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Acervo é memória

O papel de um curador no âmbito das artes vai além da função de organizar um acervo de obras. Antes de tudo, o curador é aquele que cuida de um patrimônio. É assim que a historiadora Solange Ferraz atua. Especialista na curadoria de acervos visuais, ela está prestes a completar 30 anos no Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), onde trabalha como diretora. Popularmente conhecido como Museu do Ipiranga, o mais antigo museu público de São Paulo preserva 450 mil itens cujas narrativas contam a História do Brasil. Sua sede está atualmente fechada à visitação para restauro, mas boa parte das pinturas, como O Grito do Ipiranga (1888), de Pedro Américo, pode ser visitada na WikiGlam (Wiki de Galerias, Bibliotecas, Arquivos e Museus). Plataforma que hoje, segundo Ferraz, “faz difusão de acervos que não conhecíamos”. Sobre obras digitais e digitalizadas, museu e narrativas, a especialista levanta reflexões.

 

 

 


O papel do museu

Acho que os museus cumprem uma função social muito importante. Tem uma frase, não sei de quem é, mas que pra mim define o que é um museu: “O museu é um lugar seguro para se falar das incertezas”. E acho que é isso que ele precisa ser. Existe uma questão muito cuidadosa, sobretudo porque somos um museu público: nosso compromisso é com a sociedade como um todo. Então, a nossa principal missão é provocar uma reflexão crítica sobre as coisas. Não se trata de contar “a versão” da Independência. Porque, no século 19, ninguém representava o que de fato havia acontecido. As pessoas representavam o que era preciso guardar na memória. Era uma representação simbólica. Como hoje vivemos na era do fotojornalismo e da fotografia como espelhos da verdade, olha-se para as pinturas históricas e espera-se que elas tenham o mesmo compromisso. Seria anacrônico olhar para essas pinturas [do século 19] e esperar que elas tenham qualquer compromisso com a verossimilhança. O compromisso delas é com a temática e a celebração.

Quando falo que o museu é um lugar para se falar de incertezas, falo de despertar a percepção crítica para entender como as narrativas se constituem. Se você entender, conseguirá perceber quais são os agentes também.

 

Múltiplas narrativas

Quando começamos a exposição Imagens Recriam a História, fizemos uma pesquisa de público (o departamento educativo teve um papel fundamental). Tivemos duas constatações. A primeira é que as pessoas ficavam menos de meio minuto em frente a uma tela de grandes proporções, porque aquilo não se mexia e parecia até um papel de parede. Para uma geração acostumada com videoclipe, televisão e celular, aquela pintura narrativa não comunica. Segunda constatação: as pessoas consideravam que o pintor estava lá na hora do acontecimento. Então, pensamos: nosso desafio é ensinar a ler uma pintura e, depois, explicar como ela é feita a partir de estudos cromáticos, citações de referências... Era comum e sinal de erudição citar na sua pintura uma outra pintura. Isso só vai se tornar um problema depois das vanguardas modernistas.

Diante disso, tivemos que desenhar uma concepção de curadoria que não partisse para uma problematização do bandeirante como narrativa, mas que, antes, passasse por uma reeducação do olhar. Ou seja, explicar que imagens se prestam a constituir narrativas e que cada época faz isso de uma maneira. Dessa forma, conseguimos mostrar como se cria a imagem de um herói e como o bandeirante se tornou esse herói. Sem passar por essas etapas de sensibilidade, é como se colocássemos uma versão no lugar de outra. É importante deixar esse espaço em aberto para nos perguntarmos: que outras narrativas existem?

 

“Somos um museu público: nosso compromisso é com a sociedade como um todo. Então, a nossa principal missão é provocar uma reflexão crítica sobre as coisas”

 

 

Digitalização e acervo digital

Acho que esse é o caminho, mas não podemos pensar que isso substituirá a relação do público com o espaço físico de um museu e estar frente a frente a um objeto. Sou bem otimista: divulgar um acervo no ambiente digital acaba convidando o público para uma relação presencial. Já os acervos natodigitais são um grande desafio: milhares de imagens e pouco espaço para armazená-las. O custo de conservação de um acervo em papel e de um acervo natodigital tem igual importância. Então, como eu faço? O mundo é edição. A memória é edição. Mas temos muito medo do descarte. Quando falamos em política de acervo, estamos falando de um lugar que você escolhe, de parâmetros e critérios. Acho que esse é um desafio que todas as instituições estão enfrentando. Já a digitalização é uma realidade para os museus há muito tempo. O Museu Paulista tem uma parceria com o NeuroMat-USP (Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática, da Universidade de São Paulo) e subimos nosso acervo de pinturas e fotografias em domínio público para a WikiGlam. A partir do que está lá, alunos de jornalismo têm feito verbetes com audiodescrição. Do ponto de vista da difusão, sou aliada dessas plataformas.

 

Humanidades digitais

Hoje o celular [e seus recursos] começa a interferir na produção da história. Aliás, vimos recentemente uma escalada desse universo digital e da informação em rede que afetou o curso da história. Acho que essa é uma reflexão do campo das humanidades digitais. O historiador vai ter que pensar sobre o impacto disso e depois, no caso dos museus, como difundir esse conhecimento. Algo que nos atinge é uma ideia de “presentismo”, um conceito da historiografia. As pessoas não olham mais para as datas. É como se tudo ficasse boiando no mesmo tempo. Qual será o impacto disso nas nossas vidas e na nossa formação crítica? Se você perde a percepção do tempo histórico, como fica a noção de processo? Ainda estou tentando entender o que vai acontecer.

 

 

 

Solange Ferraz
esteve presente na reunião
do Conselho Editorial da Revista E no dia 9 de novembro de 2018

 

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