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Vida à margem

Ozualdo Candeias, realizador audacioso do cinema brasileiro,
imortalizou a história da Boca do Lixo, no centro de São Paulo

Foto: José Mojica


A inda está fresco na memória o aniversário de A Margem. O filme, marco do cinema brasileiro, completou 50 anos em 2017 e na esteira trouxe reflexões sobre o diretor por trás – na verdade, à frente – da obra: Ozualdo Candeias. Nome expressivo do Cinema Marginal, foi realizador autoral e fotógrafo de primeira. São de sua lavra nove filmes produzidos na Boca do Lixo, em São Paulo, de 1967 a 1992. Geograficamente, a Boca estava no centro da cidade, desenhada pelas ruas e avenidas Duque de Caxias, Timbiras, São João e Protestantes. Além de ambientar seus filmes no local, o cineasta registrou em preto e branco, com as câmeras Exakta 50 mm e Nikon, o dia a dia do polo cinematográfico paulistano entre os anos 1960 e 1970.
O Centro foi retratado em Festa na Boca, curta-metragem de 1976. De acordo com Rafael Spaca, jornalista e pesquisador desse período, Candeias também produziu fotografias que possibilitaram conhecer o ambiente e a dinâmica daquele meio. “Era um homem da Boca por habitar a região, mas a sua produção passa ao largo da filmografia ‘associada’ à Boca”, opina. “Seus filmes possuem ideias próprias, são mais herméticos e experimentais, mais líricos e abstratos.”

Objetos voadores não identificados

Candeias nasceu em Cajobi, interior de São Paulo, em 1922. Filho de agricultores, trabalhou no campo e exerceu a profissão de caminhoneiro. Casou-se duas vezes e foi pai de quatro filhos, dois de cada relacionamento.

Sem se prender ao que surgia no retrovisor, caiu na estrada e foi tomado pelo interesse em óvnis, os objetos voadores não identificados que ora ou outra eram avistados naquelas paragens. Autodidata, procurou uma câmera para fotografá-los. Mas acabou comprando uma máquina simples de filmagem, de 16 mm, que o acompanhava durante as viagens. Com ela registrou família, paisagens, amigos. Conquistado pela linguagem audiovisual, começou a pesquisar técnicas, diretores, montagem. Toda a teoria foi somada aos filmes que já havia assistido.

Aos 40 anos, deu-se sua entrada na prática do cinema, em funções variadas na Boca do Lixo. Foi assistente de direção de outro audacioso do cinema: José Mojica Marins, o Zé do Caixão, em À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), cult do cinema brasileiro. Em depoimento registrado na biografia Pedras e Sonhos no Cineboca (Moura Reis, 2010), disse: “Para fotografar eu precisava descobrir primeiro o que a máquina fotografa, o que posso esperar dela. Então tinha que saber um bocado de coisas sobre a máquina e sua técnica, como poderia fazer uma fotografia tecnicamente boa. Então logo vi o que era a câmera, a montagem e vai por aí afora”.

Depois comprou um projetor de 16 mm e passou a ver filmes em casa. “Alugava aqui na Boca do Lixo, pois a maioria das distribuidoras de filmes já estava aqui”, acrescenta Ozualdo. “E foi como passei a conhecer pessoas ligadas ao cinema. Vi muitas fitas brasileiras, como Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos), que me surpreendeu pela maneira de narrar, e Matar ou Correr, uma gozação do Carlos Manga em cima dos filmes de faroeste americanos, muito bem-feita.” Ele também frequentou, entre 1955 e 1957 o seminário promovido pelo Museu de Arte de São Paulo (Masp), o que proporcionou uma aglutinação de todo o conhecimento que havia devorado em livros e manuais. O empenho autodidata resultou em seu primeiro filme, A Margem (1967).

A Margem . Foto: Divulgação

 

Poesia sem muita sociologia

O cinema de Candeias expressa sua visão da realidade, orientado menos pelos aspectos sociológicos do que pela poesia. Celso Gonçalves, diretor do curta-metragem Candeias: Da Boca pra Fora (2002), menciona o olhar do cineasta e seu domínio técnico durante a gravação, citando A Margem como exemplo: “As tomadas são lindas, poéticas, chegando até mesmo a fazer a montagem na própria tomada. Candeias era um mestre da imagem”. Entre 1968 e 1974, a Boca do Lixo produziu mais de 800 filmes.

