de cada um. Aí é que diferencia. Durante a fase infantil, você tem, por exemplo, a criança pequena, de quatro, cinco anos, ela está na fase narrativa de contar histórias, o desenho dela, quando ela desenha, o mesmo desenho pode servir para várias histórias. Tem muito professor que pensa que nessa idade é bom mostrar Miró para as crianças, mostrar Kandisnky, por- que são abstratos e correspondem ao desenho delas. Não, é interessante mostrar a arte que, através dela, elas possam contar uma história. Inventar uma história e elas vão inventar histórias diferentes, em momentos diferentes, com a mesma obra de arte, com a mesma imagem. Depois vem a fase em que elas já percebem o espaço, mas tem uma linha de base. Então, todo aquele desenho é em relação àquela linha. A primeira percepção de espaço é a terra, onde tudo anda, e o céu, onde tudo voa, onde está o sol. Depois, vem a outra fase em que ele procura desenhar realisticamente, daí vai brigar muito com o problema de proporção, até chegar à uma representação mais realística. Essa fase é muito perigosa para ela largar completamente o dese- nho. Existe o talento também, que não é igual ao dom. Pensava-se, antigamente, Deus deu o dom, mas não é bem isso. Depende do meio em que você está, depende de DNA, depende de estimulação e desejo de cada um.
Fale mais sobre o talento.
Então, talento depende de várias coisas e há pessoas que não tem esse talento para desenhar. Eu, por exemplo, acho que nunca tive. Como professora de arte, desenhei bastante, desenhei para anotar e gravar na memória, mas eu sei que não sou uma artista, que não tenho talento para ser artista. Então, em viagem, eu adoro fazer um pequeno rascunho de uma catedral, porque eu vou me lembrar eternamente onde era uma janela e tal, porque vi e desenhei e a memória grava com muito mais facilidade. Agora, depois que você atinge o pensamento abstrato e tal, aí, vai depender, primeiro, da experiência de cada um, se você é criado completamente alijado de arte, se você tem preconceito, você não vai se aproximar. Então, existe o preconceito contra arte, que o artista é o boêmio, é a pessoa desorganizada, que vai morrer de fome e tudo isso...
Você acha que o preconceito com o artista continua?
Eu acho que continua. Claro que não é como no meu tempo, porque eu sou uma velha que acha que o mundo melhorou muito de lá para cá. A gente encontra movimentos de retorno, como a gente está vivendo esse agora, que é um movimento de retorno, mas a gente tem que ser forte para dialogar. Para mim não é nem lutar, é dialogar, porque eu sou contra qualquer relação que elimine o diálogo. Relações prepotentes, eu acho que não constroem absolutamente nada. Tem que haver o diálogo, é na família, o diálogo, é na escola, é no emprego... você tem que estabelecer uma maneira de dialogar...
Eu vejo na universidade, e em muitos estudos, trabalhos com arte para idosos, o que você acha?
Você sabe que na USP começou com o MAC1, quando eu era diretora do MAC. Quando eu fui diretora do MAC, meu objetivo era fazer entrar, no museu, os códigos da minoria. Quer dizer, o indígena, o código de rua, o Carnaval, fiz uma exposição carnavalesca que foi um escândalo, os artistas, e isso em uma época modernista em que os artistas se recusavam até a pensar suas raízes. Falar em raízes era pornografia, quase. Naquele tempo, a arte tinha que ser completamente descolada do seu meio. Então, foi difícil, acho que até hoje ninguém entendeu o que eu queria no MAC, mas eu queria era isso, trazer diferentes códigos culturais e uma das coisas era servir a diferentes públicos. Como os idosos, por exemplo, eram duas coisas: atender a diferentes públicos e receber diversos códigos culturais. Fiz uma exposição, até hoje sou encantada com a exposição, sobre a estética do candomblé. Porque, no candomblé, se esquece que não é só religião, é cultura também e, como cultura, cada santo tem o seu universo. Foi muito bonita a exposição, mas teve um silêncio absoluto. Foi muito difícil, a época do MAC. Acho que foram os dois momentos mais difíceis de embate de conhecimento para mim, a faculdade de Direito por causa do machismo e o MAC por duas coisas: o elitismo e a ditadura do código hegemônico europeu e norte-americano branco e pelo preconceito de eu ser nordestina. Isso nunca tinha acontecido na USP, é engraçado. Nunca senti em São Paulo, quando eu e meu marido chegamos. Por causa da ditadura, nós havíamos sido expulsos da Universidade de Brasília, demitidos da Universidade de Brasília, chegamos aqui e fomos muito bem recebidos. E na USP também, na ECA , eu sou apaixonada pela ECA. Foi um lugar em que eu fui muito feliz. A ECA2 era extremamente receptiva para todas as diferenças.
