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Esther Hamburger

Antropóloga e pesquisadora das áreas de cinema e televisão fala sobre os desafios da TV aberta, streaming de vídeos e acervos digitais

 

Professora titular do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes na Universidade de São Paulo (ECA-USP) e PhD em Antropologia pela Universidade de Chicago, Esther Hamburger investiga a produção cinematográfica, televisiva e das mídias digitais recentes. A pesquisadora também é autora do livro O Brasil Antenado: A Sociedade da Novela (Zahar, 2005) e de inúmeros capítulos em coletâneas e artigos em revistas especializadas. Nesta entrevista, Esther fala sobre a fuga dos telespectadores para outras plataformas de exibição de vídeos, sobre a repercussão sociocultural das telenovelas no Brasil e ainda coloca em xeque a importância da manutenção e valorização de um arquivo público do audiovisual brasileiro.

 


Foto: Leila Fugii

 

Como foi para você estudar televisão numa época em que havia tanto preconceito quanto a esse veículo de comunicação?
Foi e ainda é um desafio muito interessante. A abordagem antropológica permite um jogo de aproximação e distanciamento capaz de provocar questões interessantes e que retiram a televisão – ao menos temporariamente – da polaridade de amor e ódio e assim permite pensar paradoxos, gaps, que ajudam a entender a sociabilidade contemporânea. Não senti propriamente patrulhamento, talvez um ceticismo.

As telenovelas foram foco de algumas das suas pesquisas. Podemos falar que hoje a teledramaturgia está socialmente engajada?
A novela em certo sentido sempre foi engajada. Mas acho que a novela perdeu público ao fazer um movimento em direção ao que se convencionou chamar “marketing social”  apesar de não ser algo que dê para generalizar. Por exemplo, João Emanoel Carneiro não faz essa teledramaturgia voltada a difundir mensagens didáticas, mas a teledramaturgia dele é socialmente engajada no sentido de sintonizar ansiedades que estão no ar, relacionadas, por exemplo, a raça e classe. A diversificação atinge a novela também. É muito raro que hoje ela alcance o nível de repercussão que tinha até o fim dos anos 1990 e começo de 2000. Avenida Brasil (2012) é um ponto fora da curva. Também é surpreendente a melhoria da teledramaturgia norte-americana, que deixa a nossa a desejar. Nos Estados Unidos, houve um processo dentro da indústria do cinema, que ficou amarrada a ponto de haver uma migração de roteiristas e de grandes talentos para a televisão. Isso gerou séries que são acessíveis via internet e nelas está a juventude que não assiste à TV aberta, mas que assiste às séries diretamente no computador.

Quanto ao controle de natalidade, de fato, as telenovelas exerceram essa influência?
Participei de um projeto de pesquisa interdisciplinar e internacional que reunia o Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], o Cedeplar [Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional] da Universidade Federal de Minas Gerais, a ECA-USP e a Universidade do Texas, em Austin. Era um grupo que reunia sociólogos, antropólogos e comunicólogos. O Brasil foi um case na demografia mundial porque aqui a curva de crescimento da fecundidade caiu muito rápido apesar da ausência de política pública, de planejamento familiar ou de controle da natalidade no país. Então, os demógrafos e economistas trabalhavam com perspectivas de crescimento, seguindo décadas anteriores. Quando veio o censo de 1980, referente à década de 1970, foi uma surpresa geral: havia caído muito a taxa de crescimento populacional sem ter havido nenhuma campanha. Como explicar essa mudança tão rápida sem nenhuma política de controle de natalidade? O sociólogo Vilmar Faria percebeu que nas telenovelas as famílias eram pequenas. Foi aí que ele levantou a hipótese de que esse padrão somado a outros fatores, como o crescimento da rede hospitalar, o atendimento de saúde, a migração para as grandes cidades, a entrada da mulher no mercado de trabalho, teria a ver com essa mudança estrutural.

A telenovela também refletiu sobre questões de gênero. Isso favoreceu uma maior compreensão sobre a temática?
Ela legitimou modelos de mulheres mais independentes e a separação de casais. Novelas legitimaram o divórcio antes de ele existir como figura jurídica e de ser aprovado no Brasil. Não era mais suficiente que o marido fosse o provedor, por exemplo. A mulher passou a ter outras expectativas e é legítimo que ela tenha outras expectativas, que ela trabalhe fora de casa. Isso a telenovela trouxe. Embora existam alguns tabus – o tema aborto é um deles. Um problema de saúde pública é um assunto raríssimo na televisão. Heloísa Buarque de Almeida, que trabalhou nesse projeto comigo [mencionado na questão anterior], foi estudar depois a série Malu Mulher, um exemplo raro de abordagem do aborto. A novela também ampliou o limite – e continua ampliando – do que é considerado legítimo em termos de sexualidade e diferenças de gênero.

