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Produção cultural independente

Cinema independente, teatro independente, música independente. A ideia de “independência” costuma ser usada para demarcar uma posição alternativa aos modelos massificados, oficiais ou institucionalizados de produção. Mas o que seria, hoje, a produção cultural independente? Quais os desafios, os problemas e as potencialidades desse mercado? Quais questões a produção cultural independente levanta para a formulação de políticas de fomento às artes? Discutem o tema a criadora e professora em artes performáticas e doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) Maria Carolina Vasconcelos Oliveira e o pesquisador e doutor em Sociologia pela USP José de Souza Muniz Jr.


Ilustração: Marcos Garuti
 

Caminhos possíveis para a compreensão

por Maria Carolina Vasconcelos Oliveira

É de se notar que, nos contextos de produção cultural e artística de várias cidades do Brasil e do mundo, nos últimos anos, estejam se proliferando produtos e cenas ditos “independentes”. Sem definições muito consensuais, classificações como “alternativos”, “à margem”, “organizados de baixo para cima”, “caseiros”, entre outras, que com maior ou menor intensidade, aparecem associadas à não menos vaga ideia de “independência”, cada vez mais são atribuídas ou reivindicadas nos mundos da cultura. A ponto de alguns se perguntarem se isso não estaria simplesmente se transformando em mais um nicho de mercado – explicação que, a nosso ver, tende a certo reducionismo.

É notável também o fato de que a proliferação de adjetivos como os citados se constate não só nas artes, mas em várias outras esferas de produção de bens que contenham algum componente simbólico, como na área da informação (com o questionamento aos “grandes” veículos e a proliferação de fontes “menores” e menos institucionalizadas) ou mesmo na produção de alimentos (com a valorização de ideias como “comprar de quem faz” ou “produção artesanal”). Nas artes, vemos proliferar formas que se reivindicam como cinema independente, música independente, publicações independentes e até dança independente. A ideia de “independência” parece ser usada para demarcar uma posição alternativa não somente aos modelos industriais/massificados de produção, mas também a outros modelos “oficiais” ou mais institucionalizados que não necessariamente se organizam de forma industrial.

De forma geral, poderíamos entender esse fenômeno como manifestação de uma tendência mais ampla de individualização e customização, que perpassa vários âmbitos da vida social contemporânea, e que alguns autores definem como característica da pós-modernidade, hipermodernidade ou modernidade reflexiva (dependendo da forma como caracterizam o momento que vivenciamos hoje). Essa explicação certamente faz sentido, mas, por ser ampla demais, tem pouca utilidade quando se deseja compreender as transformações que se passam dentro de campos mais específicos da produção cultural.

Outra via de explicação que é comumente utilizada para compreender a proliferação de discursos e práticas ditos independentes, especialmente no mundo das artes, é a que dá centralidade às chamadas revoluções tecnológicas, que teriam facilitado, a um número maior de indivíduos, o acesso aos meios de produção de conteúdo. Se, de um lado, não se pode negar que as mudanças nos paradigmas tecnológicos influenciam expressivamente as esferas de produção cultural, de outro, assumir as novas tecnologias como único ou principal diferencial desses contextos “independentes”, ou como fator que os determina, também nos parece um pouco exagerado. No mais, convém lembrar que contextos “independentes” na produção artística são notados em vários momentos históricos anteriores ao desenvolvimento dessas tecnologias. Raymond Williams, em um conjunto de textos reunidos no volume intitulado Cultura (1992), observou a existência de projetos dissidentes ou independentes, que se organizavam como resposta a tendências mais amplas de institucionalização nos contextos da produção artística, em diversos momentos históricos. Ele constata que, já a partir dos anos 1600, como reflexo do início do processo de institucionalização das formações mais especializadas e academicistas da arte, começaram a surgir grupos com posicionamentos contrários ao que seria uma visão “oficial” da produção. No final do século 19, com o aumento da centralidade das Academias, os movimentos de reação se intensificaram – um bom exemplo, nas artes visuais, é o Salon des Refusés, organizado em 1863 por artistas precursores do que hoje nomeamos como as “vanguardas”. Outros autores como Pierre Bourdieu e Nathalie Heinich também constatam artistas e grupos caracterizados por um posicionamento de afirmação da “independência” ou “marginalidade” no campo da literatura francesa nesse mesmo período; e, na tradição americana, Howard Becker observa a existência de dissidentes/independentes (mavericks) principalmente no campo da música no início do século 20.

