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Braulio Tavares

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

por Braulio Tavares

SONETO COM DEIXA DE MÁRIO QUINTANA

“Com a displicência de um fantasma inglês”
que percorre um museu adormecido,
eu passeio, sem pressa e sem ruído,
nos corredores do Era Uma Vez.

Cavaleiros de escudo e elmo partido,
ninfas, corvos, portais, restos de reis,
planetas, explosões, sacis, ETs...
e eu a anotar O Que Teria Sido.

Da vasta cornucópia do improvável
vejo sempre a brotar a interminável
cachoeira febril do Sempre Mais.

A mente é pouca, o mundo é tantos. Tantos.
E eu prefiro seus medos, seus espantos,
ao pântano sem luz do Tanto Faz.
 

UM TRABALHADOR

Em tua carne
o tempo passa mais depressa
rumo ao chão,
mas teus olhos percebem
um reino de formas
onde não existe o não.
A noite não te repousa?
O dia não te aquece?
O mundo é de quem ousa.
Trabalha! – E esquece.

Uma vida feita
de pedaços se buscando.
O corpo se desfazendo
o escopro escavando.
A madeira desabrocha para dentro
num ser que não existia.
Quando passas, Vila Rica vira o rosto?
Trabalha, e confia.


NOVENTA E NOVE

Noventa por cento da literatura é lixo.
Noventa por cento de toda criatura é bicho.
Noventa por cento desta cidade é pó.
A banda oculta da Lua também tem fases.
O quarto escuro da mente também faz frases.
A abelha-rainha, cercada de escravos, também está só.

Cada pessoa carrega um lado sem coração.
Todo filho único, se olhar com cuidado, encontra um irmão.
Até mesmo o fogo morre sufocado sem oxigênio.
Será que o planeta inda vai respirar daqui a cem anos?
Será que inda vamos ver o sol raiar fazendo planos?
Será que o nosso amor consegue emplacar outro milênio?


URUBUS ESVOAÇAM

Urubus esvoaçam. Na colina
uma névoa se esgarça, fria e fina.
A manhã brota quente e cristalina
e no céu se sucedem tons azuis.
Barracões de tijolo avermelhado
galgam morros e descem do outro lado,
e fervilham pessoas como gado
nas vielas banhadas dessa luz.

A Cidade, que é mãe e é assassina,
é janela e também é guilhotina;
ninguém sabe quem jaz sob o capuz.
Que destino cruel foi consumado?
Mundo e tempo de quem foi encerrado
bem ali? Esvoaçam urubus.
 

NOITE DE HALLOWEEN

Na floresta tenebrosa
surgem bruxas e sacis,
lobisomens, boitatás
de olhos rubros e febris.
Corre a mula-sem-cabeça
tirando fogo nas pedras
tendo ao dorso um curumim;
curupiras e anhangueras
invadem por todo lado
a noite de Halloween.

Rastros do Pé-de-Garrafa
na orla da beira-mar
trouxeram pra terra firme
o barco de Iemanjá.
Turistas desprevenidos
um a um são seduzidos
pela Loura-do-Bom-Fim;
negrinhos do pastoreio
aos milhões, brotam no meio
da noite de Halloween.

A Mulher do Chapéu Grande
toma conta do sertão
e Comadre Fulozinha
troca fumo em proteção.
Numa esquina morta e muda
surge a Perna Cabeluda
pulando igual a saguim;
cucas, botos e iaras
brotam como explosões claras
na noite do Halloween.

A Nega dum Peito Só
de braço com o Papa Figo
se junta com Chupa Cabra
encarando o inimigo.
Guerra sobrenatural...
Armagedom no astral...
Ragnarok tupiniquim...
O derradeiro confronto
pra saber quem é mais monstro
na noite de Halloween!


O GARÇOM DO BAR DA VIDA

É hora de dar balanço
nos presentes, nos pesares,
dizer adeus aos luares,
ao mar revolto, o céu manso.
É hora de dar descanso
às asas da abelha tonta.
Nasce o dia, o sol desponta
na cidade adormecida
e o garçom do Bar da Vida
já chegou trazendo a conta.
 

Braulio Tavares é escritor, poeta, tradutor e compositor. É autor de, entre outros livros, A Espinha Dorsal da Memória (Caminho, 1989), vencedor do Prêmio Editorial Caminho de Ficção Científica de 1989, Sete Monstros Brasileiros (Casa da Palavra, 2014) e O Poder da Natureza (Editora 34, 2013).