Hoje os smartphones ocupam o papel da TV? Qual o reflexo desse consumo de imagens?
As imagens fazem parte do nosso cotidiano. Acho que o interesse pelo celular de hoje é análogo ao interesse pela televisão nos anos 1970. Interesse provocado pela possibilidade de conexão com o mundo. No caso do smartphone, é você quem manipula e se conecta para além de limitações sociais. Porque as instituições tradicionais – escola, igreja, família – definem certos pertencimentos ou certos acessos a determinados repertórios. A imprensa, o cinema, e depois a televisão, são fontes de conexão com o mundo que acenam a possibilidade de ir além dessas instituições estabelecidas. Então, acho que o fascínio pelo smartphone no Brasil tem muito a ver com isso. Assim como vemos na série Black Mirror e em outras séries de ficção científica, a relação do ser humano com as máquinas torna-se cada vez mais complexa.

Com a chegada de novas tecnologias, como o streaming de vídeos, será o fim da televisão como a conhecemos?
Acredito que um meio não morre quando outros surgem. O que muda é o peso desses meios na nossa rotina. Nos anos 1990, já havia uma queda de audiência da TV aberta em função da introdução da TV a cabo. Hoje em dia, com a explosão do meio digital, aquela TV, da maneira como a conhecíamos, está se transformando rapidamente. A primeira coisa a destacar é que a grade de programação – conceito básico da televisão aberta – cada vez mais perde sentido. Isso porque a internet e o vídeo on demand nos permitem assistir àquilo que quisermos no horário que quisermos. Está aí um desafio para a TV aberta: encontrar seu lugar.

Sendo assim, o que a TV aberta faz para melhorar sua audiência?
Os programadores [de televisão] acreditam que para comprar ou obter audiência é necessário apelar para programações que eles julgam mais fáceis e sensacionalistas. Esse é um raciocínio temerário que justifica programações apelativas e baratas. Há vários exemplos, na história da televisão e do cinema, de conteúdos que são absorvidos por distintas classes sociais. O problema é que, para criar esse tipo de conteúdo, é preciso um investimento maior em tempo e em energia criativa. Colocar a culpa nos espectadores é fácil, mas não é da responsabilidade deles o ato de criar programas. Eles só podem optar entre o que está sendo oferecido.

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Os programadores [de televisão] acreditam que para comprar ou obter audiência é necessário apelar para programações que eles julgam mais fáceis e sensacionalistas

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Foto: Leila Fugii

O aumento de talk shows representa uma vontade do brasileiro de ouvir pessoas sobre assuntos diversos a fim de escapar da “má” ficção?
O país vive uma crise política, como diz o slogan de House of Cards no Brasil: “Tá difícil competir”. Tanto que a duração dos telejornais aumentou e seu horário deslocou o da novela, que já foi um horário sagrado no Brasil. Ou seja, o telejornal está ocupando mais espaço. No entanto, é uma pena que a gente ainda não tenha nem telejornal nem talk shows provocativos ou de investigação como em outros lugares. Acho que nesse momento nosso jornalismo poderia estimular reflexões – buscar dados históricos – para ajudar a formular ideias de superação das crises que vivemos.

A Netflix e canais da TV a cabo passaram a apostar em conteúdos brasileiros. O que isso representa?
A primeira série brasileira produzida pela Netflix [3%] é de ex-alunos da ECA. Algo muito interessante a se notar é que essa é uma série com problemas, mas também com qualidades. Embora a segunda temporada esteja em fase de produção, ela foi muito criticada. Acho que essa diversificação tem isso de abrir espaço para as novas gerações experimentarem. 3% aborda os mecanismos de seleção que vigoram de uma forma ou de outra ao redor do mundo. Essas novas séries têm aquele frescor que havia anteriormente nas telenovelas brasileiras.

E por que a juventude consegue se identificar com esses conteúdos?
Acho que pela liberdade de escolher quando, em que ritmo e em qual plataforma podem assistir a um ou outro conteúdo. O que ainda se mantém interessante para os jovens na TV aberta são os canais de esportes. Tanto na TV aberta quanto na TV a cabo, a transmissão de jogos de futebol e de outros esportes ainda é simultânea. Mas o resto da programação, as pessoas querem controlar quando vão assistir. Isso desafia a TV aberta brasileira, que sempre foi muito restrita e centralizadora. Grandes talentos da publicidade não foram absorvidos pela televisão aberta, mas agora são.

Quando se fala em atrair jovens talentos, podemos dizer que esse novo formato de TV a cabo, streaming, vídeos on demand terão conteúdos mais substanciais?
Acho que podemos ter um enriquecimento do conteúdo. No entanto, não podemos desprezar que muita gente que começou a fazer televisão agora, ou que já fez cinema, desconsidera os saberes do passado. A teledramaturgia acumulou um savoir faire que deve ser levado em conta. Nem tudo o que é feito pelo cinema é melhor do que aquilo que é feito pela televisão. Mas o que está acontecendo é uma abertura de “janelas”, e isso pode trazer bons resultados.

