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Assédio Online
Assédio Online
O assédio online se manifesta de vários modos: intimidações, ameaças, xingamentos, divulgação de imagens íntimas, envio de fotos ou vídeos pornográficos não solicitados, comentários de cunho sexual, manifestações de racismo, homofobia, entre outras ocorrências. Por trás disso tudo, está uma crença no anonimato e na impunidade nos ambientes online, ainda considerados por muitos uma “terra sem lei”. O que é possível fazer para combater o problema? Como a legislação brasileira lida com essa questão? Discutem o tema a psicóloga Maria Tereza Maldonado e as pesquisadoras do InternetLab Mariana Giorgetti Valente e Natália Neris.
O que podemos fazer?
por Maria Tereza Maldonado
“Foi um horror ler as mensagens que minha filha adolescente trocava com as amigas para perseguir uma colega. Jamais pensei que essas meninas fossem capazes de ser tão cruéis.”
“Assim que terminei o namoro, ele divulgou minhas fotos íntimas em todas as redes sociais, que foram imediatamente compartilhadas por centenas de pessoas. O que mais me desespera é saber que isso ficará na internet para sempre.”
“Fiquei chocada quando descobri o colega de trabalho que estava me insultando e tentando destruir minha reputação com meu chefe. Uma pessoa gentil que, oculta por um pseudônimo, mostrou-se de outro jeito.”
“Minha vida virou um inferno quando comecei a ser bombardeada por mensagens com ameaças. A pessoa sabia sobre a rotina do meu dia a dia. Imprimi tudo e procurei uma delegacia especializada em crimes cibernéticos.”
Exemplos como esses acima mostram casos aos quais devemos estar atentos. A vida online propicia oportunidades fantásticas de acesso ilimitado à informação, além da possibilidade de produzir conteúdo, participar de grupos e de fóruns de discussão, expressar opiniões e trocar ideias com milhares de pessoas. No entanto, há também um lado sombrio nesse mundo digital: é grande o número de pessoas que sofrem agressões e assédio online nas redes sociais, pelos aplicativos de mensagens instantâneas, nos jogos interativos, pelo e-mail ou por comentários em seus blogs. O rápido e amplo acesso propiciado pela internet móvel significa que os atos hostis, persistentes e inconvenientes que caracterizam o assédio online podem ser praticados a qualquer hora e alcançar a pessoa em qualquer lugar.
Muitas pessoas que praticam esses atos distorcem o conceito de liberdade de expressão. Manifestam o que pensam e sentem de modo desrespeitoso e hostil, às vezes incorrendo em crimes de calúnia, injúria e difamação ou incitação à violência. As redes de ódio se nutrem quando pessoas discordam de opiniões ou posições de modo violento ou até mesmo ameaçador.
O assédio online se manifesta de vários modos: por comentários frequentes de cunho sexual, pelo envio de fotos e/ou vídeos pornográficos não solicitados, por intimidações ou ameaças de ataques físicos, por xingamentos e atos que visam deixar a pessoa atacada constrangida ou envergonhada.
Às vezes, o agressor evita ser reconhecido utilizando um perfil falso ou pseudônimo. Eventualmente, declara-se desde o início. Comumente são ex-parceiros ou ex-parceiras que se ressentiram com o término do relacionamento amoroso. A dor e a tristeza decorrentes da rejeição transformam-se em revolta, mágoa, ódio, rancor e desejo de vingança. Nesses casos, é comum o compartilhamento de fotos íntimas ou vídeos de atos sexuais (“pornografia de vingança”) com o intuito de humilhar e causar um profundo embaraço para a pessoa que rompeu a relação. Ocasionalmente, o assédio “sai das telas”: o agressor, obcecado por seu alvo, impõe sua presença perseguindo, vigiando.
Há os que se dedicam a atacar políticos, celebridades, profissionais bem-sucedidos que divulgam seu trabalho pelas redes sociais ou pessoas que despertam inveja. Mesmo quando os agressores não conhecem pessoalmente seus alvos, sentem prazer em tentar destruir reputações, atormentar ou causar incômodo de alguma forma.
Quase todos os ataques reproduzem a discriminação e os preconceitos vigentes na sociedade, como comentários racistas, machistas e homofóbicos, cujo intuito é desqualificar as vítimas. A crença no anonimato e na impunidade encoraja a crueldade online: muitos dos que fazem ataques violentos pelos meios eletrônicos não teriam coragem de fazer o mesmo em contatos pessoais.