E essa relação, museu x público. Qual é a sua opinião?
É fascinante, não é um público que você tem, sempre são vários públicos, você tem que pensar neles. Se arte para mim é tão importante, é importante para todo ser humano. Na pré-história já se fazia arte. Já havia necessidade de você construir formas que representassem seu pensamento. Então, ela é importante para cada um de nós.
Mas você acha que tem uma segregação?
O que se diz é que a arte é das elites, mas é das elites porque a gente deixa. ((risos)) Porque a gente não faz um trabalho como deveria ser com a criança da escola pública. De quinta série, eu penso muito em quinta série que é onde você pode ter um professor especialista. Agora é a sexta, não é mais a quinta série. A criança da sexta série de uma escola pública, em que não se compra revista em casa, não se compra jornal, o veículo principal é a televisão, dificilmente tem um computador em casa, onde é que vai ter contato com arte e descobrir para que serve a arte para ela. Porque as pesquisas mostram, a arte desenvolve a inteligência. Essa inteligência medida pelo teste de QI, essa inteligência racional. Nós, que fazemos arte, seríamos muito menos inteligentes se não fizéssemos arte. Então, onde ela vai descobrir? Na escola. Por isso que defendo ferozmente a arte na educação. Eu defendo escola em tempo integral, você não conhece um sistema de equalidade no mundo que não seja em tempo integral, que não tenha muita arte e muito trabalho de corpo, esporte, dança etc.
O que você acha da arte e educação atualmente?
Eu acho que arte e educação, hoje, é muito melhor que há 25 anos, tem várias razões para isso. Primeira razão: os mestrados e doutorados estão levando as pessoas a pesquisar, comprovar o que dá certo e o que não dá certo, em que idade dá certo, em que idade não dá certo. Depois, uma coisa que eu acho importantíssima no Brasil, aqui em São Paulo, isso eu vejo mais em São Paulo, na periferia. Essa arte da escola já influenciou o jovem da periferia. Quer dizer, essa arte que não é só o fazer, mas é o ver. Decodificar o que você vê, o contextualizar, ver em relação ao contexto, à sociedade em que você vive. A história, ver a sua história pessoal, isso já formou outros jovens com essa relação, contaminados pela arte. E que estão fazendo o quê? Nas periferias, estão tentando abrir as portas das instituições. Se não tem instituição que receba, tem o bar para expor, tem o bar para fazer suas apresentações de poesia, os saraus. Eu acho que isso também foi muito importante. De repente, a periferia, que já foi educada com arte e com bons elementos, bons princípios metodológicos de arte, entendeu? Sem ser a cópia, ser a mera reprodução, mas sendo alguma coisa que você tem que buscar significado. Se você está buscando significados para uma imagem, você está buscando significados para problemas que aparecem.
Em uma das suas apresentações, de suas aulas, você fala “é preciso que o educador de qualquer área trabalhe com arte para ele próprio se desenvolver”, que vai ao encontro do que você está dizendo.
