Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Luiz Mott

foto: WSchulz
foto: WSchulz


 

Antropólogo fala sobre homofobia, luta pelos direitos LGBT e história da diversidade sexual no Brasil
 

O antropólogo, historiador e pesquisador Luiz Mott é um dos mais conhecidos ativistas brasileiros em favor dos direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Em 1980, fundou a organização não governamental Grupo Gay da Bahia (GGB) e por 25 anos foi professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia. É também autor de livros como Escravidão, Homossexualidade e Demonologia (Ícone, 1988), Homossexuais da Bahia: Dicionário Biográfico (Ed. GGB, 1999) e Homossexualidade: Mitos e Verdades (Ed. GGB, 2003), entre outros. Nesta entrevista, Luiz Mott fala sobre a história da diversidade sexual no Brasil e as dificuldades para o avanço da igualdade de direitos LGBT no país.

 

Quais são as resistências para que a questão da homofobia seja superada no Brasil?

O kit anti-homofobia, por exemplo, chegou a ser lançado para ser distribuído em escolas de ensino médio em 2011, mas foi retirado de circulação. Costumo dizer, como antropólogo e etno-historiador, que o Brasil apresenta uma contradição fundamental.

Existe um lado cor-de-rosa, em que há a maior parada gay do mundo, cada vez mais gays e travestis aparecendo em novelas, Roberta Close escolhida como modelo da mulher brasileira, mas temos o lado vermelho-sangue, herdado da escravidão.

Isso reforçou o lado do macho dominante forte para garantir a governabilidade e a sustentação da elite branca no Brasil colonial, em que aproximadamente 20% da população dominava 80% e somente um supermacho conseguiria manter tranquila essa massa explorada. Nós herdamos a cordialidade de conviver com o diferente, mesmo socialmente, mas no fundo esse brasileiro cordial esconde uma insegurança perante o diferente, na medida em que ameaça o modelo hegemônico da família patriarcal.


Como superar essas barreiras?

Considero que, contra essa homofobia cultural que expulsa de casa o filho gay, que faz bullying contra travesti nas escolas, há cura. Primeiro, é preciso instituir a educação sexual obrigatória em todos os níveis escolares, ensinando o respeito à livre orientação sexual e de gênero.

Segundo, é necessária uma lei que puna a homofobia com a mesma severidade com que tem punido o racismo e leis que garantam a igualdade. Os gays não querem privilégios, queremos direitos iguais, isonomia de direitos, nem menos nem mais. Terceiro, ações afirmativas para a população LGBT, ou seja, cotas para as travestis, gays e lésbicas vítimas de bullying, em relação, por exemplo, à saúde integral.

O Ministério da Saúde esquece que travestis têm próstata, por exemplo. A quarta medida é estimular a população LGBT a afirmar sua identidade, defender seus direitos, exigir boletim de ocorrência quando for vítima de discriminação. Só assim conseguiremos tirar o Brasil desse ranking terrível, no qual 44% dos crimes contra homossexuais ocorrem no nosso país [este e outros números sobre o assunto estão disponíveis no site www.grupogaydabahia.com.br].


O surgimento de cada vez mais personagens LGBT em novelas nos últimos anos significa uma aceitação da homossexualidade pela sociedade?

No respeito à diversidade de gênero, a Argentina nos antecipou não só no casamento gay e na criminalização da homofobia, como também nas novelas com personagens gays e travestis. Uma grande atriz travesti foi protagonista de uma novela argentina há alguns anos. A presença de homossexuais na televisão brasileira já foi censurada durante a ditadura e mesmo depois.

Considero que alguns diretores deveriam se pautar mais por pesquisas de opinião e pela realidade vista na rua, abrindo mais espaço para o gay não necessariamente afetado. Ser masculinizada ou afeminada é um direito, mas tem que se desconstruir essa ideia estereotipada. Considero que alguns diretores exageram ao mostrar o gay afeminado.

Acho que a resistência em mostrar cenas de afeto é uma burrice, porque o povo em geral vê isso com naturalidade, tanto que cada vez mais na rua, fora das paradas, a gente vê casais gays abraçados, andando de mãos dadas, embora o Brasil tenha essa contradição: a união civil homossexual é legalizada, mas você corre o risco de ser agredido se está de mãos dadas na Avenida Paulista altas horas da noite. 


A discussão em torno do beijo gay, por exemplo, é positiva ou negativa para a questão LGBT no país?

Quanto mais se falar sobre o que era chamado de “o amor que não ousa dizer o nome”, quanto mais se verbalizar, mais fácil será superar esse tabu, esse complô do silêncio que impede as pessoas de se afirmarem como membros de um grupo que ama pessoas do mesmo sexo e que quer direitos iguais.


E quanto à adoção por casais homossexuais, você observa um crescimento?

