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Kleber Mendonça Filho

DIRETOR FALA SOBRE CINEMA PERNAMBUCANO E A NOVA GERAÇÃO QUE SE DESTACA NA PRODUÇÃO REGIONAL

Diretor, roteirista e produtor, Kleber Mendonça Filho faz parte da nova geração do cinema pernambucano. Formado em jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco, atua como crítico de cinema e é também diretor artístico do Janela Internacional de Cinema do Recife, que vai para a sua oitava edição neste ano. Como cineasta, migrou do vídeo nos anos 1990, quando realizou trabalhos de ficção, documentário e videoclipes, para o cinema digital e o 35mm nos anos 2000. Neste formato, fez filmes como Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005), Recife Frio (2009) e O Som ao Redor (2013), premiado como melhor filme nos festivais de Roterdã, Gramado e Rio, entre outros. Nesta entrevista, Kleber analisa o crescimento e as mudanças no cinema pernambucano nas últimas décadas.

Como é fazer cinema em Recife, ou seja, fora do eixo Rio-São Paulo?
Hoje há mais facilidade de fazer cinema em Pernambuco do que em São Paulo, mas isso é uma mudança histórica recente. Durante muitas décadas a produção brasileira de cinema esteve 100% concentrada no Sudeste, por questões econômicas e de tecnologia. O cinema durante muito tempo tinha um peso muito forte na técnica, na questão de equipamentos. O próprio maquinário do cinema era muito específico e de difícil acesso, então durante todo aquele período tradicional histórico dos anos 1930 a 1980 as produções regionais eram inexistentes. Havia um espasmo de produção, como houve aqui nos anos 1920, e nos anos 1970 com o super 8 [movimento do cinema pernambucano]. Mas a produção industrial de cinema no formato tradicional praticamente não existia aqui, em Belo Horizonte, Fortaleza, Rio Grande do Sul.

O que fez crescer essa produção regional?
Aconteceu algo muito interessante, que é a troca de tecnologia, a chegada do digital. Isso começou a liberar as amarras de produções regionais. Pernambuco, aos poucos, passou a ser o cenário de produção que mais começou a se destacar dentro dessa liberação, a partir do momento em que não era mais preciso usar equipamentos que só existiam no Rio e em São Paulo. Cheguei a fazer um curta-metragem com todo o equipamento vindo do Rio e de São Paulo. Para você fazer um filme, tinha que importar tudo, e tudo se tornava muito pesado e difícil. Com o digital isso foi caindo por terra, e hoje a gente já fez a transição. Atualmente há muitas técnicas de fazer cinema sem aquele peso todo. Com o sucesso dessa produção, ela foi conquistando cada vez mais incentivo. Os incentivos do governo local são muito fortes, então hoje eu diria que as condições são mais favoráveis para produzir cinema em Pernambuco do que em qualquer outro estado.

“Hoje eu diria que as condições são mais favoráveis para produzir cinema em Pernambuco do que em qualquer outro estado”

Como eram as suas experiências antes dessa mudança para o cinema digital?
Em 2005, quando fiz o curta-metragem Eletrodoméstica, a câmera veio de São Paulo, o equipamento de som do Rio, a revelação do negativo foi para São Paulo e toda a parte de pós-produção foi feita lá também porque não tinha como fazer aqui. Dez anos depois, tudo pode ser feito aqui. Hoje você tem como escrever o filme e terminar a última cópia, de som e de imagem, com tudo pronto, tudo aqui, sem ter que ir para São Paulo, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Los Angeles ou Londres. Tudo pode ser feito aqui. É a primeira vez na história em que isso é possível.

Para você, o que caracteriza o cinema pernambucano contemporâneo?
O que nos une inicialmente é a diferença entre os filmes. São todos filmes muito diferentes. Cada um está atirando de um lado, uns para baixo, outros para cima. Em geral, são filmes bem diversos, formalmente e esteticamente. Seria muito chato se todo filme pernambucano fosse o mesmo. Não há, nem no passado, nem atualmente, nem em projetos que eu conheço e que vão acontecer, nenhuma pretensão de fazer filmes de mercado. Isso é muito interessante. No Rio de Janeiro, por exemplo, há um racha entre a produção autoral e os que acham que o cinema tem que dar dinheiro. Esse racha não está nem perto de acontecer em Pernambuco, não há nenhum indício de que isso um dia irá acontecer. Os filmes pernambucanos não possuem um projeto de cinema comercial, mas dentro do que eles se propõem são filmes muito bem-sucedidos, que geram um debate, viajam muito bem, passam em festivais no mundo inteiro.