Uma outra abordagem comum a quem se aventura a refletir sobre a independência tende a ser a de observar somente o conteúdo estético e discursivo das obras que reivindicam ou recebem essa classificação. É claro que esse é um ponto importante da análise (entender, por exemplo, se o “independente” sempre coincide com o “experimental”, ou se sempre se opõe ao “comercial” ou ao mainstream), mas é importante lembrar que a dimensão de análise forma da obra resultante (que inclui os discursos, as estéticas, as poéticas etc.) e a dimensão de análise organização da produção (que inclui o pensamento ou modo de produção que orienta o desenvolvimento da obra, as formas de organização do trabalho etc.) nem sempre coincidem absolutamente. Há exemplos de produções igualmente classificadas como “experimentais” (no que diz respeito à forma) que resultam de contextos de produção muito diferentes.

A nosso ver, é essencial observar casos empíricos (por exemplo, cenas específicas de cinema independente ou música independente) para tentar entender o que, de fato, está por trás dos discursos da independência – uma vez que a ideia de fazer uma “teoria geral da independência” não parece possível nem desejável. Após observar alguns casos, uma abordagem que tem nos parecido satisfatória para aprofundar a compreensão sobre esse fenômeno é a que passa pela análise de pelo menos três dimensões. Em primeiro lugar, pela observação das representações e imaginários associados à “independência” no caso em questão – por exemplo, buscando entender quais modelos de produção ou atores essas representações de independência criticam, quais valores celebram e que tipo de recompensas simbólicas esses posicionamentos trazem. Em segundo lugar, é importante observar as práticas e processos reais em que os produtos/obras/ideias são criados, para verificar se o imaginário de “independência” de fato reverbera em modos de produção diferentes dos “não independentes” – aqui poderia ser observada, por exemplo, a dimensão da organização do trabalho, ou o tipo de financiamento utilizado para bancar a produção, entre outros aspectos mais relacionados aos modos de fazer. E em terceiro lugar, é importante observar os circuitos específicos em que esses produtos/ideias ditos “independentes” fluem e são levados a público – por exemplo, seus mercados (não necessariamente no sentido econômico do termo) e também as instituições ou pessoas que atribuem valor a esses produtos/obras/ideias. Um quarto ponto desejável, a nosso ver, seria o de observar a forma, ou o conteúdo estético/discursivo/poético das próprias obras, a fim de compreender se e como se diferenciam daquilo que não é classificado como independente.

Se é possível concluir algo mais ou menos geral acerca da “independência” nas produções culturais, é que se trata de uma classificação essencialmente relacional. Todos os adjetivos que, de forma mais ou menos vaga, aparecem relacionados a essa classificação parecem carregar em si o seu outro. Só se é independente ou alternativo em relação a algo. Só se pode definir algo como estando “à margem” quando se tem ideia de um outro que está “no centro”. Essa relação com um outro, como fica claro, não é uma relação qualquer, mas uma relação de negação. O posicionamento de “independência”, dessa forma, parece sempre envolver algum tipo de disputa – e, não à toa, muitos dos que reivindicam essa posição assumem posturas que se assemelham a uma espécie de militância. O que parece estar em jogo nessas disputas, como grande categoria de análise, são muito mais os modelos ou pensamentos a partir dos quais certas coisas são produzidas e o posicionamento que os atores estão assumindo em relação aos seus outros do que somente o conteúdo da produção (seja ela uma obra artística, um produto ou uma ideia). Daí a importância de uma observação que leve em conta a organização social da produção, as relações e representações mais amplas que orientam o campo em questão, a trajetória e as filiações de quem está produzindo, os modos de fazer, de atribuir valor e de circular os conteúdos produzidos.


