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Luís Henrique Pellanda

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

por Luís Henrique Pellanda

AS NÚTRIAS

Eu ia sempre até aquela curva do riozinho, vigiar as tocas das nútrias ali, no barranco, uns 100 passos pra lá da velha pinguela. Quando descobri o lugar fiquei meio doido, obcecado mesmo, e me nomeei sentinela daquele silêncio. Eu me sentia dono daqueles bichos que nunca me apareciam, dono da profundeza de seus túneis, do escuro dentro deles. Coisas de guri, a investigação, a tocaia, a inconsequência. É que eu não tinha muita distração fora do mato, jamais gostei de escola ou futebol, falar a verdade nem de gente eu gostava. Gostava mesmo é daquele lugar, do barranco esburacado, a borda d’água subindo e descendo com as chuvas. E eu nem sabia bem o que faria se finalmente visse uma nútria, se ia atirar nela ou só ficar olhando. Só sei que durante dias, e dias inteiros, me meti naquele bambuzal fechado, correndo o risco de topar uma cuatiara, armado com a pistola de pressão e mascando um chumbinho atrás do outro, escondido e quieto, à espera de uma chance. De que, não pergunte. Eu saía de casa bem cedo, a respiração fumegante, aquele frio de matar os morcegos na ameixeira, congelados. Catava umas mimosas no caminho, uns pedaços de chouriço e queijo roubados na despensa da mãe e, com o farnel cheio e dois litros de água filtrada na térmica, me enfiava pelas trilhas. E aí eram horas, só voltava pouco antes de a noite chamar. Tudo pra ver, ou farejar, aqueles animais. Ou quem sabe fosse só pra espreitar algum negócio novo, curioso. Acho que eu precisava era criar e alimentar alguma expectativa na vida, aguardar qualquer coisa. Então inventei de rastrear as nútrias, será? Pode ser. E aquelas deviam ser bem grandes, gordas, as pegadas no barranco prometiam, eram fundas, umas unhadas bonitas no vermelho da lama.

Mas espere, melhor começar de outro jeito, assim está errado, me precipitei nas explicações. Basta contar uma história pra você entender que ela não era bem aquilo que você pensava. Narrar nos dá outras perspectivas, clareia os vãos no nosso entendimento. E, como não quero forjar aqui um suspense desnecessário, coisa que já fiz, adiantarei, me corrigindo: não, nunca consegui ver os animais, as nútrias nunca se mostraram pra mim, não enxerguei nada além daqueles seus rastros na lama. Nem é esse o interesse dessa história, se é que ela tem algum interesse pra lá da minha obsessão. Não sei, e olha: nem na época me importavam as nútrias reais, seus organismos concretos, apenas a sugestão das nútrias. Difícil de entender. E você vai me perguntar: então, o que é que eu espreitava, qual a minha motivação? Posso até arriscar uma resposta, não me julgue confuso, mas eu tinha mais é uma certeza incômoda de que elas, as nútrias, é que me viam, e o tempo todo, e nem sei de onde. Por mim podiam estar até em cima das árvores, eu não estranharia. Era uma impressão velada, de menino, nada mais que isso, mas me bastava. Na verdade, parece que eu estava lá me atocaiando justamente pra ser visto. Eu estava carecendo de alguma visibilidade, vamos pôr as coisas desse modo. Só não me pergunte o porquê, já disse que não tinha distrações na vida, principalmente fora da floresta. Que isso me sirva de razão.

Devo ter passado uns cinco dias naquela rotina burra, sem que nada acontecesse. De vez em quando um serelepe, um bugio, aparecia pra me espiar, sem maiores desdobramentos. Houve uma tarde em que vi uma serpente, mas não era perigosa, apenas uma cobra verde entre os bambus, a cabeça redonda, os olhos redondos. Um bicho bonito, mas bobo. Nas tocas, nada de movimento, e mesmo a água, durante esses dias todos, se movia devagar, o rio parecendo frear um pouco quando chegava na curva das nútrias. As pegadas, porém, ainda estavam lá, sempre renovadas. À noite, aquilo devia ser uma festa, se é que as nútrias festejam alguma coisa.

No sexto dia foi que eu a vi. Ela vinha andando pelo leito do rio, a água marrom na altura das coxas. Não era especialmente bela, mas estava nua e eu era um menino, nunca tinha visto uma mulher adulta sem roupa antes. Se você me perguntar como ela era, terei uma estranha dificuldade de responder. Até hoje não sei explicar como é que eu sabia que ela era uma mulher. Porque ela era diferente de todas as outras. Você vai dizer que era porque ela estava nua, e aquilo era uma novidade pra mim. Pode ser. Mas não sei dizer se ela era branca, negra, índia. Se você me perguntar, vou dizer que não sei, ela era outra coisa. Tinha cabelos lisos e escuros, sim, mas porque estavam molhados. Não consigo descrever a sua pele, os olhos, nada. Sei que tinha pernas e braços, seios e cabeça. Mas era tudo meio bagunçado, vinha numa configuração distinta, só dava pra saber, intuindo, que era uma mulher.

