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Adalberto Cardoso
O que parecia ser um cenário de ficção científica, em que robôs substituem seres humanos nas mais diversas ocupações profissionais, mostra grandes chances de se tornar real. De que forma, então, será o mercado de trabalho nos próximos anos? Será que o progresso econômico cavará um buraco ainda mais fundo na desigualdade social, como descreveu o Prêmio Nobel de Economia de 2015 Angus Deaton em A Grande Saída – Saúde, Riqueza e as Origens da Desigualdade (Intríseca)? Quem analisa esse quadro é o doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Adalberto Cardoso, professor e diretor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Pesquisador das áreas de sociologia do trabalho, sociologia urbana e teoria social, Cardoso aponta a necessidade urgente de mudanças, e de adaptações, para um futuro de oportunidades e empregos.
Foto: Leila Fugii
Qual o conceito de trabalho nos dias de hoje?
O trabalho é o elemento definidor da identidade das pessoas, apesar de certa ideologia, ou de certa leitura, achar que o trabalho saiu do centro tanto da ordem social quanto da dinâmica coletiva. Esse pode ser o caso de países onde se teve uma redução importante da jornada de trabalho e se tem um maior tempo livre. O que não é nosso caso. O Brasil e a América Latina em geral não resolveram o problema da necessidade no sentido que os europeus resolveram. Temos uma grande proporção de pobres na população, e voltamos a ter miseráveis. Também há dois elementos centrais na vida do trabalhador, e uma boa parte dos brasileiros ainda tem a expectativa deste tipo de modelo: o acesso ao seguro-desemprego e à aposentadoria. Por isso, as pessoas [no Brasil] dependem do trabalho tanto quanto antes. Mas não do trabalho tal qual sempre o conhecemos – regulado, com hora de entrada e saída, protegido por uma carteira de trabalho, entre outros fatores que fazem parte da nossa tradição. O fato de o trabalho ser central [na vida do brasileiro] não quer dizer que ele seja o mesmo tipo de trabalho que se tinha antes.
Podemos dizer que chegou ao fim o modelo em que, ao sair escola, começava-se a trabalhar no mesmo lugar por décadas e, por fim, aposentava-se?
Isso já dançou há um tempo. Esse é um modelo típico dos países mais ricos, ocidentais, um modelo em que você tinha um controle importante do Estado sobre as trajetórias de vida – o Estado de Bem-Estar Social era isso. A criança está na creche enquanto os pais trabalham; depois ela sai da creche para a escola, a escola é pública, então desde um ou dois anos de vida a criança já está sob a supervisão do Estado. Isso vai até o final do ensino superior (público, ou gratuito), depois você se forma e tem um emprego garantido na mesma empresa onde permanecerá por 30 anos até se aposentar, ou segue com um mestrado ou doutorado. Isso já mudou há muito tempo porque a ideia de que você tem que se qualificar o tempo todo na organização da trajetória de vida das pessoas nasce nos anos 1980. Quando se começam a rever as bases de financiamento dos Estados de Bem-Estar, os Estados começam a se retirar: transfere-se para a pessoa mesmo depois que ela deixa o sistema educacional o ônus da sua requalificação posterior. Necessário porque você tem uma reestruturação produtiva o tempo inteiro, as tecnologias estão mudando, as indústrias estão indo embora, e não precisamos mais de quem ficou ali se qualificando como engenheiro mecânico. Então, a pessoa tem que se reciclar, fazer outras coisas, aprender novas atividades. Os empregos deixam de ser para toda a vida. Na verdade, quanto mais qualificado é o novo trabalhador, menos se espera que ele fique na mesma empresa. Ele está sempre procurando se qualificar para se tornar mais empregável, daí a ideologia do empreendedorismo em substituição ao assalariamento e a uma ética do trabalho assalariado. Tudo isso vem dos anos 1980.
Dessa forma, este perfil empreendedor abrange cada vez mais ocupações no mercado de trabalho?
Hoje vivemos um momento em que isso se generalizou. [O empreendedorismo] Era uma coisa restrita a gerências, a cargos de uma determinada qualificação e hoje vale para um operário de fábrica, que não tem mais a perspectiva de ficar naquela empresa até se aposentar. Espalhou-se a ideia do indivíduo empreendedor que investe em si mesmo. No Brasil, o mercado de trabalho sempre foi muito flexível em função das altas taxas de informalidade, da oferta abundante de mão de obra. Então, você tem uma alta rotatividade tanto na indústria quanto nos serviços. Entre 30% e 40% da população brasileira trocam de emprego todo ano. E boa parte dessas pessoas troca de emprego mais de uma vez por ano. Então, a flexibilidade aqui é muito grande. As pessoas circulam muito pelo país e nós nunca tivemos a presença forte do Estado no ordenamento das trajetórias das pessoas por causa da educação. Se o Estado não investe em educação, a presença do poder público na vida das pessoas é muito pequena. As relações sempre foram muito privadas desse ponto de vista. As famílias é que tiveram a responsabilidade de socializar seus filhos, não o Estado. Então, a socialização para a vida, para o trabalho, sempre foi uma obrigação das famílias ou dos próprios indivíduos. Enquanto lá fora, sobretudo na Europa, há uma participação maior do Estado.