Sim, eu tenho escrito ultimamente para duas coisas, é curioso, eu escrevi muito, no início da minha vida, sobre a advocacia das artes na educação, advogando porque precisava da arte. Passei quase vinte anos sem escrever sobre isso. O ano passado, passei quase um ano escrevendo sobre isso: por que precisa de arte no ensino médio? Ensino médio é aonde a arte vai, inclusive, trazer maiores benefícios, porque você está em uma crise. Crise não é negação, crise é positivo. Você muitas vezes se reinventa, se refaz em uma crise. Agora, você precisa de respaldo instrumental e a arte, aí, é um instrumento muito significante. Oras, o adolescente está passando por essa crise. Tem que enfrentar o mundo de maneira diferente. São mudanças, ele era cuidado e agora ele tem que aprender a se cuidar. São todas essas diferenças. E você tira a arte da escola nesse momento, quando ela pode ser tão significante, a performance é tão importante, porque ela envolve corpo também, essas danças corporais do adolescente em que ele fica sem entender muito bem ou querendo mostrar excessivamente ou esconder, onde é que está o equilíbrio? Então, a arte é fundamental para esse equilíbrio mental e até orgânico.
Voltando à arte para os idosos, você sabe que até para a questão cognitiva, tem muitos estudos de idosos trabalhando com arte, com resultados incríveis...
Lá no MAC a gente começou assim, quem começou esse trabalho na Universidade da Terceira Idade, na USP, foi a Ecléa Bosi, mas em Artes, nós é que começamos. Foi com o Silvio Coutinho, que hoje está aposentado, mas ele abraçou isso, e ele fazia, inclusive, parte do Conselho da Universidade da Terceira Idade, porque o MAC tinha essa abertura. No caso do Silvio, foi incrível, porque não só essa agudização do cognitivo, mas algumas daquelas mulheres, especialmente mulheres, elas ganharam prêmios de arte. Foi um trabalho lindíssimo do Silvio.
Ana, você desenvolveu a abordagem triangular. Fale sobre isso.
Eu diria que é uma abordagem metodológica.
Que tem os três pilares.
É, e que não são disciplinas. São processos mentais. Primeiro, de fazer, que é um processo mental e material, fazer. Depois, você tem o ler a obra de arte, o ver. Não é só a obra de arte, isso pode ser feito também em relação à imagem do cotidiano. Imagem de publicidade, imagem fotográfica, documental, qualquer imagem. Essa análise do visual. Atribuir significado ao visual. E destrinchar o visual. O que isso está dizendo aí? Entendeu? Pode ser para mim uma coisa e para você outra. Eu já vi uma criança, por exemplo, pegar a Guernica, do Picasso, e interpretar como uma guerra nuclear. O problema da leitura é você justificar na imagem. E a criança justificava. “Aquela luz, não é bem no meio, mas um pouquinho deslocada do meio, tem uma luz bem grande, uma lâmpada bem grande, aí é a explosão nuclear”. Então, é esse tipo de análise. Não significa que vai analisar como o professor queira. E a contextualização. O que significa? Com uma criança dessa você vai ter que conversar. O que significa uma explosão nuclear hoje, mas o Picasso, quando pintor, estava no momento de uma guerra e aí vamos ver imagens da Guerra Civil Espanhola, vamos ligar depois com a guerra, à Segunda Guerra Mundial, conversar sobre isso, localizar outras pinturas, outros desenhos, fotografias e filmes daquela época e discutir os problemas de paz e guerra.
E tudo isso faz parte dessa abordagem...
Tudo isso faz parte e o contexto é muito importante. A contextualização é a porta aberta para a interdisciplinaridade, para ligar com a história, para ligar com isso e com aquilo outro e para você ler sobre seu meio ambiente, para ler onde você está, porque é importantíssimo você ter consciência do seu meio ambiente, para você ter consciência de si mesmo dentro desse meio ambiente.
Você foi a primeira mulher que fez doutorado em Arte-Educação. Conte como foi.