Maria Carolina Vasconcelos Oliveira é doutora em Sociologia pela USP e atua como criadora e professora em artes performáticas.


 

A produção cultural e suas (inde)pendências


por José de Souza Muniz Jr.

O país independente é aquele que se libertou do jugo metropolitano e tomou as rédeas de seu próprio destino político. Independente é, também, o jovem que logrou sair das asas da proteção afetiva e financeira dos pais, passo importante para aquilo que se convencionou chamar de idade adulta. O juiz independente, por sua vez, é aquele cuja decisão não se deixa corromper por possibilidades de benefício ou privilégio, o que garante, idealmente, a imparcialidade de seus juízos.

A independência pode ser uma condição garantida de antemão, ou algo a ser conquistado ou recuperado. Em todo caso, ela é sinônimo de autonomia, liberdade, soberania – valores que o homem moderno aprendeu a ter em alta conta. Ser soberano é não ser colônia; ser liberto é não ser escravo; ser autônomo é poder decidir como e quando fazer. É não estar sujeito aos imperativos de outrem; não dever submissão ou obediência; ver-se livre de opressões ou constrições.

Porém, essas observações só podem ser feitas de forma genérica, porque o adjetivo “independente” é incompleto, relacional: uma coisa (in)depende ou não de outra(s). Além disso, ele é impreciso, porque a independência é uma qualidade que pode definir-se em termos econômicos, políticos, intelectuais, afetivos, morais... Quando alguém diz que o Brasil é um país independente ou que a Folha de S.Paulo é um veículo independente, permanecem não ditos os termos dessa independência. Afinal: independente de que ou de quem? E independente em que sentido?

Essas são, me parece, algumas das perguntas fundamentais a serem feitas quando o tema é a produção cultural independente. Mais do que discutir as condições concretas dessa produção na atualidade, me interessa pôr em questão sua própria existência, na medida em que os usos desse adjetivo são, em muitos aspectos, resultantes de uma armadilha semântica. Em vez de auxiliar na compreensão dessas práticas, o termo “independente” conduz a mal-entendidos que obstruem a construção de um debate qualificado sobre o tema.

O fato é que, nas três últimas décadas, um conjunto amplo e diversificado de produtores simbólicos qualificados dessa maneira por si próprios e por outros tem ampliado sua presença na cena pública. O adjetivo “independente” começou a aparecer com frequência nos debates sobre arte e cultura, passando a definir produtores, instituições, práticas e produtos em áreas tão diversas quanto a música, o cinema, as artes visuais, o teatro e a edição de livros. Ao mesmo tempo que se converte em objeto de usos diversos e assume sentidos heterogêneos – e, por vezes, contraditórios –, ele dá origem a formas tanto individuais como coletivas de intervenção intelectual e política com vistas a discutir o presente e o futuro da produção cultural. A adoção desse termo para qualificar as próprias práticas denota, muitas vezes, gestos de heresia ou de rebeldia perante os poderes instituídos e as fontes de dominação dentro do mundo cultural.

O que proponho é que, para compreender a produção cultural “independente”, devemos estar atentos ao fato de que nenhum sentido desse adjetivo está dado de antemão. Faz-se necessário, assim, recusar o caráter de transparência que o termo pode querer assumir no discurso dos agentes, que tenderão sempre a produzir não só coerência e consistência para os critérios que formulam, como também incoerência e inconsistência para os critérios contra os quais se posicionam. Em vez disso, é justamente na opacidade desses discursos que podemos buscar as motivações de suas tomadas de posição.