Esse novo cenário do trabalho tem a ver com a modificação estrutural da economia e da entrada brutal da tecnologia?
Sim. Houve uma mudança tecnológica que permite que o trabalhador trabalhe em casa, por exemplo. Aumentou o número de pessoas que fazem home office, ou seja, que trabalham em casa e estão em rede com a empresa. Isso vale para várias ocupações de alta tecnologia, como designers, arquitetos, engenheiros e boa parte das ocupações liberais. Vale até mesmo para advogados – antes, grandes escritórios de advocacia tinham que ter bibliotecas enormes com a jurisprudência dos processos passados. Hoje, essa jurisprudência está toda na internet. Sendo assim, não há mais necessidade de um advogado para pesquisar essas jurisprudências, robôs já fazem isso [o robô Watson da empresa IBM funciona como um software de análise de dados com inteligência artificial]. De fato, a tecnologia introduz mudanças fundamentais em muitas profissões. O efeito dela é, em geral, atacar primeiro as ocupações menos qualificadas. Os primeiros robôs que entram na indústria, por exemplo, entram para substituir o trabalho não qualificado, repetitivo, cansativo. Desse ponto de vista, é uma mudança bem-vinda, pois você “desescraviza” [o operário], mas você tem que ter emprego para essa pessoa em outro lugar. Onde? Em algum lugar onde essa pessoa vai ganhar menos, vai ter menos direitos, muitas vezes nos serviços, na informalidade. Seria muito bom e virtuoso se as pessoas substituídas pela tecnologia fossem absorvidas por setores dinâmicos também. Porém não é isso o que acontece.
Nesse caso, que impactos podemos vislumbrar para os próximos anos?
O limite que tínhamos para uma inteligência artificial criativa, que é a capacidade de processamento de uma quantidade infinita de informações pelo nosso cérebro, já está na tecnologia atual, a exemplo do Big Data. Para ter um robô criativo, você precisa ter uma inteligência artificial capaz de processar rapidamente milhões de informações e associá-las de modo que produzam algo novo, criativo. Praticamente todo trabalho industrial pode ser robotizado. Inclusive, o trabalho de criação de automóveis, por exemplo. Nas ruas da Europa, dos Estados Unidos e da China já estão rodando carros sem motoristas. Não se trata de ter um robô no lugar do motorista. Esse automóvel não precisa nem de volante. Como disse antes, nas revoluções tecnológicas, você afeta primeiro, e de maneira muito importante, as ocupações menos qualificadas. Isso aconteceu na primeira Revolução Industrial com as máquinas “destruindo” empregos de artesãos. Agora, o impacto vai cortar verticalmente todas as ocupações que envolvem contato pessoal até o dia em que você tiver um robô capaz de simular ou mesmo ter real empatia. Qualquer política pública deve ter isso em conta. Estamos falando de daqui a 10 ou 15 anos. Não se trata de futurologia. Não são todos os países que serão capazes de produzir robôs nesse nível, então, você vai ter rendas extras em função do monopólio sobre a tecnologia. Algo que os laboratórios farmacêuticos têm quando lançam um produto que poderia ser vendido a um real, mas é vendido a preço de monopólio por 150 reais. Ou seja, só se reduz o preço quando entram os concorrentes. Os ganhos de monopólio são um mecanismo brutal de transferência de recursos de toda a sociedade para as pessoas detentoras dos monopólios. Estamos falando de grandes corporações capazes de produzir essa tecnologia baseada em inteligência artificial.
Seria muito bom e virtuoso se as pessoas substituídas pela tecnologia fossem absorvidas por setores dinâmicos também
Quais políticas públicas poderiam ser pensadas e adotadas nesse caso?
É difícil. Hoje para falar sobre o futuro, ou mesmo sobre o presente, diagnósticos são feitos por economistas, sociólogos, pesquisadores da área de saúde, pessoas da academia que produzem um conhecimento que deveria ser levado em consideração. E o Brasil não leva muito. Todo gestor e formulador acha que sabe de tudo. Mas a política pública deveria ser resultado de um conjunto de estudos sobre os campos nos quais a política incide. Hoje, está cada vez mais difícil para os analistas produzirem conhecimento relevante sobre, por exemplo, o mundo do trabalho, de forma que oriente políticas públicas. Isso acontece por causa dessa fronteira que estamos atravessando agora: a da Quarta Revolução Industrial. Essa fronteira já está mudando a ocupação dos advogados, como falei anteriormente. Mas ela ainda vai afetar engenheiros, arquitetos... Você não vai mais precisar de um engenheiro para fazer cálculo de resistência de materiais – uma máquina vai dizer o que é preciso fazer para subir uma parede. Determinados ramos da medicina e da enfermagem são mais difíceis substituir, porque eles lidam com vidas. Então, alguns segmentos não vão ser tão afetados. Mas muitos outros estão em perigo e esse cenário está muito perto.