É, eu não conseguia fazer no Brasil, não foi por escolha fazer no exterior não, é porque não tinha aqui. E o pior, não conseguia bolsa. Nunca consegui bolsa, eu pegava carona nas bolsas do meu marido. Ele era da área de literatura, que é uma área privilegiada, desde os jesuítas, que a consideram a mais importante arte. Eu não conseguia aqui, as pessoas diziam, “eu não entendo nada disso”
Você fez em Boston?
Eu fiz primeiro mestrado, em Connecticut, depois, doutorado, em Boston. Também não tinha muito lá, quando eu fiz. Não tinha muito doutorado lá, tinha mais mestrado. Eu acabei fazendo na faculdade de Educação da Universidade de Boston, que era muito flexível. Era uma faculdade que, já em1977, era multiculturalista, a Universidade de Boston foi a primeira a receber negros nos Estados Unidos. Martin Luther King estudou lá, os arquivos dele, ele doou para a universidade, tinha sempre uma exposição, logo na entrada, com alguns documentos de Martin Luther King. A gente aprendia esse respeito à diferença logo na entrada da biblioteca.
Eu notei que em um período, me corrija se eu estiver errada, você deu aulas em algumas universidades inglesas e americanas?
Sim.
De cultura brasileira?
Não. De cultura brasileira, só na Universidade de Yale. Era ligando literatura com artes visuais.
Conta um pouquinho desse período pra gente...
Esse período foi muito estranho, era meio esquizofrênico, sabe? Como eu disse a você, eu sempre peguei carona nas bolsas do meu marido para mestrado e doutorado. E meu marido foi, teve uma bolsa da Fapesp para ir para Yale, para fazer pesquisa para a livre-docência dele. Chegando lá, foi muito curioso, porque eu não consegui bolsa no Brasil. Até hoje tenho a carta da Capes dizendo que a Educação não era área de pesquisa. Eu cheguei lá no vazio. Interessante que no primeiro... nos Estados Unidos, as universidade são bem festivas, cada departamento, todo início de semestre tem sua festinha de departamento para se conhecerem, e eu me encontro com um professor de português, o prof. Malcon, de Yale. Nos engajamos em uma conversa, e ele conhecia pouco de artes visuais no Brasil e conhecia bastante literatura. E foi muito curioso, porque ele disse: “Vou contratar você para trabalhar comigo, porque você pode fazer essa ponte das artes visuais, que eu não faço”. Foi uma experiência maravilhosa, eram alunos especiais, que estavam interessados na América Latina. Era no Departamento de Estudos Latino-Americanos, especialmente Brasil, porque ele estava dando curso sobre literatura brasileira, ele sempre dava sobre literatura brasileira, e ele falou que não ia dar nada de romance, “vamos com contos”, porque eu não sou especialista em literatura né, e ele levou vários contos e eu faria a ligação. Traria obras de arte do mesmo período, até do mesmo grupo, coisas assim. Foi uma maravilha, uma experiência fantástica. Os alunos, estava no “boom” latino-americano, a América Latina, extremamente festejada, os romancistas festejados, a cultura latino-americana festejada. Em pleno período, um período magnífico, em que já se via efeitos da política de dessegregação, já se via os efeitos de integração dos negros e dos brancos nos Estados Unidos. Era uma época de efervescência, 1971, tinha tido 1969 com Woodstock, foi um período florescente de cultura nos Estados Unidos.
Agora vamos focar mais um pouco no trabalho sobre o processo de envelhecimento, porque a pirâmide etária está invertendo, a expectativa de vida aumentando, enfim, qual é a sua opinião sobre esse assunto? Você acha que o país está adequado para toda essa mudança? Como você se sente envelhecendo?