Liberdade efervescente

Cineasta do auge da produção independente e de baixo orçamento, Candeias capturou em suas fotos bastidores, personagens anônimos e famosos que agitavam o Centro e o cinema de São Paulo, entre os anos de 1960 e 2000. Em sua trajetória até sua morte em 2007, deixou 35 filmes, 12 telefilmes e um acervo fotográfico histórico, composto de 16.450 fotografias digitalizadas. O acervo é mantido sob os cuidados de Eugenio Puppo, curador da mostra Ozualdo Candeias, Fotografias (veja boxe Grande-Angular). Puppo conheceu Candeias em 1999, enquanto pesquisava o Cinema Marginal. A amizade também virou documentário: Ozualdo Candeias e o Cinema (2014). Sobre o Candeias fotógrafo, Puppo relata que os ângulos das imagens eram “pontos de vista criteriosos” e que o diretor pensava em fazer um catálogo da Boca do Lixo com esses documentos.

Negando modismos e o cinema fácil, elaborou um itinerário artístico singular. Um bom exemplo disso é a posição da mulher em sua obra: “As mulheres em seus filmes cumpriam papel de atriz em seu sentido stricto sensu, jamais de isca”, afirma convicto Rafael Spaca.

Com sensibilidade aflorada e experiência dentro e fora das artes, Candeias construiu o universo particular alimentando-se do próprio entorno e vivência. O cinema de gênero aparece em seu gosto particular pelo faroeste americano: “Não é à toa que uma das suas maiores bilheterias é Manelão, o Caçador de Orelhas (1982)”, relembra Celso Gonçalves. O cineasta afirma ainda que Candeias “não deixou ou teve discípulos”. O que temos são seus filmes.

Obra essencial

 

Foto: Divulgação

Conheça alguns títulos para se iniciar na filmografia de Ozualdo Candeias

O documentarista Alessandro Gamo, professor do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São Carlos (DAC-UFSCar), preparou uma seleção para introduzir amantes da sétima arte no universo particular do cineasta.

A Margem (1967)
No primeiro longa-metragem, Candeias conciliou rigor e invenção. Mostrou tudo o que aprendeu no Seminário de Cinema – promovido pelo Museu de Arte de São Paulo (Masp), entre 1955 e 1957 –, em cinejornais e nos curtas. Um clássico do cinema brasileiro, o filme trata da história de dois casais que perambulam entre as margens do Rio Tietê e o centro de São Paulo. Eles vagam pela cidade sustentando-se por meio da mendicância e da prostituição.

Meu Nome É Tonho (1969)
Candeias fez um “western spaghetti” a seu modo: com tema provocador, personagens debochados, arrojado na fotografia e na montagem, e ótima trilha sonora regional. No enredo, um homem apelidado de Tonho não lembra de seu passado. Na memória, tem apenas fragmentos da infância, na qual foi raptado por ciganos. Depois de fugir, vive tranquilo até que, em uma noite, uma linda mulher cruza seu caminho.

A opção ou As Rosas da Estrada (1981)
O filme é quase um milagre. Candeias filmou como e quando pôde e, com muito improviso, construiu uma obra-prima. Com suas rosas, fez um trabalho belo e impiedoso. No início do filme, mulheres trabalham em canaviais, sob exploração e condições de vida precárias. Isso faz com que algumas das moças resolvam se aventurar pelas estradas rumo à cidade grande.

 

Grande-angular

Exposição colocou em foco obra fotográfica do diretor

As paredes do CineSesc iluminaram-se por rostos em preto e branco. Carlos Reichenbach (1954-2012), Luiz Sérgio Person (1936-1976), Rogério Sganzerla (1946-2004), Anselmo Duarte (1920-2009), além da Rua do Triumpho, do Restaurante Soberano e outros personagens.

Esses personagens são pessoas, ruas e lugares que foram tema dos registros fotográficos de Ozualdo Candeias, expostos no espaço de convivência do cinema, entre dezembro de 2017 e março de 2018, na mostra Ozualdo Candeias, Fotografias. Com curadoria do cineasta Eugenio Puppo, as imagens selecionadas reavivaram momentos marcantes da produção autoral de São Paulo.

 

 

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