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Ivam Cabral
Ator, diretor e dramaturgo fala sobre o potencial de transformação social e urbana por meio do teatro
Foto: Leila Fugii
Ator, diretor e dramaturgo, Ivam Cabral foi cofundador da Cia. de Teatro Os Satyros, em 1989, e é diretor executivo da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, criada em 2009. Em meados dos anos 2000, também esteve envolvido no projeto de revitalização da Praça Franklin Roosevelt, hoje um conhecido espaço de agitação cultural em São Paulo. Nesta entrevista, o diretor fala sobre o movimento teatral de apropriação de espaços públicos e sobre a formação para o teatro como mecanismo de transformação social.
Como você vê a ressignificação de espaços públicos por meio de processos artísticos?
Quando Os Satyros chegaram à praça Roosevelt, em dezembro de 2000, a gente já tinha 11 anos de estrada e ficava em um lugar na rua Major Diogo onde havia moradores de rua, o que fazia algumas pessoas terem medo de passar por ali. Involuntariamente, a gente fez uma pequena revolução naquela quadra. Foi a partir daquele momento que começamos a perceber a importância da geografia na vida do artista, a questão do território, a ressignificação de espaços. Se você está em uma região de risco e as pessoas têm medo de passar pela calçada, colocar uma luz e uma mesinha ali pode ser uma revolução, você vai ser vigilante do lugar. É tomar o espaço para você.
De que maneira começou a mudança na Praça Roosevelt?
Depois de um tempo pela Europa, voltamos para São Paulo já com um projeto estruturado. Só estávamos interessados em procurar espaços em lugares complicados. A gente não queria ir pra lugar iluminado. Identificamos um espaço ali na Praça Roosevelt e vimos que havia prostituição, tráfico, e ao mesmo tempo era um lugar que tinha um passado elegante para a cidade, mas que naquele momento estava quebrado. Então propositalmente fizemos um plano de trabalho em que a gente dava cinco anos para começar a atrair as pessoas. Achávamos que seria muito difícil, mas em dois anos já tínhamos conseguido fazer as pessoas perceberem que aquele lugar existia. Eu sempre digo que a grande revolução da Praça Roosevelt foi uma mesa na calçada. Era uma mesa para chamar as pessoas para sentarem ali e conversar.
E em relação ao público? Como ele também foi mudando a percepção sobre aquele lugar que na época era considerado inseguro?
No fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000 a cidade estava abandonada, as ruas não nos pertenciam e o centro de São Paulo, no inconsciente coletivo, era considerado um espaço em que você seria assaltado, que era perigoso. Naquele momento a cidade estava abandonada. No começo, ninguém entendia por que havíamos escolhido aquele espaço. Desde o início, sabíamos que se a gente não atraísse outras pessoas que comprassem a ideia e acreditassem nesse plano nada aconteceria. A gente abriu, e eu telefonava para as pessoas convidando para que se encontrassem, fizessem reuniões, ensaios lá. A gente incentivou essa atitude desde o primeiro momento. Lembro o primeiro pipoqueiro que apareceu na praça, o primeiro carrinho vendendo cachorro-quente na Praça Roosevelt. Fui acompanhando tudo isso porque sabia que essa revolução aconteceria se fosse coletiva. Sozinhos não conseguiríamos nada. Já no início foram surgindo outros grupos, outros lugares, o pessoal da literatura apareceu muito rapidamente, o pessoal de cinema foi surgindo, da música. Além disso, a gente foi percebendo que havia uma comunidade de excluídos que a gente precisava atrair. Nossos primeiros espectadores vinham da extrema zona leste.
Em que momento você sentiu que a ação cultural poderia ser restauradora?
O teatro é uma grande arma, principalmente pelo caráter presencial. É preciso um encontro com o público, e algo sempre resulta desse encontro. Além disso, se tenho uma peça em cartaz de quinta a domingo às 21h, não posso chegar na hora, preciso estar presente naquele lugar todos os dias, então o espaço vai sendo ocupado.
Naquele momento a Praça Roosevelt era um espaço onde havia tráfico, prostituição. Como foi chegar a esse espaço com uma proposta artística?
A gente se instalou exatamente em frente ao ponto de venda de drogas. Por muito tempo recebemos ameaças, diziam que sabiam nossos endereços de casa, quebravam a lâmpada da frente do teatro. O que mais marcou foi um dia em que recebemos uma ligação dizendo que se abríssemos naquela noite haveria um derramamento de sangue. Nesse dia houve muita tensão, várias pessoas saíram do grupo, foi uma coisa louca. A gente decidiu ficar na frente do espaço, na porta, nas mesas e dando retaguarda. Foi um momento de muita tensão, mas no fim não aconteceu nada, e desde aquele dia nunca mais entraram em contato. A partir daí, não quebraram mais luz, não fizeram nenhum tipo de ameaça.
E a relação com quem estava morando ali, como era?