Você reconhece algum fato que tenha feito essa geração caminhar para o cinema?
A única coisa que consigo pensar é que Pernambuco tem uma base de cultura muito forte. Percebo isso porque viajo muito para fora do Brasil e noto que há alguma coisa particular, mas é muito difícil discutir isso porque não é matemático. Você percebe isso no ar, na maneira como as pessoas falam e encaram algumas questões. Isso sai muito facilmente na arte que é feita aqui. Não consigo localizar um ponto de partida, enxergar alguém, algum incidente que una esses autores, e acho que dá para juntar uns 15 na área do cinema hoje. Ninguém tem uma resposta para isso. Pernambuco tem uma boa base de cultura, a história da Faculdade de Direito, o movimento manguebeat, Gilberto Freire, a cultura do maracatu, do cordel, e agora o cinema pernambucano. Se você juntar tudo isso, pode dizer que o estado tem uma boa base de cultura, mas não é possível explicar muito bem por que há essa eclosão de hoje do cinema. Explicar isso é muito difícil, porque é tentar explicar o mundo e não dá para explicar o mundo.

Você diria que são filmes que não têm preocupação em agradar?
Os filmes são muito autorais, completamente soltos no sentido de não ter preocupação de agradar, mas que agradam, sem se esforçar para isso. Isso faz com que a produção tenha uma personalidade forte. Não são filmes particularmente difíceis. Em relação ao cinema autoral brasileiro, o pernambucano é o que tem maior aceitação popular. São filmes muito pessoais e estranhos. Mas ser estranho é uma coisa boa. O Som ao Redor, por exemplo, tem algo de estranho que está no ar. Talvez a estranheza venha de filmes em um Brasil coberto por filmes da Rede Globo durante décadas, em que todo mundo foi treinado a ouvir um determinado sotaque e a ver um determinado tipo de narrativa. Qualquer coisa que não se encaixe nesse padrão será automaticamente rotulada de estranha. Acho que é muito importante a gente ouvir sotaques do interior mineiro ou pernambucano, porque isso tudo é a sopa que é o Brasil. E acho que muitos dos filmes são considerados estranhos porque não se encaixam no padrão pré-moldado.

“É muito importante a gente ouvir sotaques do interior mineiro ou pernambucano, porque isso tudo é a sopa que é o Brasil. E acho que muitos dos filmes são considerados estranhos porque não se encaixam no padrão pré-moldado”

A questão da violência, por exemplo, está presente em alguns cineastas. Essa seria outra característica que aproxima o cinema pernambucano da sua geração?
Acho que a violência é, em primeiro lugar, humana, e em segundo lugar muito presente no país. Não acho uma questão pernambucana. Se você pegar o Baixio das Bestas, por exemplo, e colocar junto de O Som ao Redor, é muito interessante, porque na verdade são quase discos lado A e B. Eles falam das mesmas coisas, mas de maneiras muito diferentes. São enfoques completamente diversos. É muito curioso como, às vezes, os filmes se encontram em um determinado momento e, às vezes, eles não têm nada a ver uns com os outros. Essa diversidade é muito valiosa. Houve um momento em que o cinema mineiro era muito de observação, muito tranquilo. O filme mineiro tinha uma marca, e o pernambucano tem como característica o sotaque e um desprendimento muito grande, uma despreocupação em seguir regras.

Como é a aceitação desse cinema pernambucano em Pernambuco?
Inicialmente, existia um interesse provinciano de valorizar. Hoje já existe uma relação de igual para igual da plateia com o filme, na qual as pessoas têm uma relação natural, como se fosse um filme de fora. Há uma intimidade tão grande com a ideia de existir uma produção local que as pessoas veem o filme e se permitem gostar, não gostar, achar mais ou menos. Há uma naturalidade maior com a ideia de existir uma produção pernambucana e acho isso fascinante, porque a gente já superou o fator “vamos dar uma forcinha para o cinema local”. Isso é bem interessante. Ninguém precisa gostar só porque é pernambucano.

