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De vilão a mocinho

Antes combatido, hoje recomendado por seus benefícios à saúde / Foto: Arquivo PB
Antes combatido, hoje recomendado por seus benefícios à saúde / Foto: Arquivo PB

Por: MIGUEL NÍTOLO

Todos o comem e se satisfazem, é uma mão na roda nas refeições e essencial na confecção de doces e bolos e na formulação de massas em geral. É tão presente na vida das pessoas que os refrigeradores saem de linha equipados com espaço próprio para o seu acondicionamento junto à porta. Outrora combatido pela ciência como um alimento perigoso se consumido de forma exagerada, mas, atualmente, de acordo com estudos recentes, abençoado por ser capaz de, entre outros benefícios, aumentar as taxas de colesterol bom (HDL) no organismo, o ovo ganhou um novo status. Especialmente porque as pesquisas têm reforçado suas reais qualidades, notadamente quando, elas garantem, é ingerido inteiro no café da manhã, com clara e gema, podendo ser saudável em pessoas que padecem da síndrome metabólica (doenças cuja base é a resistência insulínica).

Todavia, o esperado incremento de seu consumo por conta dessas notícias – se é que os produtores brasileiros nutriam de fato tal esperança – ainda não se confirmou. Importante segmento do agronegócio, cuja oferta é anunciada em bilhões de unidades anuais, o ramo produtor de ovos simplesmente patinou nos últimos meses, seguindo uma tendência amargada por outros destacados ramos ligados ao campo. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os números da produção referentes ao primeiro trimestre de 2014 (plantel de poedeiras comerciais e reprodutoras de corte e de postura) alcançou pouco mais de 686 milhões de dúzias, um aumento de 2,41% sobre igual período do ano passado, resultado que sinaliza a oferta de 2,74 bilhões de dúzias, isto é, 33 bilhões de unidades, no ano inteiro, ou seja, apenas 0,2% mais do que em 2013. É possível, todavia, que até o final de dezembro, esses valores obtenham uma sensível melhora considerando que o instituto registrou um aumento médio superior a 3% no lote de galinhas poedeiras.

Há outro aspecto que também tem deixado encabuladas as pessoas que vivem da avicultura, e diz respeito ao consumo anual de ovos no Brasil, um dos mais baixos do planeta: 170 unidades por habitante, em 2013, apenas 6 a mais que em 2012. Um número que contrasta, por exemplo, com o consumo chinês, japonês e mexicano, superior a 300 ovos por ano, ou de países europeus, bem acima de 200. Ou mesmo da vizinha Argentina, que deve chegar este ano a 255 unidades per capita. Nos Estados Unidos, por exemplo, as boas notícias sobre os benefícios do ovo para saúde estão alavancando as vendas, tanto que a expectativa é que o consumo chegue ainda este ano a 259 ovos por americano, 8 a mais do que em 2013. Isto depois de o país ter alcançado um consumo per capita de 374 unidades nos anos 1950, índice que caiu para 236 nos anos 1990. O consumo de ovos no Brasil caminha na contramão da demanda por carne de frango: somos o segundo maior consumidor (42 quilos per capita), o terceiro maior produtor e o maior exportador do produto, com o mercado interno absorvendo 70% da oferta.

Informação qualificada

Movimentos envolvendo representantes de toda a cadeia produtiva em favor do incremento da demanda, objetivando elevar o consumo anual dos brasileiros para 208 unidades per capita até 2016, ou seja, 4 ovos por semana, começam a ganhar corpo no país. Um exemplo é a Semana do Ovo, que acontece anualmente, e, em 2014, foi realizada de 6 a 11 de outubro, uma iniciativa da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) e do Instituto Ovos Brasil. Mediante uma série de ações, em várias regiões do país, o evento mira turbinar as vendas do alimento. “Degustação de omeletes em supermercados; distribuição de folders e de informativos, especialmente em academias de ginástica, que mostram os benefícios do ovo para a nutrição; divulgação de receitas e realização de palestras para adolescentes, crianças, médicos e nutricionistas são algumas das manifestações”, esclarecem os organizadores, que contam com o apoio de redes de supermercados, além de bares e restaurantes. “Podemos chegar a 250 ovos per capita no Brasil, mas, para isso, temos que investir, colocar a mão no bolso. É preciso tempo e dinheiro para o resultado vir; não será do dia para a noite, mas com planejamento e atitude podemos melhorar muito nossa atividade. Temos que querer e agir”, assinalou um empresário avícola durante recente encontro entre produtores e entidades ligadas ao setor de ovos.