Ela se aproximou das tocas sem muito cuidado, como se nem soubesse das nútrias ali, ou então como se quisesse se anunciar a elas, vejam, cheguei, estou aqui, no seu quintal, no seu território. Sim, logo vi que ela sabia onde estava, pois se aproximou das tocas no barranco, apoiou as mãos na boca dos buracos e olhou dentro deles, os dedos agarrados às bordas de lama. Não sei dizer se disse alguma coisa, não ouvi, mas acredito que sussurrasse, os lábios se mexiam, e ela até parecia ouvir algo em resposta.

Depois, bastante relaxada, mergulhou na água turva, nadou como quem brinca em seu melhor ambiente. Não, não estava se banhando, estava entregue a algum brinquedo íntimo, mas natural, corriqueiro. Me demorei muito ali, quase tanto quanto ela, tive dificuldades pra perceber a passagem do dia, e por pouco não perco a hora de voltar, um perigo, o sol já sumido atrás da serra.

A partir daí, eu a reencontrei várias vezes, sempre envolvida na mesma atividade. Havia tardes em que ela aparecia, a maioria delas. Noutras não, e o rio ficava tão vazio de sentido que eu não entendia pra que é que um rio corria, ou pra onde, e com que forças.

Também não sei quanto tempo levei pra perceber a outra presença ali, com a gente. Não, não eram as nútrias, como eu imaginava que fossem, no começo. Nem uma cobra, um macaco, um esquilo. Quem nos observava, na verdade, era outro menino, da mesma idade que eu, escondido no bambuzal na outra margem do rio. Nunca me disse nada, nem eu disse a ele. Dividíamos aquele segredo, mudos. Se quiséssemos poderíamos ter falado um com o outro, o rio era estreito, não precisaríamos nem gritar. Mas não. Apenas observávamos aquela mulher sem formas fixas, e também nos observávamos mutuamente, ele me parecendo um tanto zangado, mas igualmente preso a um encanto desconhecido.

Isso durou bastante. Não sei dizer se foram meses, ou anos. Não deve ter sido, faz décadas, minha memória está ruim, mas o caso não deve ter passado daquele inverno, pois não me lembro de ter encontrado a mulher nua num momento de calor. Estava sempre meio gelado, e aquilo me espantava ainda mais. É certo que ela surgia no horário mais quente do dia, mas, mesmo assim, eu não me arriscaria a tirar a roupa. Do outro menino, não digo o mesmo. Minha vida de espião acabou quando ele resolveu se revelar à moça na água. Saiu detrás do bambuzal e se despiu lentamente, olhando tanto pra mim quanto pra ela. Ela não demonstrou susto, apenas esperou por ele. O menino guardou as roupas na bolsa, pendurou a bolsa numa árvore e desceu com perícia o barranco, embora tenha feito desmoronar as entradas das tocas, sua nudez também bonita, feito a da mulher, mas, ao contrário da dela, extremamente familiar pra mim. Quando ele pisou no rio, mergulhou atrás da moça e sumiu com ela. Nunca mais os vi. Quando voltei ao meu posto, no dia seguinte, as tocas estavam totalmente fechadas, todo aquele mundinho tinha desbarrancado. E devo ter resvalado numa aroeira, num pau-de-bugre, porque naquela mesma noite, caí de cama com febre, o rosto deformado pelo inchaço, numa intoxicação galopante.

Hoje, tudo por ali é loteamento. Fui visitar o local recentemente, em busca de um terreno pra comprar. No fundo, essa era a minha desculpa; minha intenção era reencontrar o riozinho, ver como ele tinha se virado em meio à planície de terra detonada que havia substituído a mata. Não o encontrei. Perguntei a um corretor que fim haviam dado ao rio, e ele me disse que não havia rio nenhum por ali, só terra, terra pra dividir e vender, terra onde fazer dormir o povo, dormir e, quem sabe, prosperar em sonhos, até o dia em que, assim como as nútrias e os lugares mágicos, todos nós desapareçamos de vez.


LUÍS HENRIQUE PELLANDA nasceu em Curitiba (PR), em 1973. Escritor e jornalista, é autor dos livros O Macaco Ornamental (Bertrand Brasil, 2009), Nós Passaremos em Branco (Arquipélago, 2011) e Asa de Sereia (Arquipélago, 2012). É cronista da Gazeta do Povo.