Os gays são a última tribo romântica do mundo. Ninguém mais quer se casar e praticar planejamento familiar, mas os gays querem se casar, as lésbicas querem gravidez assistida. O que aparentemente é uma caretice, como buscar uma instituição pequeno-burguesa, na verdade não é. É a busca por direitos totalmente iguais, inclusive os laços do casamento.

Considero que a resistência à adoção por parte de indivíduos homossexuais está baseada no preconceito. Pesquisas sérias realizadas nos Estados Unidos e na Europa comprovam que crianças educadas por casais homossexuais não são mais homossexuais do que as crianças criadas por pais heterossexuais. Basta ver que a maior parte dos homossexuais foi criada por pais heterossexuais, e isso não foi um obstáculo para que eles se tornassem gays.

Comprovou-se também que gays e lésbicas são ótimos pais e mães, sem esquecer que indivíduos gays e lésbicas adotam crianças abandonadas por casais heterossexuais. Resistir a isso se baseia na ignorância e no preconceito, porque a realidade mostra que são experiências bem-sucedidas.


Como os educadores no Brasil têm tratado a diversidade de gênero?

Um traço indicativo do quanto a escola ainda precisa progredir no respeito à diversidade sexual e de gênero é a pobreza das bibliotecas escolares, que não têm livros sobre educação sexual, homossexualidade e direitos da população LGBT. Os professores são, em grande parte, desinformados, de modo que considero necessário capacitar os professores para o respeito à diversidade religiosa, às famílias não tradicionais. Essa é uma reforma que deve se estender também a funcionários. Além disso, é fundamental que as escolas recebam livros, cartilhas e manuais de como enfrentar a homofobia e tratar esses temas de igualdade de gênero.


Você provocou uma celeuma ao divulgar que algumas personalidades históricas eram homossexuais em seu livro Homossexuais da Bahia: Dicionário Biográfico (Ed. GGB, 1999). As pessoas se escandalizaram ao saber que certos heróis são gays?

Vivi e sofri durante 30 anos da minha vida a homofobia internalizada, pois eu não aceitava ser gay, e a homofobia familiar, cultural e religiosa, que me transmitiam informações negativas sobre ser homossexual. Considerei, como cientista social, historiador e antropólogo, que era fundamental resgatar essa história escondida, na medida em que um complô do silêncio impedia e continua impedindo que personagens importantes da história, reconhecidamente homossexuais ou travestis, sejam identificadas em relação à sua identidade de gênero.

Achei que era fundamental resgatar a história LGBT e comecei a levantar personagens dos quais havia indícios ou registros de serem homossexuais. Divulguei uma lista de cem personagens célebres do Brasil de desviantes sexuais, que não eram necessariamente homossexuais em tempo integral. Por exemplo Gilberto Freire, que foi casado, teve filhos, declara que teve relações homossexuais. Outros exemplos eram Santos Dumont, Mário de Andrade, Burle Marx, a imperatriz Leopoldina.

O Santos Dumont, por exemplo, era afeminado, nunca se casou, queimou seus próprios diários, e há oito livros que falam que ele era homossexual. Eu acho importante continuar essa pesquisa, e preparo uma obra simples, com duzentos exemplos, como Cássia Eller, Cazuza, Raul Cortez, entre outros homossexuais exclusivos ou bissexuais.


Do ponto de vista do historiador e antropólogo, como você vê essa atualização dessas listas que você pesquisa?

Eu me baseio em autores respeitados academicamente. Apesar disso, fui vítima de muitos ataques, de ameaças de processo, o meu muro foi pichado e meu carro depredado, quando, em 1995, no tricentenário de Zumbi, eu disse que havia mais indícios de que ele era gay e nenhuma prova de que era heterossexual.

Apesar disso, eu me norteio pelo lema “dai aos gays o que é dos gays”. Eu não deixarei de divulgar indícios ou evidências de que personagens históricos praticaram a mesma forma de amor que eu pratico, porque considero fundamental descartar a mentira, a injustiça, e o meu trabalho vai nessa linha. Coloco como lema de vida a busca da verdade e da justiça, e estaria sendo mentiroso e injusto deixando de divulgar o que deve ser divulgado.


Nas suas pesquisas, você trata também dos escravos, dos indígenas. O que você levantou a respeito da homossexualidade no período da escravidão no Brasil, entre senhores e escravas e escravos?

Sempre preocupado em resgatar a história dos gays, lésbicas e travestis no Brasil e em Portugal, um dos meus primeiros artigos foi sobre relações raciais entre homossexuais no Brasil colonial, em que fiz um levantamento de gays e lésbicas de diferentes raças e status socioeconômicos.

Descobri que, ao chegarem ao Brasil, os portugueses encontraram a homossexualidade desenvolvida e espalhada entre os índios brasileiros. Havia termos especiais para se referir a gays e lésbicas, havia travestismo, casamento reconhecido entre gays e índios, sobretudo entre os tupinambás, nambikwaras, entre outras tribos tanto do litoral quanto do interior. Há documentação histórica comprovando isso. Os africanos, por sua vez, também possuem documentação desde o século 16 comprovando a prática da homossexualidade masculina e feminina.

