Sesc SP

postado em 03/01/2024

A loucura através dos tempos

Bedlam (1975), de David Hockney
Bedlam (1975), de David Hockney

      


Livro Loucura na civilização: uma história cultural da insanidade, de Andrew Scull, retrata a loucura desde a Antiguidade até os dias de hoje

Por Christian Dunker*

 

Com ênfase na expressão social e nas interpretações culturais da insanidade, esta obra apresenta uma história da loucura desde a Antiguidade clássica até o século XXI e está estruturada ao sabor de uma grande narrativa, que pode ser lida como um romance ou como uma saga sobre a loucura através dos tempos.

Reconhecendo a historicidade própria das formas de nomeação e de caracterização de seu objeto de análise, o sociólogo britânico Andrew Scull vale-se da estratégia de recompor e manter os diferentes modos de reconhecimento da loucura, indicando como eles variam em acordo com o nosso processo civilizatório. Nesse sentido, a comparação entre a tradição judaico-cristã e helênica de compreensão da loucura, a ampliação do papel do Renascimento na reconfiguração da insanidade, assim como o contraste entre franceses e ingleses contra os alemães, no século XIX, são apenas alguns dos pontos altos deste grande livro.

 


Dormitório de um típico hospício, 1893 | Wellcome Library, Londres

 

Sem descontinuidades abruptas entre essas diferentes figurações históricas, o autor consegue desvendar certa persistência das ideias em torno da loucura como correlatas das formas políticas, éticas e morais de cada época. Sem apelar para o determinismo, ele reconstrói os usos e abusos em torno da loucura, por exemplo, nos regimes totalitários e, também, nas grandes pretensões da ciência médica e em seus óbvios e esquecidos exageros.

Além disso, ao recorrer às artes visuais e à literatura, Scull alcança no decorrer de seu texto resultados inesperados que funcionam não apenas como marcos ilustrativos e temporais, mas desnudam a atualidade do enfrentamento literário da loucura e sua pertinência como meio de reação cultural ao sofrimento humano. A riqueza da iconografia da obra, com várias imagens desconhecidas do público brasileiro, igualmente colabora para a fluidez da leitura, já que os conceitos, lugares e autores citados são rapidamente iluminados pelas imagens, que também proporcionam momentos de fruição, tornando mais dinâmica a travessia do leitor por cada um dos doze capítulos aqui presentes.

 


Bustos frenológicos que pertenceram a Jean-Martin Charcot, neurologista francês especializado no tratamento da histeria | CCI/ Private Collection

 

Como se trata de um autor que enfatiza o universo anglo-saxônico da loucura, em contraste com a nossa tradição de tendência francesa de estudos em psicopatologia e história do adoecimento psíquico, Andrew Scull e autores como German E. Berrios e os da escola fenomenológico-crítica de Oxford têm renovado completamente a discussão sobre saúde mental, compondo um regresso aos fundamentos sociais e discursivos da experiência de sofrimento, em detrimento da abordagem categorial e excessivamente clinicalista que tanto acessamos hoje.

Com referências ainda que ocasionais às concepções orientais e africanas de loucura e uma abordagem ponderada entre as tendências psicodinâmicas e a hegemonia neurocientífica, este revigorante Loucura na civilização: uma história cultural da insanidade chega para os leitores brasileiros com grande potencial para se tornar um texto de referência tanto histórico-cultural quanto médica e psicológica.

 

Trecho do livro

 

 

 

*Christian Dunker é psicanalista, autor premiado e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Este texto foi originalmente publicado na orelha do livro.

Produtos relacionados