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Valerio Oliveira
					
	
	por VALERIO OLIVEIRA
	
	HORAS DE VOO
	Literatura é uma substância dissimulada
	que se modifica
	de acordo com a quilometragem de leitores
	& autores
	Para leitor & autor até-dez-mil-horas
	literatura é sólida
	Para leitor & autor entre-dez-e-vinte-mil-horas
	literatura é ora sólida ora líquida
	Para leitor & autor acima-de-vinte-mil-horas
	literatura é ora sólida ora líquida ora gasosa
	Literatura
	ora-sólida-ora-líquida-ora-gasosa
	confunde demais o leitor e o autor
	de baixa quilometragem
	O chato é que gente confusa
	costuma gritar feito o capeta
	nas feiras nas festas
	nos redemoinhos sociais
CIDADÃO EXEMPLAR
	Ele era asseado, não roncava
	Sua aparência era ótima
	Pagava as contas sempre em dia
	Gostava de música e jardinagem
	Violento? Jamais
	Era educado, falava baixo
	De sua boca nunca saiu um só palavrão
	Quando eu estava triste ele me fazia rir
	Ah, sim, ele me fazia rir
	Não era econômico demais nem de menos
	Expansivo na hora certa, reservado na hora certa
	Não esquecia meu aniversário
	nem o de minha mãezinha
	Vícios? Não fumava nem bebia
	Era fiel e carinhoso, muito carinhoso
	Evitava os temas polêmicos, as pequenas perversões
	Não se irritava facilmente, jamais dava vexame
	Sua elegância era à prova de balas
	Analogia infeliz, desculpe
	Amoroso com os filhos
	Fraterno com os inúmeros amigos e os raros inimigos
	que não tinha
	Equilibrado, prudente, virtuoso
	Nos vinte anos em que fomos casados
	ele nunca perdeu a compostura
	Não sei o que deu em mim, delegado
	O revólver estava tão perto
FINAL FELIZ
	Saio do cinema
	de mãos dadas
	comigo mesmo
CICATRIZES
	Teu rosto e meu rosto
	são o mapa magnífico
	de nossa história
	incendiária
VIAJANTES
	no dorso
	cinza-escuro
	deste singular
	tubarão-cidade
	a vida é plural
	retinas de outono
	acenam barbatanas
	  dentes de inverno
	  desconhecem
	  a satisfação
	no dorso
	titanic-estrela
	deste singular
	tubarão-cidade
	somos cem mil surdos
	mudos
	na trilha agridoce
	dos vagalumes
	ninguém é
	de ninguém
	  amém
	LEONILSON NA ESTAÇÃO
	Leo é da família,
	um pelo-curto brasuca
	que arranha e borda.
	Escritor que desenha
	ou
	desenhista que escreve?
	Os dois, porque Leo
	é meu perfeito
	defeito borboleta.
	O caos, o cosmo e a teoria,
	tudo junto na Estação Pinacoteca.
	Seus desenhos
	são o bater de asas
	que provoca um furacão ferino
	em meu esôfago,
	nos pulmões.
	Seus bordados
	são o furaquinho felino
	que provoca um bater de brasas
	atrás das retinas,
	no fogo-fátuo da razão.
	Leo é um leão brasuca
	que arranha e morde,
	estraçalha e borda.
	Minimalista? Às vezes.
	Em geral, animalista.
	Humanimal.
	OBRAS COMPLETAS
	DE VALERIO OLIVEIRA
	
	A divina comédia, Fausto
	Alice no País das Maravilhas
	Crime e castigo
	Macunaíma, Orlando, Libertinagem
	O estrangeiro, Ficções, 1984
	As crônicas marcianas
	Claro enigma, Grande sertão: veredas
	Almoço nu, Solaris, Laranja mecânica
	O jogo da amarelinha
	A chuva imóvel, A paixão segundo GH
	Duna, Cem anos de solidão, Ubik
	Antes do baile verde
	Stalker, O arco-íris da gravidade
	Lanark, A teus pés, Neuromancer
	O marquês de Chamilly
	Qualquer livro que eu ame é meu
	sou eu
COBRA NORATO
	Vamos juntos, Raul, para as terras do sem-fim
	Vamos rápido, antes que a gente descubra
	que as serras do sem-fim não ficam longe, no infinito,
	ficam muito perto, dentro do peito
	Não seria irônico, querido, perceber que o demônio
	não está na mata, mas na mente?
	Isso desculparia a semelhança de diferenças
	que incendeia as paredes à meia-noite
	Isso justificaria a convergência de divergências
	que eletrifica na cama tantos casais
	Um demônio em mim finalmente explicaria
	essa paixão por velhos slogans gritados nos muros:
	Sejam realistas, exijam o impossível
	O tédio é contra revolucionário
	A liberdade do outro estende a minha ao infinito
	Quanto mais eu faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução; quanto mais eu faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor
	Um demônio em mim explicaria certas ações-reações
	selvagens, que tornam tudo mais atraente:
	sementes, bromélias, uma xícara de café,
	um afago no gato
	Vamos juntos, Raul, para as terras do sem-fim
	que é aqui mesmo, dentro da gente:
	serras em mim, em você
	serrando, serrando nossos erros mais secretos
	VALERIO OLIVEIRA é autor de Todos os Presidentes (Hedra, 2008) e
	Teto no Piso (Catatau, 2006), entre outros livros