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A teledramaturgia acumulou um savoir faire que deve ser levado em conta. Nem tudo o que é feito pelo cinema é melhor do que aquilo que é feito pela televisão

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Esse foi o caso do programa Porta dos Fundos, que nasceu na internet e teve grande repercussão no Brasil?
Tem muita coisa nascendo assim. Não só no Brasil, mas no mundo. Muita coisa inovadora que não está no cinema e que permite uma fluidez maior e até uma possibilidade crítica maior. Por exemplo, temos na ECA um aluno que fez uma série baseada na obra de Machado de Assis: pode ser que o resultado fique muito interessante por ter episódios curtos e ser de fácil produção. Sabemos que a televisão aberta estava na linha de frente. Agora, ela está sempre recuada. Então, “o novo” surge na internet, se fortalece e daí vai para a TV aberta ou para o cinema.

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Sabemos que a televisão aberta estava na linha de frente. Agora, ela está sempre recuada. Então, “o novo” surge na internet, se fortalece e daí vai para a TV aberta

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E como fica o cinema nesse cenário?
O cinema vive um desafio: ele precisa se reencontrar. O cinema ficou muito aquém, apesar de boas produções como O Som ao Redor. Kleber Mendonça Filho é um cineasta que fez coisas muito interessantes, curtas incríveis, como Recife Frio, que é hilário. O cinema pernambucano tem algo muito interessante: ele está sempre pensando no contexto histórico e social. Ou seja, ele é contemporâneo, mas faz uma reflexão sobre como o passado continua reverberando no presente. O Som ao Redor, por exemplo, tem a figura do coronel e da fazenda em decadência, mas ele continua “dono” de um território em Recife. O cinema acontece na internet. Curtas “viralizam” e por vezes se tornam longas. Obras antigas, antes restritas a cinematecas ou DVDs especializados, podem ser consultadas, mesmo que em baixa resolução.

No caso do documentário, essa linguagem perdeu ou ganhou prestígio?
O documentário é anterior à televisão, mas na Europa e nos Estados Unidos a televisão se tornou a janela mais comum para o documentário. Porém, no Brasil, ainda há um espaço muito restrito na TV aberta para esse formato de programa. O contrário acontece na programação a cabo: canais interessantíssimos com muitos documentários. É como se o público da televisão aberta não quisesse ver documentário. No entanto, a população brasileira é sedenta por conhecimento. No Brasil existe uma pecha de ignorância, como se todo preconceito social pudesse ser sintetizado na ignorância. Mas o que dá certo é não subestimar o público. No Brasil, deveriam ser criados espaços para exibição do documentário: uma alternativa ao telejornalismo grudado na fofoca e na notícia do dia.

Outro ponto que vem à tona com as novas tecnologias é a preservação da história do audiovisual. Como fica essa questão do acervo?
Essa é uma questão muito importante. Temos a Cinemateca [instituição responsável pela preservação da produção audiovisual brasileira], que sobrevive a duras penas e poderia ser o início de um acervo público de televisão, algo que nunca tivemos. Na França, por exemplo, as emissoras fazem o depósito legal do que exibem. Elas resistiram no início, mas depois perceberam que os direitos sobre as imagens não estão ameaçados e que o serviço de preservação, que é cada vez mais complexo, fica a cargo da instituição responsável. O acervo de televisão francesa está disponível na Biblioteca Nacional para consultas gratuitas. É um modelo.

Este seria o modelo ideal para seguirmos?
Não precisaríamos seguir o mesmo. Apesar de alguns canais exibirem acervos, ou mesmo o YouTube servir como “depósito”, não se sabe até quando alguns materiais estarão disponíveis. Por isso, deveria haver uma preocupação com esses acervos, organizá-los na forma de arquivos e garantir acesso público. É difícil avaliar essa questão sem ter acesso ao que foi exibido na televisão. Então, a pequena densidade da nossa crítica televisiva tem a ver com a falta de acervos. E a fragilidade da crítica não ajuda a melhorar os conteúdos. O acesso à memória é estratégico. Hoje lidamos com a linguagem binária digital. Mas já se fala em outros sistemas. Arquivos digitais exigem atualização constante. Logo, a tecnologia dará um novo salto, talvez para o quântico. Se não quisermos nos tornar um povo sem memória, temos que nos preparar.

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A pequena densidade da nossa crítica televisiva tem a ver com a falta de acervos. E a fragilidade da crítica não ajuda a melhorar os conteúdos. O acesso à memória é estratégico

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