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Laços que não desatam
Pesquisadora reflete sobre famílias inter-raciais e a complexa relação construída nesse convívio
Lia Vainer Schucman transformou as inquietações que encontrou durante a trajetória como pesquisadora no trabalho de pós-doutorado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) Famílias Inter-raciais: Estudo Psicossocial das Hierarquias Raciais em Dinâmicas Familiares. “A pergunta que iniciou esse trabalho começou a ser formulada a partir de diferentes relatos de sujeitos que expunham a mim os conflitos gerados pela questão da raça no interior de suas famílias”, explica. “Assim, surgiu o desejo de compreender como essas relações, permeadas de tanto amor, afeto e consanguinidade, poderiam também ser tão violentas e repressoras do ponto de vista racial.” A autora trabalha com a categoria raça como uma construção social.
Durante o mês de agosto a pesquisadora esteve no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) para a palestra Famílias Inter-Raciais: Tensões entre Cor e Amor e conversou com a Revista E. Acompanhe a seguir.
Foto: Divulgação
Famílias mestiças
De acordo com os dados censitários do Brasil, é possível dizer que as relações afetivas sexuais inter-raciais acontecem desde os tempos coloniais. No entanto, esse número cresce com o passar dos anos. O censo de 1960 apontou que 8% dos casamentos eram inter-raciais. Em 2010, esse número havia saltado para 31%, ou seja, quase um terço das uniões no país acontece entre pessoas que se autoclassificam como sendo de diferentes raças. Apesar de se tratar de grande parte da população brasileira, ainda há poucos estudos na área da psicologia a investigar a forma como se estruturam internamente as famílias brasileiras no que diz respeito às hierarquias raciais.
Outra observação digna de nota – ao analisar a literatura na área – é que são raras as pesquisas que falam dos processos de racialização dos filhos de casais inter-raciais, ou seja, do mestiço brasileiro. Mais paradoxal ainda é pensar que, apesar de existir uma exaltação da ideologia da mestiçagem no Brasil, é raro encontrar trabalhos contemporâneos que falem sobre a identidade “mestiça” no que tange à própria construção e à experiência cotidiana dos processos de racialização desses sujeitos.
Zona de silêncio
O que é digno de menção e, eventualmente, de problematização é que a imersão nessas famílias inter-raciais corrobora relatos de pessoas na rua, em encontros, palestras e conversas informais, lugares onde posso garantir que há, no Brasil, uma necessidade real de abordar o tema de forma mais aberta e sistemática, ainda mais no que se refere ao trabalho do psicólogo nas diversas instâncias de sua atuação. Essa constatação se deve ao fato de que todas as vezes que anunciei o tema desta pesquisa em lugares públicos alguém vinha me relatar o racismo sofrido em família. Foram inúmeros relatos. Havia ali uma zona de silêncio finalmente interrompida e uma demanda por informações sobre como lidar com o racismo sofrido na família. Nesse sentido, diferentes formas de exclusão foram relatadas cotidianamente durante esses três anos de pesquisa.
Discussão necessária
O debate sobre o racismo deixa suas raízes antropológicas e sociológicas para adentrar um território ainda pouco conhecido, que é o território das identificações profundas, infantis e alocadas no inconsciente. Toda a constituição do discurso racial e/ou racista perpassa essa dimensão psicológica – e, porque não dizer, psicanalítica – e ingressa no substrato emocional que nos torna sujeitos: o trauma, o desejo, a repulsa, as pulsões e, sobretudo, a imersão no universo da linguagem.
Tal é o volume de investigação possível neste novo cenário teórico que o objetivo do meu trabalho é apontar para esse horizonte e viabilizar, por meio da pesquisa concreta e relatada, uma nova fronteira para os estudos do fator raça ou mesmo do trauma da raça e toda uma nova série de conceitos, descrições e terminologia técnica, complementando, assim, os trabalhos já iniciados no campo da psicanálise por Frantz Fanon, Neusa Santos, Isildinha Batista, Jurandir Freire Costa, entre outros.
Essa pesquisa tentou demonstrar também que a família pode ser um dos espaços privilegiados para o desenvolvimento de estratégias para o enfrentamento, acolhimento e elaboração da violência racista vivida na sociedade de forma mais ampla. Por exemplo, José e Jussara, os membros brancos de uma família inter-racial (entrevistados no projeto de pesquisa) sentiram-se em um lugar de duplo pertencimento, ora privilegiados pelo fato de serem brancos, ora discriminados por estarem ao lado de negros.
Dessa vivência surgiu a empatia e a solidariedade para que os dois produzissem uma consciência antirracista. O que mais chamou a atenção nessa família, no entanto, foi o paradoxo envolvido na construção da sensibilidade, o que significa, ao mesmo tempo, acreditar na raça e desacreditar em seguida. Ou seja, é preciso levar em conta que a raça é componente fundamental para compreender as desigualdades entre brancos e negros, mas, ao mesmo tempo, é preciso saber que raça é um contorno em que não há conteúdo intrínseco ou essencial: é preciso enxergar a raça para tornar-se cego a ela.
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É preciso levar em conta que a raça é componente fundamental para compreender as desigualdades entre brancos e negros, mas, ao mesmo tempo, é preciso saber que raça é um contorno em que não há conteúdo intrínseco ou essencial: é preciso enxergar a raça para tornar-se cego a ela
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