Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Na época da chácara

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Na época da chácara

por Gustavo Faria


Em 29 de agosto de 1950, chegou ao Brasil, pelo Porto de Santos, o senhor João José Herdeiro, que a partir daí seria apenas “Seu João”. Veio para o Brasil depois de servir na 2ª Grande Guerra, defendendo as colônias portuguesas na África. Aqui, encontrou a mãe e as irmãs, que havia um ano tinham fugido das mazelas da guerra e da ditadura Salazarista instaurada em Portugal.

Uma vez instalado, trabalhou por algum tempo no Gasômetro e no Mercado da Cantareira, até comprar de um freguês uma benfeitoria numa chácara da família Sampaio Moreira, na região que se tornaria o bairro do Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo. Trabalhando na terra, se casou por carta com a senhora Maria das Neves Amaro, a “Dona Maria”, ainda em Portugal, que só em 1954 viria também ao Brasil.

Família reunida na chácara, produziam cebola, catalônia, erva-doce, beterraba, cenoura, alface, escarola. Tinham coelhos, galinhas, uma mula de tração que puxava a carroça até o mercado da Cantareira, onde chegavam às duas da manhã para vender suas verduras fresquinhas.

Essa história poderia representar a família de muitos que agora a leem. E talvez, de fato, muitos se reconheçam, ou a seus pais, seus avós. Ela, no entanto, é um relato da época em que a vida na cidade era exceção. Um tempo não tão distante, quando a maior parte da população paulistana vivia em áreas rurais e apenas ia “à cidade” por pura necessidade. Na história do Seu João, vemos uma Zona Leste muito diferente da atual, onde, em suas próprias palavras, “tudo era mato e chácaras”. Um grande contraste com o cenário atual, de uma das áreas mais urbanizadas de São Paulo, onde “mato” por vezes é sinônimo de descuido ou ociosidade, em oposição à “mata” que procuramos quando saímos em busca das áreas verdes urbanas.

A lembrança da época ainda é clara para Seu João. “A vida era dura, filho. Pra tudo era preciso paciência.” Maior diferença em relação à atual sociedade da informação, onde tudo é pra ontem, impossível. Fica evidente ainda a desconstrução da ilusão idílica e bucólica da vida no campo, onde a terra, generosa, tudo oferece. E ainda hoje, numa Zona Leste de concreto, carros, multidões e desigualdades, é possível encontrar quem tire seu sustento da terra. A Associação de Produtores Orgânicos da Zona Leste, por exemplo, reúne alguns desses heróis, que conseguem produzir alimentos saudáveis em meio ao caos urbano.

E é justamente nessas frestas, entre blocos de cimento, que encontramos as tais áreas verdes urbanas. Claro, ainda temos os parques e praças, os jardins e canteiros. Mas que tipo de relação se estabelece com esses espaços? Muitas vezes, servem apenas como caminhos ou passagens, os não lugares. A busca pelo contato com a natureza vai além do estar próximo. Depende muito do vínculo, da relação afetiva, da história construída, como muitos Joões e Marias, como que saídos de um conto de fadas, ainda conseguem fazer, nem que seja plantando verduras embaixo de uma linha de transmissão de energia.

Hoje, Seu João, com seus 94 anos, não sente falta daquela época. Em 1972, a prefeitura desapropriou o espaço das chácaras para demarcação do Parque Municipal do Tatuapé. Desde então, Seu João nunca mais entrou na chácara transformada em parque. Sua relação com as áreas verdes se construiu quando “mato” e “mata” não se diferenciavam e hoje percebemos a importância dessas áreas na promoção da qualidade de vida. Mas só sentimos falta daquilo que não temos, não é?

Seu João não entende muito bem o trabalho de seu neto, este que vos escreve, que foi estudar Biologia e hoje tenta incentivar o contato com tudo aquilo que ele tanto se esforçou para deixar para trás. O trabalho na terra, o mato. Mas, mesmo sem entender, ainda mostra um brilho nos olhos embaçados quando se lembra da época da chácara...
 

Gustavo Faria, bacharel em Ciências Biológicas e estudante de Gestão Ambiental, é agente de Educação Ambiental no Sesc Itaquera.