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A arquiteta das grandes obras

Foto: Reprodução
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Por: CECILIA PRADA

Em 17 de outubro de 1946, logo após desembarcar no porto do Rio de Janeiro, o casal italiano Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi, que veio da Europa para o Brasil a bordo do cargueiro Almirante Jaceguay, foi acolhido com muita simpatia e expectativa no círculo intelectual e artístico da então capital da República por um importante motivo: não era um casal comum que, como muitos outros, desiludido com o continuísmo político e artístico do pós-guerra no Velho Mundo, procurava refazer sua vida e continuar seu trabalho no outro lado do Atlântico. E, apesar de ainda recém-casados, não era um par de jovens, de artistas iniciantes. Eram maduros e estabelecidos em suas profissões: ele, de 46 anos, jornalista, marchand e curador de exposições, já estivera no Brasil em 1933 e mantinha relações com os profissionais brasileiros do mercado de arte; ela, de 32 anos, também já bem situada em seu país como arquiteta e jornalista de revistas do setor. Além disso, haviam alugado o porão do cargueiro para trazer sua importante coleção de objetos de arte e de artesanato, e também uma grande biblioteca – vinham para organizar de imediato uma mostra da coleção, e decididos a aqui fincarem raízes.

Assim foi feito. Poucos meses depois, transferiram-se para São Paulo, onde Bardi foi o criador, com Assis Chateaubriand, do Museu de Arte de São Paulo (Masp), mantendo-se como seu diretor durante 49 ininterruptos anos. Enquanto isso, Lina dava prosseguimento à sua carreira de arquiteta, com obras de grande porte, como o projeto para construção do próprio prédio do Masp, na Avenida Paulista, em 1958, em São Paulo, (sua obra-prima), teatros e centros culturais, até sua última e mais querida realização, a do centro cultural e esportivo do Sesc Pompeia, inaugurado em 1982. Ambos permaneceram ativos e trabalhando até o fim de suas vidas longevas – Lina faleceu aos 78 anos, em 1992, e Pietro aos 99 anos, em 1999, quando faltavam apenas quatro meses para comemorar seu centenário.

A personalidade de Lina Bo, comunista declarada, deve ter provocado espanto e dado margem a críticas. Naquela época, as moças brasileiras da primeira geração da Era Atômica estavam apenas começando a entrar no circuito universitário com uma frequência mais “normal”, tendo de lutar, em muitos setores, para vencer as barreiras e os preconceitos, situação que as mantinham ligadas ao lar e às profissões consideradas mais “femininas”, como magistério, enfermagem, secretariado e assistência social. Foram raríssimos, de se contar nos dedos, os casos daquelas que se aventuravam pelos setores da advocacia, da medicina, e principalmente, as ciências exatas, como a engenharia e a arquitetura – como Lina pudera fazer, com sucesso em seu país de origem, desde sua formatura, em Roma, na década de 1930, e no exercício posterior da profissão nos mais sofisticados círculos de design de Milão, onde chegou a ter negócio próprio. Durante a guerra, após seu escritório ter sido bombardeado, ingressou no Partido Comunista Italiano e participou da resistência à ocupação alemã.

Museu fechado

O projeto e a construção dos edifícios que integram hoje o Sesc Pompeia, na capital paulista, foi seu último trabalho de vulto, pois ao falecer, dez anos mais tarde, deixou vários trabalhos inconclusos, até mesmo um projeto de reforma da Prefeitura de São Paulo. Para celebrar os 30 anos da inauguração da primeira etapa do conjunto, foi lançado em 2013 o livro Cidadela da Liberdade – Lina Bo Bardi e o Sesc Pompeia (Edições Sesc São Paulo), organizado pelos arquitetos André Vainer e Marcelo Ferraz, que haviam participado da execução do projeto de Lina durante nove anos de trabalho diário, de 1977 a 1986, primeiro como estudantes e depois como arquitetos formados.

De excelente projeto gráfico, o livro reúne 15 artigos de arquitetos, artistas e críticos apresentados por Danilo Santos de Miranda, e um grande material documental, fotos, projetos, ilustrações, desenhos e alguns textos da própria Lina Bardi, historiando todas as etapas da construção. Tudo feito com minúcias de detalhes que não deixam de lado nem o planejamento do mobiliário, das placas de sinalização, dos uniformes dos funcionários e a escolha cuidadosa de cada material empregado. E, sobretudo, destacando a cada passo a subordinação conceitual dos objetivos visados, para que o espaço recriado sobre a área de uma antiga fábrica de tambores construída em 1938, acrescido de dois novos edifícios, se tornasse, como dizem seus arquitetos, “um espaço livre para abrigar todas as tendências e movimentos culturais, de forma inovadora”.

