Postado em
A voz que não se cala
Com uma vida repleta de momentos difíceis e entrada tardia na carreira musical, Clementina de Jesus é uma das joias da cultura brasileira
Foto: Divulgação
“Vem cá, Quelé.” Ao assim convidá-la para cantar, José, espanhol dono de uma barbearia e fã da voz da menina, despretensiosamente estimulou a força de interpretação de Clementina de Jesus. Mas o destino traçou outros caminhos para a garota, que, apesar de cantar desde muito jovem, inseriu-se no meio artístico profissionalmente somente aos 64 anos de idade.
Clementina é parte de um capítulo instigante da música brasileira, pelos feitos acumulados em sua trajetória. A cena de abertura se deu em Valença, no Rio de Janeiro, no ano de seu nascimento, 1901. Os pais da sambista eram escravos libertos (a Lei Áurea foi assinada em 1888) e na região prevalecia o cultivo do café e a concentração do fluxo de ex-escravos, o que tornou a cidade um polo da cultura afro-brasileira, como é indicado no livro Quelé, a Voz da Cor: Biografia de Clementina de Jesus (Civilização Brasileira, 2017), dos jornalistas Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz.
Pastoril de João Cartolinha
Em 1908, Clementina segue para o Rio de Janeiro com os pais, motivados pelas boas novas vindas da capital. Lá seria possível ajeitar a vida, prosperar. O pai vendeu as galinhas da família e com o dinheiro foram à estação ferroviária de Valença com destino ao bairro de Jacarepaguá, onde a menina foi alfabetizada. O contato com esse mundo letrado a tocou fundo, tanto que desejava ser professora. Passou a viver em regime de semi-internato, imersa em atividades, retornando para casa no final do dia.
O ato de cantar se intensificou nesse período. Um dos encontros decisivos foi com João Cartolinha, mestre de pastoril (dança folclórica) e morador de uma chácara próxima à casa de Quelé. De pronto, a menina integrou-se ao grupo das pastorinhas por dois anos, sendo uma das cantoras.
Nessa época de descoberta da voz, a família sofre uma perda. Com a morte do pai, mãe e filha se mudam para uma casa bem simples, no Morro da Matriz. Agora, era dona Amélia Laura, mãe de Clementina, quem dava conta das despesas. Ela e a filha trabalhavam como domésticas. Contudo, a mudança não a afastou de João Cartolinha. O padrinho a levava para o clube Moreninha de Campinas, onde se fazia samba.
Maternidade e samba
A maternidade chegou aos 22 anos, com o nascimento de sua filha Laís. Olavo, namorado de Clementina, não assumiu a paternidade e a menina foi criada com o apoio da avó. O momento delicado deflagrou o convívio com Paulo da Portela – e com a escola que surgiria nos anos 1920 – e Carlos Cachaça, um dos fundadores da Mangueira e sambista dos bons.
Além de escrever os versos que entoava, Clementina não dispensava uma festa. Frequentava de eventos musicais (batuques) a comemorações religiosas, em igrejas como a da Nossa Senhora da Glória, localizada na praça que lhe dá nome. Durante os anos 1930 a cantora também conheceu figuras importantes na Vila Isabel, como Noel Rosa e Araci de Almeida.
Em outro morro, o da Mangueira, tem contato com seu primeiro marido, Albino Corrêa Bastos da Silva. O casal passa a dividir a mesma casa em 1940. Clementina engravida novamente, mas o menino Euclides morre ainda bebê. Pouco tempo depois, encara outra perda, a de sua mãe. Em 1943 a gravidez bem-sucedida dá ao casal uma filha, Olga. Com o marido desempregado, Clementina enfrenta o cotidiano árduo como empregada doméstica. Porém, os anos seguintes seriam transformadores.
A descoberta
Se dizem que tudo tem sua hora, a de Clementina na música pulsou no ano de 1964, quando o poeta e produtor Hermínio Bello de Carvalho a ouviu cantar no Zicartola (bar do casal dona Zica e Cartola). A conversa entre os dois aconteceu no mesmo ano, mas em outra celebração, a Festa da Nossa Senhora da Glória. O produtor convidou Clementina e seu marido, Albino, para seu apartamento e lá mesmo compilou amadoramente algumas canções. Sobre a ocasião, Bello de Carvalho costuma dizer: “Sempre que vou dar uma entrevista, uma pergunta é fatal: ‘Como você descobriu Clementina?’. Eu não descobri, apenas coloquei um olhar mais atento ao que fazia aquela senhora portentosa, aquele gênio musical. Nunca descobri nada na vida, só achei”.
Para os autores da biografia da cantora, não é exagero dizer que aquela sessão musical no apartamento de Hermínio no Catete simplesmente marcou o pontapé inicial da carreira da cantadeira da Glória.
A estreia da voz rouca e marcante de Clementina aconteceu durante a reabertura do bar Zicartola. A cantora se destacou na roda de samba. A artista se mostrava, então, de forma oficial.