Eu acho que o país está se adequando ao envelhecimento graças a essas iniciativas. A USP criando espaços, o Sesc, eu sou grande fã dos projetos do Sesc. Eu só não entro em um deles porque não tenho tempo, mas eu sou fã desses projetos. Dessa reforma da previdência, uma das coisas que eu acho que os políticos têm razão, é que a gente se aposenta muito cedo no Brasil. Eu estou com 82 anos, não reclamo em nada de continuar trabalhando. Para mim, é uma fonte de energia. Eu tenho uma especial tarefa de criar minha neta, para mim foi especial continuar em contato com a juventude. É uma juventude um pouco mais velha do que ela, mas me ajudou muito a entender as grandes mudanças da juventude de meus filhos e a de hoje. Eu dou aula só no mestrado e no doutorado da Universidade Anhembi-Morumbi. É um grupo de dez professores, agora tem 11, tem um professor convidado, que foi ex-aluno, nosso inclusive. É um grupo excelente, flexível, porque eles entendem um pouco a minha situação. Não é pela idade essa situação, é pelo problema familiar. Eu tenho uma filha que teve um AVC cerebral, com 36 anos. Ela ficou completamente tetraplégica, não fala, não come e a mente completamente boa. Não afetou em nada memória, raciocínio, pelo contrário, agudiza a percepção. Ela tem uma percepção agudíssima, que dá até medo. Então, minha prioridade é minha filha. Segunda, são meus alunos e, a terceira, as obrigações burocráticas da universidade. Aluno para mim é coisa prioritária. Então, eu oriento, adoro orientar, mais ainda para doutorado, quando as pessoas já têm uma escolha definitiva.
E sobre a longevidade?
Realmente, a vida está se prolongando, ao se prolongar a vida, estão também se prolongando as capacidades de discernimento, e a pior coisa para os velhos eu acho que é a depressão, para mim é a pior. Estão aí os remédios para dar a vontade de vencer essa dificuldade, então, eu me aproximo um pouco do Foucault, que dizia que a gente devia ir se preparando para a velhice como uma culminância. Para mim foi um baque muito grande, a consciência da velhice veio com a doença da minha filha. Eu tive que mudar completamente a minha vida, mudar todos os planos, eu tinha iniciado um plano de vida de seis meses no Brasil, seis meses no exterior, já estava funcionando isso. Eu não sou muito equilibrada, confesso a você, às vezes eu exagero. Em 2016, eu viajei muito, trabalhei muito, aí eu cheguei no fim do ano doente. Eu cheguei em dezembro sem sair de casa, daí vou para o médico e ele manda tomar vitamina isso, aquilo e aquilo outro. Eu jurei que em 2018 eu não ia fazer isso. Aliás, em 2017, eu jurei que não ia fazer isso. Cheguei ótima ao fim do ano. Tomei conta de mim mesma, não aceitei todos os convites, porque a minha tendência é essa, é um problema querer aceitar tudo que me chamam. E aí fui cair de novo nessa esparrela em 2018. Esse semestre estou controlando muito.
Quando a gente gosta muito do que faz, acontece isso.
Isso, quando a gente gosta muito do que faz...
E quais são seus projetos atuais?
Olha, atuais, eu estou terminando um livro sobre mulheres na arte-educação, é muita coisa. Nos anos 1960, eu estou procurando, anterior ou da minha geração, e como o campo estava muito amplo, eu resolvi só trabalhar com os lugares em que vivi, quer dizer, Nordeste, São Paulo e Brasília. Eu mapeei só esses lugares. Tem mulheres que foram muito importantes na arte-educação na época e que hoje você não ouve falar delas. A melhor maneira, o melhor tributo é fazer uma pesquisa sobre essas mulheres. E estou fazendo esse congresso com o Sesc. Acho o Sesc fantástico, de uma competência incrível, e esse congresso tem muito que ver com o fato de a arte-educação ser uma área onde atuam mulheres. É raro homem. Eu sempre implico porque quando entra um homem em arte-educação, ele já entra com 50% de vantagem, porque nós, mulheres, damos essa vantagem para ele. ((risos))
Ana Mae, muito obrigada pela entrevista. É um privilégio para os leitores da revista mais 60, e você é um exemplo para todos nós, por ser uma pessoa de 82 anos e estar na ativa, falar sobre vários assuntos e compartilhar suas opiniões.
Muito obrigada.