Naturalizada brasileira, em 1951, cinco anos após a sua chegada, Lina decidiu superar o pesadelo nazifascista, que destroçara sua vida na Itália por conta da repressão e da interferência direta do Duce na arte e na arquitetura. Firme no seu propósito de retomar as diretrizes técnicas e políticas dos arquitetos modernistas italianos com quem trabalhara a partir de 1940, Lina mergulhou na pesquisa dos elementos da cultura popular brasileira, que passou a ver como fonte “poética” de seu trabalho. É o que diz o filósofo e poeta Eduardo Subirats, no artigo “Arquitetura e Poesia”, no livro que analisamos: “Lina é uma figura que, durante toda sua vida, tem articulado com perfeita coerência o objeto da arquitetura com a defesa das culturas populares e históricas, das tradições que unem a sociedade americana atual e suas formas de vidas passadas, africanas, pré-colombianas e também asiáticas”.

O destino, porém, preparara para ela outro dramático choque com o fascismo: ao realizar o projeto do Museu de Arte Moderna da Bahia, inaugurado em 1960, mudou-se para Salvador e tornou-se fundamental para a formação da geração de artistas cujos expoentes foram Glauber, Gilberto Gil e Caetano, procurando fazer do museu um lugar de integração e resistência popular. Mas, com o golpe de 1964, o museu foi fechado pelos militares e o grupo disperso – muitos foram presos e obrigados ao exílio. Abalada, Lina regressou a São Paulo e amargou dez anos de ostracismo, até ser convidada a se engajar na obra de recuperação e ampliação do Sesc Pompeia.

“Trabalho apaixonante”

No artigo “A Fábrica da Pompeia”, de 1986, reproduzido no livro de Vainer e Ferraz, ela própria descreve as etapas dessa tarefa, definida desde seu início como “um trabalho apaixonante”. A resolução de conservar a antiga estrutura da fábrica de tambores foi tomada – diz Lina – na primeira vez que visitou, em 1976, “aqueles galpões distribuídos racionalmente, segundo os projetos ingleses do começo da industrialização”, somados à “elegante e precursora estrutura de concreto”. Impressão confirmada em um sábado, quando voltou a visitar o lugar que já era usado informalmente pela população do bairro, encontrando “...um público alegre de crianças, mães, pais e anciãos, que passava de um pavilhão a outro”, um espaço onde “crianças corriam, jovens jogavam futebol debaixo da chuva que caía dos telhados rachados...”. Cenários que a fizeram pensar: “Isso tudo deve continuar assim, com toda essa alegria”. Um propósito que persiste ainda hoje, aceso e vital, nos múltiplos espaços integrados, na área de convivência e nos locais das exposições, na choperia, na biblioteca, no original teatro (de cadeiras propositalmente “inconfortáveis”, de madeira, para evitar letargia e acomodação mental dos espectadores) e no conjunto esportivo.

No entanto, a sua inauguração, em 1982, representou um “verdadeiro soco no estômago” do convencionalismo paulistano, como descreve outra articulista, Marlene Acayaba. O arquiteto Marcelo Ferraz confirma o escândalo: “...explodiu como uma bomba no ambiente arquitetônico” por ser “inenquadrável nas gavetas da arquitetura corrente. Era estranho. Era feio?...” A “arquitetura pobre” que Lina usara, tinha – em suas próprias palavras – “um sentido artesanal que exprime comunicação e dignidade máximas, através dos menores e humildes meios”.

Ainda segundo Ferraz, esta postura de Lina foi também uma verdadeira revolução na prática arquitetônica vigente, porque para ela “arquitetura é ver um velhinho, ou uma criança, com um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço do nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva”. Foi certamente esse sentimento que a fazia se emocionar ao reconhecer que essa obra final era a realização do seu sonho por um mundo melhor. “Fizemos aqui uma experiência socialista”, disse. E a inspirá-la na criação do logotipo do Centro Pompeia, sua original torre-caixa-d’água-chaminé que, em vez de fumaça, despeja flores.

 


 

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