Eu sempre lembro que existia uma pergunta que a gente fazia às pessoas que estavam ali na praça e que mudava tudo. A pergunta era: “Qual é o seu nome?”. A gente não pode esquecer que muitas das pessoas que estavam ocupando a região da Roosevelt naquele momento eram meninos sem família, que haviam saído da Fundação Casa, conhecidos na rua por alcunhas variadas. O que parecia é que ninguém queria saber quem eles eram, então perguntar o nome deles abria portas para um diálogo. A partir dali, a gente começou a levar para o teatro vários desses meninos para trabalhar na parte técnica.
O trabalho foi uma maneira de se aproximar das pessoas que estavam ali?
O futuro desses meninos só pode ser garantido se eles tiverem trabalho. Em um mundo cruel, capitalista, eles precisavam de trabalho. Antes de vir a questão existencial, com perguntas como: “De onde eu sou?”, “De onde eu vim?” – os complexos freudianos –, existe uma questão prática: quem você é e o que você faz. Para ressignificar uma história, é preciso que a pessoa tenha comida. O trabalho é o grande motor disso, então é preciso preparar e qualificar as pessoas. O teatro é legal porque ele é plural, existe de tudo para fazer no teatro, desde a limpeza até o som, a construção de cenários. Muitas pessoas que conhecemos naquela época trabalham até hoje lá com a gente.
De onde surgiu essa ideia de formar as pessoas para a parte técnica do teatro?
Quando a gente percebeu que tinha um público muito grande do Jardim Pantanal, fomos conhecer o local, e quando chegamos lá percebemos que éramos famosos. Tinha um salão de cabeleireiro com os nossos cartazes na parede, foi muito surpreendente. Quando a gente percebeu isso, decidimos fazer um trabalho lá na região pra devolver um pouco desse amor. A ideia inicial foi fazer um curso de teatro, um curso de atuação, mas depois notamos que essa não era a praia daquelas pessoas. O teatro não é só interpretação, não é só jogo, mas é também prático, e foi a partir daí que percebemos que a parte técnica para eles era mais legal. O som e a luz eram práticas que gostavam mais, porque podiam aprender a iluminar a balada, o baile funk.
Como esses cursos acabaram se tornando a Escola de Teatro?
O Gilberto Dimenstein [escritor e jornalista], em 2004, fez um livro falando sobre processos artísticos que redefiniram espaços públicos de lugares onde ele morou, como Caracas, Nova York, e nesse livro ele fala também da experiência da Praça Roosevelt. Ele me ligou um dia, mandou o livro, e quis lançar no Satyros. Estávamos em 2005 e já estava acontecendo a Virada Cultural, e o então prefeito José Serra viria à Praça Roosevelt. A gente fez uma brincadeira que a gente fazia em lançamentos de livros, o Teatro de Livro. O Serra chegou e o pessoal do Jardim Pantanal estava lá, ele achou curioso e a partir dali começou a frequentar as peças, ficou sabendo da história com o pessoal do Jardim Pantanal e sugeriu uma escola técnica para teatro. A partir dali, começou o processo de desapropriação do prédio e o surgimento da escola em si.
Existe um modelo pedagógico específico?
A gente desenvolveu um sistema pedagógico que tem sido copiado, temos exportado para outros lugares, como Finlândia, Suécia. A gente não acredita, por exemplo, em acumulação. Os módulos dos cursos são independentes, cada módulo tem começo, meio e fim. Na escola não vai ter história do teatro, nada assim, por exemplo. A gente parte da experiência, e tira da experiência o aprendizado.
Essa formação técnica supre um espaço que existe hoje no campo artístico?
Aprender cenografia, iluminação, não é só para o teatro, é também para hotel, resort, cruzeiro. É uma formação para o mercado de trabalho em geral. As pessoas hoje são exigentes. Se você fizer um baile no fundo do seu quintal e não pensar na sonoridade e na luz, não vai ninguém. Geralmente, esses eram serviços que eram passados dentro de casa, um pai ensinava para um filho e por aí vai. Hoje, eventos, shows, instituições culturais precisam desses serviços, de diretores de palco, de cena. A média salarial de um técnico de som e de luz é de 2.700 reais para quem está começando, e aos 19 ou 20 anos de idade ter a possibilidade de ganhar um salário desses é sensacional.
Isso tem a ver também com o aumento do mercado de entretenimento, com grandes festas e eventos acontecendo por diversas regiões do Brasil?
É um mercado muito promissor. A gente batalhou tanto para que essas comodidades de aplicativos e facilidades do tipo existissem, mas esquecemos de algo importante, o nosso bem-estar. Onde gastar essa energia? No entretenimento. O nosso respiro é ir em um lugar com uma ambiência legal. Por exemplo, muitas vezes o atrativo de um restaurante nem é a comida, mas é a estrutura que o lugar tem para receber os clientes. Não queremos mais uma luz qualquer, ou um som qualquer, e técnicos especializados podem fazer isso tudo, desde o cenógrafo, que pode decorar ambientes.
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