Algumas pessoas que sofreram assédio online se sentem profundamente perturbadas, angustiadas com as ameaças, incomodadas com a invasão de sua privacidade e com o desrespeito às suas fronteiras de segurança física e emocional. Sentem raiva e desespero diante dos ataques à sua reputação. Muitas se sentem impotentes para lidar com as agressões, temem procurar ajuda ou fazer uma denúncia aos órgãos competentes por medo de que o agressor se torne ainda mais violento. É o que acontece com muitos adolescentes que sofrem ataques de cyberbullying. Essa faixa etária é particularmente vulnerável, por permanecerem online a maior parte do tempo e por estarem em época de grandes mudanças físicas e emocionais, que resultam em oscilações da autoestima.
Mas o que fazemos com o que fazem conosco? Há vários modos de reagir ao assédio online. Há os que acham mais recomendável não responder nem aos insultos nem às ameaças, por reconhecerem que o agressor é uma pessoa insegura que precisa desse tipo de atenção e desiste quando é ignorado. Responder ao agressor com mensagens de ódio e xingamentos potencializa o problema. Mas há situações mais graves que precisam da ajuda de um advogado especializado em crimes cibernéticos que possa recorrer a medidas judiciais para interromper as ações do agressor.
Para viver e conviver bem nesse mundo digital é preciso, desde os primeiros anos de vida, reforçar a educação em valores para privilegiar o respeito pelos outros. É a melhor prevenção para reduzir os episódios de bullying, cyberbullying e as múltiplas manifestações do assédio. Acompanhar a vida online de crianças e adolescentes exige perspicácia e habilidade para ajudá-los a usar com responsabilidade as redes sociais e a desenvolver recursos de autoproteção.
Muitos adultos não estão profundamente familiarizados com o mundo digital e, por isso, também correm riscos de se tornarem alvos de cyberbullying e outras formas de assédio quando expõem detalhes de suas vidas pessoais ou opiniões polêmicas abertas ao público em geral. Muitos não possuem conhecimentos suficientes sobre a legislação a respeito dos crimes cibernéticos e acham que podem fazer e escrever tudo o que querem. A conclusão é que, no século 21, a rápida expansão da tecnologia nos traz múltiplos desafios e, para enfrentá-los, precisamos ser eternos aprendizes.
Maria Tereza Maldonado é psicóloga e autora de vários livros, entre os quais Bullying e Cyberbullying – O Que Fazemos com o Que Fazem Conosco? (Ed. Moderna, 2011).
Terra com lei
por Mariana Giorgetti Valente e Natália Neris
21 de maio de 2016. Um caso de violência sexual envolvendo uma adolescente de 16 anos invade as redes sociais. Após ser postado no Twitter, o vídeo do crime enseja mais de 3 mil denúncias para a ONG Safernet (organização que reúne cientistas da computação, professores, pesquisadores e bacharéis em direito com a missão de defender e promover os direitos humanos na internet) e pelo menos 800 para a ouvidoria da Polícia Federal. Foi somente após a repercussão nas redes sociais, cinco dias após o ocorrido, que a vítima prestou depoimentos e passou por serviços de perícia e de saúde. As interpretações e posicionamentos na internet sobre o fato, no entanto, não se encerrariam tão rapidamente: o caso ganhou versões que definitivamente fugiam do controle da adolescente. Os fatos envolvendo a agressão são chocantes da perspectiva da violação de direitos sob diferentes aspectos. Em meio à importante mobilização que o caso gerou, um desses aspectos ficou na penumbra: o compartilhamento em si do vídeo pelas redes sociais, e então a complexa interação entre gênero e internet. Chega a ser curiosa a audácia de um dos agressores em postar provas, contra si e seus parceiros, de um crime chocante, numa rede social em que conteúdos são facilmente viralizados. Essa audácia aponta facilmente para concepções sobre gênero – os agressores acreditaram que seu comportamento de violência contra uma mulher seria aprovado? E sobre internet – eles julgaram que não seriam identificados, perseguidos, punidos?
Quando olhamos para casos de violência na internet, chama a atenção a altíssima incidência da violação da intimidade de adolescentes mulheres. Os dados da Safernet sobre motivos pelos quais as pessoas buscam ajuda da ONG apontam a questão das imagens íntimas como o problema número um; dentre as pessoas afetadas, adolescentes mulheres dominam. Nesse grupo, o problema acaba agravado pela dificuldade que adolescentes têm de buscar ajuda. Isso ocorre seja porque têm acesso limitado, ou dependente de adultos, a instituições de apoio ou do sistema de Justiça, seja porque, após as situações de exposição, são submetidas a julgamento moral, enquanto os agressores passam ilesos.