No ano passado, a Semana do Ovo atraiu mais de 2 milhões de pessoas, representando, hoje, a maior mobilização da avicultura de postura. A aposta é que a divulgação de informação qualificada e a publicidade das pesquisas científicas que comprovam os benefícios do alimento para a saúde do ser humano fortaleçam os negócios do setor. Os produtores garantem que promover o consumo do ovo é importante para melhorar a qualidade da alimentação do brasileiro. “O ovo é considerado um alimento completo, rico em proteínas, representa 20% das nossas necessidades diárias e é rico em vitaminas e minerais”, destacam. “E tem apenas 70 calorias, o equivalente a uma fruta”.

É certo que o alimento gerado pelas galinhas não pode ser comido desregradamente, já que em certas situações é necessário impor limites ao seu consumo. Assim, por exemplo, conforme alguns especialistas, quem tem colesterol alto não deve ingerir ovos mais do que duas a três vezes por semana. Em contrapartida, quem não tem pode comer um ovo diariamente, mas essa é uma recomendação que cabe somente aos médicos.

O que pode ser afirmado, com toda a certeza, é que o Brasil ocupa a sétima posição no ranking dos maiores produtores, respondendo por 2,1% da oferta mundial do alimento (1,36 milhão de toneladas). À sua frente estão a Rússia, com 2,28 milhões de toneladas (3,6%), o Japão, com 2,51 milhões (3,9%), o México, com 2,53 milhões (4%), a Índia, com 3,82 milhões (6%), os Estados Unidos, com 4,7 milhões (7,5%), e a China, com 23,6 milhões de toneladas (37,1%). Estimativas feitas em cima dos números do Censo Agropecuário dão conta de que seriam 420 mil os produtores em atividade no Brasil. E a oferta de ovos no país se sobressai nos estados de São Paulo (34,33%), Minas Gerais (12,37%) e Espírito Santo (8,68%).

Imigração japonesa

Bastos, no oeste paulista, com pouco mais de 20 mil habitantes a 550 quilômetros da cidade de São Paulo e conhecida como a “capital do ovo”, tem sua economia centrada na avicultura e responde pela produção diária de 16 milhões de unidades, ou, 190 ovos por segundo. O município e cidades vizinhas, microrregião designada “Bolsão de Bastos”, formam uma área geoeconômica com um plantel de mais de 20 milhões de poedeiras, número que pode chegar a 25,5 milhões se for considerada a reposição formada por pintainhas e frangas.

Importante produtor de café e algodão em tempos passados, Bastos decidiu apostar no ovo nos anos 1950, quando o cultivo de café começava a mudar de endereço, saindo de São Paulo para o Paraná, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A imigração nipônica certamente teve tudo a ver com a posição de realce ocupada hoje pelo município, tanto que metade da população é formada por nisseis e a maior parte das granjas está nas mãos de descendentes (a cidade foi fundada pelo japonês Senjiro Hatanaka). É o caso do avicultor e consultor Sérgio Kakimoto, entrevistado meses atrás pelo programa “Domingo Espetacular”, da Rede Record, cujos negócios começaram com seu pai, Jonas, na década de 1970, e, no início, com apenas 300 galinhas. Em quarenta anos, o plantel dos Kakimoto alcançou a marca de 1 milhão de aves, um número surpreendente para um empreendimento que nasceu tão pequeno.

Essa é, na realidade, a história de basicamente todos os grandes produtores da região de Bastos, muitos deles dedicados, nos primeiros tempos, à criação de galinhas soltas. Em acelerado processo de automação, e atualizadas em relação ao que existe de mais avançado no âmbito do setor, as granjas bastenses participam com 20% da oferta brasileira de ovos. A cidade, inclusive, é sede de um importante fabricante de sistemas de automação para granjas, empreendimentos que começaram a se instalar no país, com capital local e multinacional, assim que o setor deu sinais de que iria partir decidido para a modernização.

O município ainda se destaca na produção de ovos de codorna (coturnicultura), respondendo pelo primeiro lugar do setor, com um crescimento de 200% nos últimos dez anos em todo o país. Granjas locais de grande porte investem na codorna mediante a adoção de processos automatizados, a exemplo do que já fazem com a produção de ovos de galinha.