Como você vê a questão do sertão nesse cinema?
O sertão sumiu do cinema de Pernambuco. Quando eu estava na universidade, rejeitava, como um jovem cinéfilo, a maior parte dos filmes que se passavam no sertão, falavam sobre a fome, maracatu, folguedos populares. Não conseguia encaixar aqueles realizadores naquele tema. Achava que eles estavam fazendo aquilo só por osmose ou porque havia um edital para filmes sobre cultura popular. Era uma produção estéril, completamente. Mas aí houve uma evolução, a meu ver, e a produção passou a ser muito urbana. Não só urbana, mas muito pessoal. O que aconteceu é que, com o movimento manguebeat, houve uma fusão muito curiosa entre cidade e cultura de base. De repente, passou-se a pensar de modo cosmopolita. Hoje, a produção mudou completamente. Em 2014, pela primeira vez em muitos anos, surgiu um filme importante, A História da Eternidade, de Camilo Cavalcante, que mostra um sertão mítico, quase literário. Esse tipo de filme ninguém estava fazendo mais. Quando fiz Enjaulado, em 1997, ele foi recebido com espanto muito grande, porque se passava em um apartamento em um bairro de segurança máxima e muito urbano em uma época que ninguém fazia esses filmes.

“Com o movimento manguebeat, houve uma fusão muito curiosa entre cidade e cultura de base. De repente, passou-se a pensar de modo cosmopolita. Hoje, a produção [cinematográfica] mudou completamente”

Essa coordenação de imagens do Nordeste, dessa imagem do sertão, pobreza, cultura popular, folguedos, isso é algo que aprisiona?
Quando lancei o Enjaulado, em 1997, o filme foi exibido no Ceará, em Fortaleza, e saiu uma crítica de um jornal local dizendo que, com uma cultura popular tão rica, Pernambuco fazia um tipo de filme que os paulistas fazem. É uma demonstração espetacular de preconceito, algo que nunca aconteceria hoje, porque a produção mudou completamente. Não sou contra filmes de sertão, mas desde que sejam feitos com sentimento, e não porque é o edital que está apoiando. Lembro de um amigo, 20 anos atrás, que queria fazer um filme sobre a paixão dele pela prima na adolescência, mas na verdade ia fazer um filme sobre um mestre de maracatu, porque era isso que ele achava que ia ganhar o edital. Isso acabou. Você pode até submeter um projeto sobre um mestre de maracatu, mas provavelmente o que vai ganhar é o filme sobre a prima.

Por que houve essa mudança de mentalidade?
A variedade mudou. Ficou mais democrático, existem filmes de todo tipo. Há dinheiro para incentivar muita gente, não fica só em cima de um ou dois. É um momento bem particular esse.

Como você vê, por exemplo, o fato de pessoas do sul adaptarem histórias do sertão?
O sertão é o cenário temático tradicional do cinema brasileiro, da mesma maneira que a favela. A favela hoje virou pastiche, virou piada. A grande questão é que, se você não tem experiência pessoal para falar sobre algo, você vai fazer um filme muito ruim, exótico. Eu não entendo a favela, nunca morei na favela. Respeito demais, acho que as comunidades são lindas, mas eu não tenho a vivência daquele universo, então correria o risco de fazer uma porcaria como tantas foram feitas. Isso é sério, porque uma obra de arte tem que ser verdadeira, honesta. Vejo gente querendo fazer filme em favela por achar legal, bacana, porque fotografa bem. É um pensamento ideológico de querer fazer um filme sobre pobreza e que seja representado no sertão e na favela. Acho que as novas gerações estão saindo dessa, elas agora estão se filmando, fazendo filmes pessoais. É o que sempre senti falta na ficção brasileira. Nunca entendi por que existia uma quantidade tão grande de filmes cujos diretores não entendiam nada do que eles estavam falando. Quando se vai retratar alguma realidade deve-se ter um mínimo de responsabilidade. Acho que o equilíbrio está começando a chegar mais no cinema brasileiro.

“Uma obra de arte tem que ser verdadeira, honesta. Vejo gente querendo fazer filme em favela por achar legal, bacana, porque fotografa bem”


Trailer do filme O Som ao Redor do diretor Kleber Mendonça Filho