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José de Souza Martins

SOCIÓLOGO FALA SOBRE VIOLÊNCIA, INTOLERÂNCIA E MUDANÇAS NO CENÁRIO URBANO PAULISTANO NAS ÚLTIMAS DÉCADAS

A trajetória acadêmica do sociólogo José de Souza Martins começou em 1964 com a graduação em Sociologia na Universidade de São Paulo (USP). Na mesma instituição, José concluiu o mestrado e o doutorado, tornando-se professor titular do Departamento de Sociologia. Foi professor visitante em universidades estrangeiras e titular da Cátedra Simón Bolívar, na Universidade de Cambridge (Inglaterra). Autor de diversos livros, ganhou o Prêmio Jabuti de Ciências Humanas com Subúrbio (Unesp, 1992), em 1993, A Chegada do Estranho (Hucitec, 1993), em 1994, e A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008), em 2010. Lançou recentemente o livro Linchamentos: A Justiça Popular no Brasil (Contexto, 2015), sobre as raízes da prática de linchamentos no país. Nesta entrevista, o sociólogo fala sobre esse e outros temas relacionados à vida urbana paulistana, como novos imigrantes, intolerância e violência.

Apesar do costume de dizer que o brasileiro é cordato, vemos uma sociedade que é de uma violência comparável à de guerras civis. Para você, a sociedade brasileira é violenta?
Basta pegarmos o caso de linchamento, que é o extremo da violência. Nós temos um linchamento ou uma tentativa de linchamento por dia no Brasil. É o país que mais lincha no mundo, não há nenhum outro que nos vença. Além disso, nos últimos 60 anos, de 1 milhão a 1,5 milhão de brasileiros participou de linchamentos. E nem estou falando de bandidos, mas sim de pais de família, que de repente enlouquecem e estão participando de uma multidão assassina que trucida alguém que pode ser inocente. Cerca de 7,8% das vítimas de linchamento são inocentes. O caso mais emblemático é recente, daquela mãe de família do Guarujá que foi trucidada. Se você vir os filmes que fizeram com celular fica horrorizado, não acredita que somos capazes de fazer isso. Eu digo nós, porque não foram eles. Nós, nós somos capazes.

A que você credita o afloramento cada vez mais evidente dessa violência?
Há uma deterioração progressiva das normas de convivência no Brasil, o que na sociologia a gente chama de anomia, a ausência de normas. Não há mais valores de referência. O sujeito sai de casa sem saber o que vai acontecer com ele e o que ele vai fazer com os outros. Ele tem que se defender a cada minuto no metrô, no ônibus, na rua. É uma deturpação bestial de tudo o que é valor na sociedade. Há uma perda de referências na tradição que é grave, e de valores, mesmo nas relações entre pais e filhos. Há um ódio disseminado e não se está fazendo nada. Você liga a TV no fim do dia e tem lá alguém estimulando a reação violenta, desacreditando as instituições, dizendo que falta polícia. Não falta polícia. Você não pode ter um policial para cada cidadão para garantir que as coisas não aconteçam.

“Há uma deterioração progressiva das normas de convivência no Brasil, o que na sociologia a gente chama de anomia, a ausência de normas. Não há mais valores de referência. O sujeito sai de casa sem saber o que vai acontecer com ele e o que ele vai fazer com os outros”

No caso dos linchamentos, é uma manifestação extrema da intolerância ou uma espécie de vingança?
Casos como os dos linchamentos decorrem do fato de que culturalmente e por conta dessa nova cultura improvisada da insegurança, ao ver uma brutalidade, a reação é puramente emocional. As pessoas vão em cima, matam primeiro, para depois ver por que mataram. O linchamento se desenrola em um quadro mental de absoluta loucura, é uma loucura súbita. Quando a polícia consegue prender alguns participantes se vê que as pessoas não sabem o que estão fazendo, e não é que elas estejam fingindo. Elas saem fora de si. O [psicólogo e sociólogo francês] Gustave Le Bon identificava a multidão como um momento em que as pessoas colocam entre parênteses a personalidade cotidiana, e uma estrutura social de referência vem do fundo do inconsciente e passa a regular as coisas. Você descobre que o comportamento é o mesmo da fase da inquisição, culminando até com as pessoas queimadas vivas.