Discos, sucesso e reconhecimento?
Após esses episódios, a carreira decola. Clementina não trabalhava mais como empregada doméstica e se apresentou com produção de Bello de Carvalho em 7 de dezembro de 1964 no show O Menestrel, em conjunto com outros músicos. Em 1965 outro sucesso, o espetáculo Rosa de Ouro no Teatro Jovem, no bairro de Botafogo. No palco com Clementina estavam Aracy de Almeida e Paulinho da Viola.
Os ouvidos estrangeiros também queriam Clementina. Em 1966 fez shows no Senegal e se apresentou durante o Festival de Cannes, tradicional evento de cinema.
O primeiro LP foi lançado no mês de agosto e contou com a produção de Bello de Carvalho. Na esteira somaram-se 11 LPs, além de participações em outros álbuns.
A dona da voz não se afastou dos palcos. Aos 78 anos de idade tinha agenda cheia e também se envolvia em questões que considerava importantes. Em 1979, manifestou-se por carta ao ministro da Previdência Social da época, Jair Soares, na qual tratava da necessidade de uma aposentadoria digna pelos serviços prestados à música brasileira.
Clementina morreu aos 86 anos e foi velada no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro.
Para uma das autoras da biografia, Janaína Marquesini, as entrevistas mais marcantes durante a pesquisa do livro foram com Naná Vasconcelos, “que me emocionou muito ao dizer que Clementina é a prova de que a África é a espinha dorsal da nossa cultura. Estar frente a frente com Milton Nascimento e ver a admiração que ele tinha por ela também foi de arrepiar”, descreve.
Os autores reforçam que a aclamação da crítica e o reconhecimento internacional, infelizmente, não se mostraram suficientes para proporcionar uma vida mais tranquila e confortável a Quelé, já que as oportunidades são diferentes para quem nasce e cresce na periferia brasileira, herança de um país escravocrata. E, para Quelé, não foi diferente. Segundo eles, “são poucas as joias que têm a sorte de serem lapidadas por corações grandiosos como o do Hermínio Bello de Carvalho”.
Sem ligar para o tempo
Além de Clementina de Jesus, outros artistas brasileiros chegaram ao grande público tardiamente
Com trajetória musical oficializada aos 64 anos de idade, Clementina de Jesus não está sozinha nesse grupo. Outros sambistas também vieram à luz em situações parecidas. O jornalista Felipe Castro ressalta a amizade de Cartola com Clementina de Jesus e sugere: “Eu acrescentaria Lia de Itamaracá, que se não foi descoberta tarde como os demais é o nome que guarda mais semelhança com Quelé nos dias atuais, no que diz respeito ao resgate do folclore e da cultura oral”.
Cartola (1908-1980): gravou o primeiro LP homônimo aos 65 anos, em 1974. Um dos fundadores da escola de samba da Mangueira, é personagem ilustre do samba brasileiro, compositor de Divina Dama, O Mundo é um Moinho e As Rosas Não Falam.
Lia de Itamaracá: pernambucana nascida em 1944, lançou oficialmente seu primeiro disco nos anos 2000 (Eu sou Lia), álbum distribuído comercialmente na França. Já foi elogiada pelo jornal The New York Times e chegou a excursionar com suas cirandas e maracatus.
Dona Inah: sambista nascida em 1935, em Araras, interior de São Paulo, tem conexão com a música desde menina, mas lançou o primeiro disco, Divino Samba Meu, em 2004, aos 69 anos de idade. Veterana do samba, também é reconhecida internacionalmente.
Processo de escrita
Centro de Pesquisa e Formação aproxima autores e leitores em lançamentos de livros e bate-papos
Como parte da programação do Centro de Pesquisa e Formação, o projeto Autografias aproxima leitores e autores com o lançamento de livros e bate-papos sobre o processo de escrita e a importância do personagem retratado. Um dos encontros ocorridos durante o mês de março teve como destaque a trajetória de Clementina de Jesus, com o lançamento do livro Quelé, a Voz da Cor: Biografia de Clementina de Jesus (Civilização Brasileira, 2017), dos jornalistas Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz.
Autografias continua no mês de abril com assuntos variados. No dia 7, com o lançamento do livro Povoações Abandonadas no Brasil (Eduel), do arquiteto e urbanista Nestor Razente; no dia 11, lançamento de As Bambas do Samba – Mulher e Poder na Roda (Edufba), organizado por Marilda Santanna, professora do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia; também no dia 11 será a vez de uma conversa sobre coletivos fotográficos contemporâneos, com Eduardo Queiroga, fotógrafo e doutor em comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco; e no dia 26 o bate-papo será motivado pelo lançamento do livro O Pensamento Africano no Século 20 (Editora Expressão Popular), organizado por José Rivair Macedo, doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. As atividades são gratuitas. Confira mais informações no Portal Sesc em São Paulo.