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Do chão em que nasci e me criei pra cidade que reivindiquei

 

Para escrever este texto reuni um punhado de livros que sedimentam minha trajetória e deram contornos a questionamentos que me faço desde a mais tenra idade: Como o território em que nasci marca corpos e identidades e também me inscreve no mundo? Me refiro às periferias de São Paulo que já foram quilombos e aldeias indígenas, mas sem registros na história oficial da cidade. Fato é que o quilombo foi reinventado e as poucas aldeias seguem resistindo por cá.

Quando observo “os da minha rua” como fez Ondjaki, vejo os que migraram em busca de melhoria de vida, fizeram mutirão de construção de casas, reivindicaram creches, fundaram clubes de mãe. Lutavam contra o desenraizamento imposto por meio dessas experiências comunitárias. No choque com a cultura letrada estavam plantando em “terra fértil”, como disse a poeta Jenyffer Nascimento, a oralidade, sua sabedoria ancestral, que reverberou na vindoura geração da qual faço parte. Herdei também a sensação de não pertencimento a esta cidade e, quando a levei ao limite, sedenta de reconhecimento e justiça social, percebi que estava de “passagem, mas não a passeio” como a poeta Dinha. Não éramos brancos, nem paulistas suficientes, éramos sempre a falta, retratados como exóticos, improdutivos e violentos.

A violência de Estado tombou muitos dos meus, filhos destes trabalhadores que teimavam em existir nas periferias num contexto de colapso dos anos 1990. As fronteiras da cidade delimitavam oportunidades de existência. Fronteiras nítidas, como uma ponte ou um rio, ou simbólicas, percebidas no trânsito de nossos corpos em movimento: quando o olhar do outro nos tornava elemento suspeito. O meu horizonte era o Cemitério São Luís. Cada cruz dos túmulos era como um lembrete sobre a necessidade de “transgredir” as fronteiras. Busquei essa transgressão como bell hooks na “educação como prática da liberdade”. Fui para a universidade e me tornei Cientista Social. Mas, como Alzira Rufino, continuava querendo bradar de outras formas: “Eu mulher negra, resisto!”.

Continuei morando ali e observando pela janela a paisagem que não mudava, porém comecei a ouvir vozes ecoando naquele terreno descampado do cemitério, era o rap dos Racionais “fim de semana no parque ôô deixa o menino brincar”… Vozes tomando pra si a narrativa negavam que as biografias ali interrompidas fossem esquecidas. Aos poucos, outros sons ali ecoavam, eram tambores, poesias. Um movimento se levantando contra o isolamento e as tecnologias de dominação: estávamos nos bares, becos, vielas, terreiros e campinhos. No Panelafro, na Casa de Cultura, estávamos em “Punga” com poetas como Elizandra e Akins.

Palavras, gestos, nos conectavam como no poema do Binho: “Uma andorinha só não faz verão, mas acorda o bando todo”. Começamos a narrar nossas próprias histórias e a ler as de nossos pares. Nos reconhecemos naquele cenário, mas não nos encerramos nele, reivindicamos a cidade, a história, a cultura oficial, desenhamos no chão nosso mapa cultural e ancestral invertendo a lógica centro versus periferia. Na universidade aprendi teorias, nos movimentos aos quais me conectei recuperei meu lugar no mundo e escolhi meu caminho. Mais de uma década depois, a metáfora da ponte na cidade cindida da música “o mundo é diferente da ponte pra cá” ganha outros significados, pois como disse o poeta Pezão “nois é ponte e atravessa qualquer rio”. Hoje sou ponte, megafone, trafego no fluxo caótico, amplifico, apresento, desmistifico a nossa poética de transgressão. Como mulher negra reconheço que “nossos passos vêm de longe”. Existo.

 

Luciana de Jesus Dias é animadora cultural do Sesc Santo Amaro e mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo.

 

 

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