A palavra “independente” serve tão somente como via de acesso a um conjunto complexo, heterogêneo e volátil de conhecimentos socialmente construídos e partilhados, por meio dos quais os sujeitos buscam entender a própria experiência no fazer cultural e, ao mesmo tempo, construir tal experiência. Dessa perspectiva, o “independente” se mostra à análise não como ideia ou abstração na mente dos indivíduos, mas como categoria que circula e se transforma, que faz sentido para os sujeitos e dá sentido às suas práticas, enraizando-se nelas.

Tendo em mente essas questões, há pelo menos dois aspectos que me parecem essenciais para entender o universo da produção cultural “independente”. 

O primeiro é que cada campo de produção cultural, por possuir uma história própria de enfrentamento das ingerências externas sobre suas formas e conteúdos, apresenta modos singulares de conceber a “independência”. O ideal da produção “independente” não se coloca da mesma maneira para editores, artistas visuais, músicos ou cineastas, pois cada um desses setores da produção simbólica construiu historicamente, de modo singular, suas próprias concepções de autonomia e heteronomia. Isso, porém, não quer dizer que os sentidos não se transfiram de um domínio a outro, à mercê da circulação dos discursos e dos próprios agentes. Ademais, a incidência de fenômenos generalizados em certos contextos, como a censura estatal e a concentração de propriedade, contribui para criar pontos de contato entre os “independentes” de campos diferentes, que se veem submetidos a formas semelhantes de pressão ou heteronomia.

O segundo ponto é que a imposição de certos sentidos do “independente” em detrimento de outros varia segundo o estado das relações de força num dado contexto. Assim, por exemplo, a variação entre sentidos positivos (ousadia, liberdade, inovação) e negativos (pretensão, oportunismo, imaturidade) do termo só se torna inteligível se consideramos (1) a distância entre quem (des)qualifica e o objeto (des)qualificado e (2) as dimensões da vida social (política, ideológica, econômica, geracional, geográfica etc.) que essa distância expressa. Isso significa que não se podem negligenciar as dinâmicas de distinção social que estão na base das operações de (des)classificação nas quais o termo “independente” é empregado. Não parece casual, dentre outras coisas, que a posição de independência tenda a ser assumida pelos produtores mais jovens de um dado campo artístico, dentro do qual a negatividade dessa posição (falta de acesso às principais instâncias de consagração, por exemplo) é convertida em signo positivo (construção de instâncias alternativas como gesto de bravura ou experimentalismo).

Por fim, e em síntese, pode-se dizer que os posicionamentos dos “independentes” dizem respeito a relações de distância ou proximidade, afinidade ou oposição, com três instâncias de poder: as convenções estéticas ou morais (que podem ou não estar encarnadas em instituições como a Igreja, os museus, as premiações, os festivais); o mercado (tomado ora como lugar excludente que os rechaça e que se deve rechaçar, ora como arena onde se pode e se deseja granjear espaços); e o Estado (tomado ora como fonte de heteronomia e cooptação, ora como apoiador estatutário da causa por meio de suas políticas de fomento). Novamente, essas tomadas de posição só são compreendidas quando se leva em conta o estado das relações de força no espaço da produção simbólica e o modo como cada agente, ocupando um lugar específico nesse espaço, interpreta essas relações e busca transformá-las ou conservá-las.

Esses são alguns pontos que merecem ser considerados para responder àquelas perguntas de base: independente de que ou de quem? E independente em que sentido? Tais questões, embora não possam fornecer nenhuma resposta conclusiva sobre o presente e o futuro dessas iniciativas culturais, configuram um ponto de partida possível a quem interesse discutir os modos pelos quais os agentes do mundo social se envolvem em relações de cooperação e competição para definir os modos legítimos de ser “independente”. Sem pretender lançar um ponto de vista mais qualificado ou correto que o dos próprios “independentes”, esses questionamentos nos permitem, pelo menos, problematizar as formas de autoidentificação e de organização político-intelectual desses produtores culturais e as hierarquizações sociais que moldam sua experiência.


José de Souza Muniz Jr. é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Em sua tese pesquisou comparativamente as práticas e representações dos editores independentes no Brasil e na Argentina.

 

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