Rolando Boldrin - Lambendo a Colher!
Rolando Boldrin chega para lançar mão daquelas lembranças gostosas feito doce de infância: Lambendo a Colher reúne 10 faixas que, segundo o compositor, intérprete e contador de causos de primeira, despertaram algo de mágico em sua vida. Confira esta e outras histórias na matéria!
Olhar para o passado como forma de tensionar o presente e não como maneira de organizá-lo. Esta ideia provém do conceito de tradição do filósofo Walter Benjamin. O caipira é uma figura interessante para esta tese. Quando miramos a cultura caipira com os olhos de Monteiro Lobato, ou da pintura de Almeida Júnior, "O Caipira Picando Fumo", talvez não consigamos dar conta das mazelas donde beberam as raízes da música e da comunhão com a natureza que encerra a figura do homem do campo.
O caipira, antes de ser preguiçoso por conta dos vermes e vítima de descaso estatal, como pensava Lobato, em Urupês, 1918 - consagrando a figura do Jeca como verbete da língua nacional -, é um nômade. Mestiço, fruto da união forçosa - para ficar no único eufemismo possível - do português explorador e do índio que nada tinha a ver com as bandeiras de João Ramalho, Raposo Tavares, Fernão Dias e Borba Gato, o caipira atravessou séculos trabalhando a terra, adquirindo conhecimento sobre seu mundo, passando a tradição adiante pelo som, pela voz - fosse nos causos, fosse na canção.
O mundo do século XX acelerou e se tornou urbano até os ossos - e depois do fonógrafo de Edison, em 1877, a música já podia ser transportada para além do instante presente. Foi nisso que apostou o folclorista e descendente de bandeirantes, Cornélio Pires. No ano de 1928, propôs a gravação de 5 mil (!) exemplares de 6 discos diferentes, a Albert Jackson Byington Junior, presidente da Byington & Cia., empresa que representava a gravadora Columbia no Brasil. Reza a lenda que Byington dificultou ao máximo a gravação dos discos, impondo prazos e preços impossíveis à época. Não contava com a osbtinação de Pires que, uma vez recebendo a encomenda, peregrinou até Bauru para vender os discos: a 54 km da chegada, em Jaú, já não havia mais um exemplar pra contar história. São Paulo continuava caipira. Das 12 faces dos discos, 9 eram anedotas e causos, 3 musicais - incluindo aí a primeira modinha gravada, Jorginho do Sertão.
O sucesso de vendas da música caipira continuou por décadas: entre 1930 e 1994, Tonico e Tinoco, dois caboclinhos vindos de São Manuel, venderam 150 milhões de discos - 30 milhões a mais que aquele que chamam de rei. Voltando aos discos de Cornélio Pires, dentre os vários intérpretes que dali pavimentaram carreira, um pseudônimo chamava atenção: Bico Doce. Era Raul Torres, natural de Botucatu - ali perto de Bauru, Jaú e encostado em São Manuel - cantor e compositor, famoso pela parceria com Florêncio, que resultou em sucessos da música brasileira como a Moda da Mula Preta - aquela que tem sete parmo de artura e que foi regravada em 1948, veja só, pelo (esse sim) rei do baião, Luiz Gonzaga: talvez o Brasil inteiro fosse caipira; com certeza, o Brasil inteiro é mestiço.
Também foi no de 1948 que a dupla Boy e Formiga ganhou atenção das imediações de São Joaquim da Barra, se apresentando nos palcos de cinemas das cidades próximas, antes das sessões. O Boy, de 12 anos, exigia que o filme fosse brasileiro, do contrário, não cantaria. O nome de batismo do Boy? Rolando Boldrin.
Famoso pelos programas em que defendeu uma certa noção da cultura brasileira - vamos tirar o Brasil da gaveta! - Boldrin continua na ativa, sendo um repositório vivo dos causos e da música do Brasil profundo. Prova maior da sua atividade, é a capacidade que tem de se reinventar a partir do passado, soando inédito sem abrir mão de uma estética cujo interesse primeiro é aproximar e comunicar - como fazia o homem do campo, sem saber nada desse trem de estética. Lambendo a Colher, lançado pelo Selo Sesc em 2016, traz o artista comemorando seus 80 anos de vida, apresentando canções que, segundo o próprio, "tiveram um efeito mágico" em sua trajetória. A importância das faixas escolhidas está descrita em epígrafes no encarte do disco, assinado por Elifas Andreato - você pode conhecê-las abaixo.
Não bastassem as epígrafes, a estrela do disco participa de um faixa-a-faixa que você confere no fim do post - bem como amostras de cada uma das canções. No entanto, destacamos uma, não só pelo violão de Luca Bulgarini, mas pela possibilidade desta canção encerrar novos significados. De Geraldo Vandré, Canção Primeira, segundo Boldrin, narra a vontade do cantador de voltar à vida e à amada-amante, depois de um longo exílio.
Para nós, tendo contato com a carreira desta figura, com a tradição na qual ele se inscreve - e por tudo apresentado neste texto - invocamos um novo enunciado a partir da escuta deste fonograma: o tom menor da harmonia apresenta uma nostalgia que se acelera no gesto de Bulgarini até a entrada da voz de Boldrin, dizendo que não há de "negar a canção primeira e que a viola antiga é companheira" na canção livre que nos canta. Se elegermos a própria música como musa desta canção, prestando atenção ao corpo que se forma a partir da voz de Boldrin, se apresenta o testemunho de uma vida dedicada à mais perene das artes, aquela que os males espanta e é impossível de apagar.
Ao final, um pedido: me perdoe amiga, que eu não vá correndo hoje te abraçar, nem cortar caminho nesta caminhada que é pra te encontrar; que eu guarde a esperança, que vem vindo o dia de eu poder voltar, sem ter na chegada que morrer, amada, ou de amor matar. A música de Boldrin não pede passagem, apenas espera que a encontremos e, próximos, nos deixemos levar pela plenitude da vida cantada - é bonito demais.
O Sesc Santos recebe Rolando Boldrin e sua música de Lambendo a Colher no dia 24 de fevereiro, sexta feira às 21h. Como todo violeiro que se preze, é certeza de muitos causos para deleite da plateia! Você pode adquirir seu ingresso, aqui!