Hoje você vê figuras públicas das mais diversas, que são formadores de opinião, incentivando a intolerância, em vez de colaborar para mudar esse quadro. O que aconteceu?
Tenho algumas hipóteses. Uma é que as pessoas passaram a achar que têm mais direitos do que realmente têm. Quando termina o regime militar, há uma explosão de direitos, de pessoas cobrando os direitos. Acontece que o direito, no sentido do direito que se pratica na vida cotidiana, não é só seu. O seu direito tem o seu vizinho, e você não pode exercitar o seu direito contra o seu vizinho, nem ele contra você. A relação social, no dia a dia, é uma negociação permanente. Há uma absolutização dos direitos que é equivocada. Há um empoderamento do homem comum em nome de um direito equivocado. Claro que tenho de defender os meus direitos, mas nem tudo que dizem ser meu direito o é realmente.

Essas ondas conservadoras são resultado do quê?
Tenho a impressão de que a onda conservadora é sempre uma onda autodefensiva de alguém que acha que está vivendo um momento de ameaça àquilo que ela é em relação àquilo em que ela crê. Quem lincha, por exemplo, e a cidade de São Paulo ainda é a que mais lincha no Brasil, lincha porque tem medo. O linchamento é uma manifestação de conservadorismo por parte de pessoas intolerantes em relação a certas diferenças. As pessoas não assimilaram a ideia civilizada de que crime é examinado e punido pela Justiça. Eles acreditam na justiça que vem lá do tempo da senzala. As pessoas acham que aquela sociedade na qual elas acreditam está acabando e acham que agredindo, matando e manifestando a intolerância publicamente vão dar conta de preservar o que de fato não têm como preservar. As ondas conservadoras, no meu modo de ver, vêm quando esse medo aumenta.

“A onda conservadora é sempre uma onda autodefensiva. As pessoas acham que aquela sociedade na qual elas acreditam está acabando e que manifestando a intolerância publicamente vão dar conta de preservar o que de fato não têm como preservar”

São Paulo, por exemplo, faz uma das maiores paradas gay do mundo e ao mesmo tempo vemos um agravamento da homofobia. Como isso é possível?
O Brasil sempre foi muito intolerante com a diferença em geral. O que mudou foi que a intolerância se tornou pública, agora virou moda ser intolerante. Existem religiões defendendo a intolerância, o que agrava a atitude dos homofóbicos em relação aos gays. Nem as escolas, nem a televisão, nem o rádio, nem as igrejas educam.

Na televisão, vemos desde programas que incitam explicitamente a intolerância até novelas nas quais é difícil ver alguns minutos sem que se mostre ali uma briga, um confronto. Isso contribui para esse cenário?
Existe uma apologia da vulgaridade. Não só existe a violência dos barracos que aparecem nas novelas, mas também nos noticiários. As pessoas acham isso legal, acham que essas outras pessoas estão exercitando os direitos. É uma deseducação generalizada. Os educadores estão perdidos, porque não conseguem mais ter a autoridade que tinham. No meu tempo o professor era uma espécie de Deus da educação, e hoje você vê gente atacando os professores. Isso em qualquer lugar, até na universidade. A pessoa deixou de ser um estudante para ser um cliente. Ele não usa, no sentido de ser um usuário que se beneficia de algo, aquilo que a universidade pode oferecer, que é o que tem de melhor em termos de conhecimento. Não é isso que acontece. A pessoa acha que tem o direito de não ser estudante.

São Paulo hoje tem passado um processo forte de gentrificação, em que uma região é valorizada a ponto de dificultar a permanência dos antigos moradores de renda mais baixa. Como você vê esse processo?
Houve uma destruição da própria ideia de cidade, que é a cidade estabelecendo uma dialética entre subúrbio e centro, de modo que existe o lugar para morar e o lugar para crescer culturalmente, que é o centro. O centro é o lugar do teatro, da grande praça pública. Ir ao centro era um desafio e uma recompensa. Você passava a semana inteira morando e trabalhando na periferia ou no subúrbio, e ao fim de semana você ia ao cinema ou ao teatro. Houve uma coisificação da ideia de cidade no pior sentido possível, o carro tomou conta da cidade, o que é muito ruim. Houve, de fato, uma deterioração da dialética da cidade. Você ainda encontra essas coisas em bairros como Mooca, Belenzinho, Lapa, em que você vê os velhinhos conversando, jogando dominó. Tem um espaço residual, que vai desaparecer, e que teria que ser suplantado pela criação de grandes centros de convivência modernos, como fez São Caetano. Lá, não há um único bairro em que não tenha um clube criado pela prefeitura e onde as pessoas se encontram e dançam, conversam, veem exposições.