Esse recorte radicalmente marcado pelo gênero das violações de intimidade na internet (chamadas também de disseminação não consensual de imagens íntimas – NCII, e conhecidas como revengeporn) aparece com transparência cristalina na pesquisa que realizamos, no InternetLab, nas decisões judiciais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Dentre as 90 decisões sobre o assunto que coletamos até o meio de 2015, em 83 decisões o caso referia-se à disseminação de imagens íntimas de uma mulher. Além disso, metade de todos os casos na esfera penal envolviam adolescentes (mulheres). É uma proporção relevante, mas que ainda nos parece que não representa a grandeza real. Estudamos um caso que ajuda a entender por quê.
Em maio de 2015, a mídia brasileira começou a reportar um fenômeno chamado de Top 10, que estaria acontecendo entre adolescentes de 12 a 15 anos de idade, e que teria levado ao suicídio de pelo menos duas garotas no extremo sul da cidade de São Paulo. O Top 10 é um rankeamento que classifica meninas de um bairro ou de uma escola em categorias que apresentam detalhes sobre sua suposta conduta sexual. Quando o “mundo dos adultos” ficou sabendo dos casos por conta dos suicídios, o Top 10 já estava acontecendo fazia pelo menos três anos.
Ainda que frases tiradas dos vídeos do Top 10 fossem também pintadas nos muros das redondezas, as meninas não procuravam ajuda. O motivo era tentar evitar que os pais soubessem da situação, o que elas sentiam como algo ainda pior, em contextos conservadores no que se refere ao exercício da sexualidade. Ou, ainda, a resistência em levar a história a uma instituição policial. Professores e agentes comunitários de saúde também não eram uma porta de entrada para acolhimento: questionados sobre os casos, respondiam com julgamento moral em relação às vítimas.
É evidente: a subnotificação é mais grave, quando estamos falando de adolescentes. Mas há casos de disseminação de imagens íntimas que chegam à Justiça. Olhando para as decisões, vemos que os problemas aí são outros.
Quando uma imagem íntima de uma pessoa é compartilhada, o caso pode ser processado, pela legislação vigente, como injúria ou difamação – crimes de “ação penal privada”, ou seja, a vítima tem o ônus de constituir um advogado e tocar o processo, em seis meses a partir de quando fica sabendo quem foi o agressor. Se a imagem for de uma pessoa menor de 18 anos, outra legislação se aplica: o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90 – ECA).
Essa legislação, considerada em geral mais protetiva, por levar em consideração as condições peculiares de desenvolvimento dessa faixa etária, determina que seja crime não só a produção e disseminação de imagens pornográficas envolvendo crianças e adolescentes, mas também a mera posse delas (art. 241-B) – e a ação penal é pública, ou seja, quem processa o agressor é o Ministério Público. Na sua aplicação, no entanto, verificamos um grave paradoxo: a existência de tipos penais mais rígidos acaba por fazer com que eles não sejam aplicados. Metade dos casos envolvendo adolescentes que analisamos resultaram em absolvição dos agressores – enquanto essa proporção é baixíssima nos casos contra adultos. Os motivos são essencialmente dois: em primeiro lugar, imagens pornográficas, de acordo com o ECA, envolvem necessariamente a exibição de genitais, o que nem sempre acontece (sem que o dano seja menor para a vítima) – nesses casos, então, o agressor é considerado inocente. Em segundo lugar, nos casos em que existem motivos para crer que o agressor não sabia que a vítima era menor de idade, também, os magistrados afirmam que o ECA não se aplica, por falta de dolo (intenção de praticar aquele crime) – e daí a absolvição mais uma vez. Parece, para nós, que esse crime de pornografia infantil do ECA levanta um imaginário, o do pedófilo, que os juízes acabam achando que não se encaixa nesses casos de revengeporn; fato é que o consentimento ou não da vítima na disseminação daquelas imagens acaba não tendo papel nenhum. Quando os magistrados absolvem o réu por pornografia infantil, já passou o prazo para a vítima propor a ação penal por injúria ou difamação.
O que fica bastante claro, ainda assim, é que a ideia de que a internet é uma terra sem lei, ou que não se consegue investigar um crime que ocorre na internet, é bastante equivocada. Dentre os nossos casos, aliás, apenas quatro se referiam à impossibilidade de se provar o crime. Embora se discuta bastante se as ferramentas jurídicas existentes são as mais adequadas para lidar com os casos, os agentes do sistema de Justiça estão trabalhando com o que têm. Os problemas que se mostram, e que passam a impressão de impunidade que está tão arraigada no tema de agressões na internet – e aí podemos incluir outros crimes como racismo, assédio etc. –, estão ligados a dinâmicas jurídicas que devem, sim, ser repensadas, mas que só ficam claras na análise de sua aplicação e das exclusões, desigualdades e precariedades que caracterizam o acesso à Justiça no Brasil.
Mariana Giorgetti Valente e Natália Neris são pesquisadoras do InternetLab, Centro de pesquisa independente em direito e tecnologia.