Aqui na Bahia a inquisição encontrou o primeiro travesti, que era um nativo do congo que se recusava a vestir roupa de homem e usava as mesmas roupas que os sodomitas usavam na África, segundo descrição de dois viajantes do século 17. Em Portugal, por sua vez, desde o tempo dos visigodos, dos romanos e dos ibéricos a sodomia já era documentada.

De modo que a existência da homossexualidade no Brasil tem raízes profundas, tanto dos indígenas, quanto dos africanos e dos portugueses, e a repressão veio sobretudo com a inquisição e com os capitães hereditários, que receberam alvará autorizando executar com pena de morte, sem consultar o rei, os falsificadores de moeda, os que apoiaram os inimigos contra a colônia e os sodomitas. Ou seja, a perseguição tem raízes tanto na constituição católica quanto civil.


Hoje o mercado começa a olhar para o homossexual como nicho de mercado. Como você vê isso?

Resorts, pet shops e algumas coisas aproveitam o chamado Pink Money, o mercado cor-de-rosa, que nos Estados Unidos e na Europa são muito mais poderosos do que aqui. Existe um mercado, sobretudo no sul do país, que consome boates, saunas, casas de beleza, mas para o resto do Brasil não vejo como um mercado em potencial.

Gay não é uma categoria homogênea. Enquanto o movimento negro aglutinou as 600 diferentes cores do censo demográfico no termo “negro”, a população de orientação sexual e gênero exigiu cada vez mais essa multiplicação das letrinhas, que começaram com homossexual, depois GLS, depois LGBTTT.

Eu, pessoalmente, acho uma pena, porque é impossível uma campanha incluir todas essas letras, falar de homofobia, transfobia, lesbofobia. A parada gay, por exemplo, inclui todas as letrinhas. De modo que acho, dentro do movimento, que nós, gays, que somos historicamente pioneiros na luta pelos direitos das minorias sexuais, sempre estimulamos as outras minorias sexuais à visibilidade, tanto que em vez de GLS, passou-se a colocar o L na frente, chamando LGBT.


Em 35 anos de militância, quais foram os principais avanços que você acompanhou?

Muitos progressos foram alcançados. Eu mesmo fui agente de algumas mudanças fundamentais por meio do GGB, como a despatologização da homossexualidade, que até 1985 era chamada de homossexualismo. Graças a uma campanha nacional conseguimos retirar a condição de patologia junto ao conselho federal de medicina. Uma das últimas conquistas foi a introdução do uso do feminino para as travestis e transexuais no Brasil.

Além disso, há esse trabalho de formiguinha que fazemos da construção de um banco de dados sobre os assassinatos de homossexuais e a denúncia do Brasil como o país onde a cada 28 horas um LGBT é assassinado. Como decano do movimento LGBT, não pretendo nunca pendurar as sapatilhas, mas espero ainda estar vivo para ver o Brasil erradicar esses assassinatos tão cruéis que constituem uma mancha na nossa história.



“O BRASIL APRESENTA UMA CONTRADIÇÃO FUNDAMENTAL. NÓS HERDAMOS A CORDIALIDADE DE CONVIVER COM O DIFERENTE, MESMO SOCIALMENTE, MAS NO FUNDO ESSE BRASILEIRO CORDIAL ESCONDE UMA INSEGURANÇA PERANTE O DIFERENTE, NA MEDIDA EM QUE AMEAÇA O MODELO HEGEMÔNICO DA FAMÍLIA PATRIARCAL”


“CONSIDEREI FUNDAMENTAL RESGATAR A HISTÓRIA ESCONDIDA, NA MEDIDA EM QUE UM COMPLÔ DO SILÊNCIO IMPEDE QUE PERSONAGENS IMPORTANTES DA HISTÓRIA, RECONHECIDAMENTE HOMOSSEXUAIS OU TRAVESTIS, SEJAM IDENTIFICADAS EM RELAÇÃO À SUA IDENTIDADE DE GÊNERO”


“AQUI NA BAHIA A INQUISIÇÃO ENCONTROU O PRIMEIRO TRAVESTI, QUE ERA DO CONGO UM NATIVO QUE SE RECUSAVA A VESTIR ROUPA DE HOMEM E USAVA AS MESMAS ROUPAS QUE OS SODOMITAS USAVAM NA ÁFRICA, SEGUNDO DESCRIÇÃO DE DOIS VIAJANTES DO SÉCULO 17”
 

“ENQUANTO O MOVIMENTO NEGRO AGLUTINOU AS 600 DIFERENTES CORES DO CENSO DEMOGRÁFICO NO TERMO “NEGRO”, A POPULAÇÃO DE ORIENTAÇÃO SEXUAL E GÊNERO EXIGIU CADA VEZ MAIS ESSA MULTIPLICAÇÃO DAS LETRINHAS”