O economista Angus Deaton aponta no livro A Grande Saída – Saúde, Riqueza e as Origens da Desigualdade que todo progresso traz desigualdade. Como fica esse quadro no Brasil?
O Brasil está pagando um preço alto pela imprevidência das suas elites políticas no passado, por terem negligenciado a educação como elemento importante e civilizatório. O Brasil teve grandes educadores, como Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro – pessoas que pensaram a educação estrategicamente. Anísio Teixeira, por exemplo, foi alguém que, no final dos anos 1920, liderou um movimento mais amplo, a Escola Nova [um sistema estatal de ensino, pautado pela liberdade e por uma pedagogia laica e contemporânea, daria as bases para a superação das desigualdades sociais brasileiras], que [Getúlio] Vargas acabou assumindo. De fato, aumentou muito o investimento em educação, entre 1930 e 1945, mas, se analisarmos o investimento per capita, esse investimento ficou congelado. E o Estado sempre fez opções que deixaram a educação em segundo, quinto, décimo plano. A consequência brutal que temos hoje é uma população alta de analfabetos, índice que tende a aumentar em crianças de sete, oito e nove anos. Isso é muito grave. Para esse governo que está no poder, o teto de gastos vai gerar como efeito, num prazo muito curto, o início de um desmonte do pouco que temos de escolas públicas. Em julho do ano passado, as universidades federais tinham recursos garantidos até setembro de 2017. Se o governo não desse uma verba suplementar, elas não conseguiriam pagar suas contas de luz, telefone, etc., no final de 2017. Dessa forma, se no passado foi imprevidência, principalmente com os níveis iniciais do sistema educacional, hoje é o descaso cometido pelas elites políticas do país em relação à educação. Isso sempre teve um efeito muito grande de persistência dessa altíssima desigualdade que há no Brasil.
O aumento da desigualdade na economia norte-americana vem desse monopólio de grandes empresas de tecnologia?
Eu estava discutindo no curso que ministro sobre globalização a respeito do impacto das novas tecnologias no crescimento da desigualdade. Há dois ou três fatores fundamentais no aumento da desigualdade no mundo inteiro. O primeiro deles é a mudança do emprego da indústria para os serviços e isso vale para Europa, Estados Unidos, Japão e China. Isso acontece quando você transfere emprego de um setor que é mais ou menos equitativo para um setor altamente desigual como o de serviços – esse é um dos elementos de desigualdade nos países ricos. A desigualdade hoje nos Estados Unidos equivale à desigualdade de 1910, quando era muito alta. Na Inglaterra, a desigualdade de hoje equivale à da década de 1920, quando o país estava no auge do seu desenvolvimento. A segunda causa para o aumento da desigualdade é o salário de grandes CEOs [sigla para Chief Executive Officer] das grandes corporações financeiras, dos grandes conglomerados. Eles ganham salários que não têm nada a ver com uma disputa no mercado, eles é que determinam quanto vão ganhar. Estamos falando de pessoas que recebem até 200 milhões por ano, e há casos de bônus anuais bilionários. Por último, o terceiro fator é justamente a mudança tecnológica que produz essa desigualdade de acesso à riqueza, porque as pessoas que estão na ponta das novas tecnologias estão tirando de toda sociedade essa renda decorrente do monopólio sobre essas novas tecnologias. E isso aí não é só no mundo rico, não. Porque boa parte dessa nova tecnologia está sendo produzida na China por empresas chinesas, mas também por empresas alemãs, americanas, inglesas que foram para a China pela mão de obra barata.
Com a implantação das novas tecnologias, teremos emprego no futuro?
O risco é um futuro sem emprego mesmo. E, como disse, o trabalho é o principal mecanismo de obtenção de meios de vida. Mesmo que você trabalhe 30 horas por semana, você ainda precisa dessas 30 horas para obter os recursos para fazer coisas que necessita fazer. Quando não houver emprego para todos em função da tecnologia, governar as populações vai ficar cada vez mais difícil. Isto é, manter a paz, a estabilidade social... Tudo isso vai ficar cada vez mais difícil. Um cenário de ficção científica da população se rebelando contra os robôs não está fora do horizonte. A população não vai se rebelar contra as elites, mas contra quem está tomando seus empregos. As sociedades produzem resistência a esse tipo de transformação que afeta profundamente os mecanismos de solidariedade que garantem que a sociedade permaneça. Então, suspeito que teremos movimentos contra a tecnologia, contra a inteligência artificial. Todos os filmes de ficção que tratam disso tocam no problema da governabilidade. Se você assistir ao primeiro Blade Runner [1982, dirigido por Ridley Scott], verá que essa é uma das discussões centrais. Qual é a briga ali? Os replicantes estão sendo caçados por um Estado que tem um problema grande de manutenção da paz. Há uma resistência da população que vai começar a perder empregos ou talvez nem compreenda que está perdendo empregos para um robô. O que pode sair desse cenário? Ninguém pode antecipar. Mas isso não vai acontecer só no Brasil, e sim no mundo inteiro.
Na verdade, quanto mais
qualificado é o novo trabalhador, menos se espera que ele
fique na mesma empresa
Foto: Leila Fugii
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