Como você vê o papel do Estado em uma cidade como São Paulo?
Desde que essa degradação da cidade de São Paulo começou a ficar muito agressiva, a impressão que tenho é que o Estado é equivocado e omisso. Por mais que façam coisas, não se levam em conta as peculiaridades desta cidade, que é formada por migrantes. Uma coisa que acontece muito é o aparecimento de grupos que vieram do interior e recriaram na área metropolitana a Folia do Divino, a Folia de Reis, o Bumba Meu Boi. Essa é uma realidade bonita. Você tem Bumba Meu Boi no bairro do Butantã, grupo de violeiros com mais de cem violeiros em Osasco, que vêm todos da roça. Há uma falta de interação com a população, uma falta de conhecimento do que é hoje a população da cidade de São Paulo, as características dela. Há um divórcio, digamos, entre o poder público e a realidade da população.

“Desde que essa degradação da cidade de São Paulo começou a ficar muito agressiva, a impressão que tenho é que o Estado é equivocado e omisso. Por mais que façam coisas, não se levam em conta as peculiaridades desta cidade, que é formada por migrantes”

Você considera que uma metrópole como São Paulo se exime de fazer um processo civilizatório, ou seja, ela poderia civilizar mais os seus habitantes?
Acho, sim. Acho que em São Paulo não só o poder público se exime dessa possibilidade. Se você tiver um administrador sensível a essa dimensão da vida coletiva urbana, isso pode acontecer, mas ele tem que ter carisma, e os políticos hoje no Brasil não têm carisma. Para ter carisma, você tem que ser reconhecido como alguém devotado indiscutivelmente ao bem público, o que também não é verdade todo o tempo. Mesmo quem é devotado ao bem público não tem esse devotamento reconhecido pela população, porque há tantas suspeitas sobre o Estado e a estrutura do poder público que é uma aventura você entrar em algo assim. Acho que os governos não são capazes de fazer apelos em favor do bem público. Os apelos hoje são sempre sectários, sempre em favor de uma bandeira que não é a bandeira de todos. Não existe mais a bandeira de todos, e esse é um grande problema ao lidar com a cidade. A cidade não é a república. A cidade é onde nós vivemos, e nós não vivemos só no nosso bairro. 

Como você diria que é a recepção aos novos imigrantes que têm chegado a São Paulo na última década, como haitianos, bolivianos, coreanos?
Não somos mais receptivos como éramos nos anos 1920 e 1930, quando os últimos imigrantes chegaram, e mesmo nos anos 1950, depois da guerra, quando vem uma última onda de imigrantes italianos, alemães e russos para São Paulo. Não sabemos mais acolher as pessoas. É interessante nessas recentes imigrações ver, por exemplo, imigrantes como coreanos que vieram para cá em situação problemática ascenderam e, hoje, estão quase explorando outros imigrantes, como os bolivianos. Estive durante 12 anos em uma comissão da ONU [Organização das Nações Unidas] tratando justamente do tráfico de pessoas e trabalho escravo. No caso dos bolivianos, eles são explorados até mesmo por outros bolivianos. Existe tráfico de escravos, há um crescimento no mundo do trabalho escravo e do tráfico de pessoas. Isso é algo grave, e são 21 milhões de pessoas no mundo nessa condição. Nada é mais atrasado que trabalho escravo. Quanto às novas imigrações, é verdade que as imigrações anteriores tinham uma característica de ter parentes recebendo parentes. Os italianos vinham em onda da mesma família e da mesma aldeia, então havia recepção. Aconteceu também com os imigrantes do Nordeste, que também vinham por ondas. Isso não existe mais. Com os haitianos, por exemplo, isso é muito diferente, porque a língua é outra, a cultura é outra, e eles não tinham antecedentes aqui.

“Os apelos hoje são sempre sectários, sempre em favor de uma bandeira que não é a bandeira de todos. Não existe mais a bandeira de todos, e esse é um grande problema ao lidar com a cidade”