Tão importante quanto Bastos, só que com menor representatividade, o município capixaba de Santa Maria de Jetibá, com 38 mil habitantes e a 90 quilômetros de Vitória, também se notabiliza como destacado polo produtor de ovos, o maior do estado e o segundo do país. No ano passado, o Espírito Santo movimentou R$ 500 milhões apenas com a avicultura, e parcela ponderável desse total se deve aos negócios dos criadores da região serrana onde fica Santa Maria de Jetibá, que contribuíram com a maior parte das 700 mil caixas de ovos de 30 dúzias cada uma produzidas mensalmente pelo estado em 2013.

Muitos outros municípios ocupam posição de realce como produtores de ovos de galinha, casos de Itanhandu, Montes Claros, Passa Quatro e Uberlândia, em Minas Gerais; Arapongas e Cascavel, no Paraná; Guararapes, Rancharia e Tupã, em São Paulo; Bela Vista de Goiás, Inhuma e Rio Verde, em Goiás; Campo Verde e Primavera do Leste, em Mato Grosso; Paudalho e São Bento do Una, em Pernambuco; Manaus; e Salvador do Sul, no Rio Grande do Sul. Fica em Itanhandu a granja Mantiqueira, a maior do país, um empreendimento gigantesco capaz de produzir, anualmente, 2 bilhões de ovos. São 11 milhões de galinhas alojadas em instalações totalmente automatizadas, um negócio que começou, anos atrás, com um plantel de apenas 30 mil aves e uma granja arrendada. Instalada em área de 500 mil metros quadrados onde trabalham perto de 2 mil pessoas, a Mantiqueira opera outras duas unidades, uma no município mineiro de Passa Quatro, outra no mato-grossense de Primavera do Leste, onde o plantel soma 6 milhões de galinhas.

Exportadora para Angola, Japão e Oriente Médio, a supergranja consome, anualmente, 4 milhões de sacas de milho, ou 240 mil toneladas do grão, segundo informação concedida à imprensa, no ano passado, por Leandro Pinto, um dos proprietários da Mantiqueira. A empresa foi a primeira a automatizar suas instalações, isto ainda no final dos anos 1990, iniciativa que serviu de estímulo a que outras importantes granjas brasileiras fizessem o mesmo e promovessem uma verdadeira revolução na avicultura brasileira.

Galinhas soltas

A história do ovo no Brasil vem de séculos. No começo eram apenas umas poucas galinhas no terreiro, que vivam a ciscar o chão e comer minhocas e outros insetos, e que eram alimentadas uma vez por dia com milho. Isto na cidade e no campo. Os sitiantes nunca sabiam quantas aves tinham na sua propriedade porque, como eram criadas soltas, procriavam sem controle no meio do cafezal. Da mesma maneira, não tinham ciência de quantas perdiam, já que era comum o ataque de predadores, como cachorros e raposas. Vem desse tempo a denominação “ovo caipira”, produto obtido de aves que vivam ao relento e que se recolhiam por conta própria ao galinheiro assim que o sol se punha. Uma rotina que data da época do descobrimento do país: os primeiros navegadores teriam sido os verdadeiros responsáveis pela introdução da galinha em território brasileiro.

Em meados do século passado, todavia, a história da avicultura e, por extensão, da produção de ovos, começou a ser escrita de outra maneira, com a profissionalização do setor, a adoção de técnicas modernas e equipamentos sofisticados, e o aparecimento das primeiras granjas tal como a conhecemos hoje. Os pequenos criadores ganharam escala; investiram na melhoria da saúde das aves poedeiras, e, tanto a alimentação, balanceada, quanto a coleta dos ovos, foram automatizadas. Com isso, reduziram-se os custos e o mercado ganhou um produto de valor acessível.

Esse é, sem tirar nem por, o enredo da produção de ovos em Bastos, que começou a ser desenhada há 70 anos e cujo sucesso se irradiou para outras regiões do país. Hoje é possível deparar-se com granjas enormes e milhares de aves em basicamente todo o território nacional como resultado direto da expansão da avicultura, já que, inevitavelmente, uma coisa puxa a outra. E o Brasil, do nada, ascendeu aos primeiros lugares no ranking mundial do setor. Para se ter uma ideia da nacionalização da oferta basta citar os resultados da estatística do IBGE sobre o desempenho desse ramo empresarial no segundo semestre deste ano em relação a igual período de 2013. O aumento da produção de ovos deu-se, principalmente, na região sudeste, com destaque para o Espírito Santo e São Paulo. Mas o nordeste também avançou, graças à boa performance dos produtores de Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte. As outras regiões amargaram queda na oferta do produto, casos do centro-oeste, sobretudo Goiás, e do sul, notadamente Santa Catarina.

Em todas elas os problemas amargados pelos granjeiros são praticamente os mesmos. “Obviamente, sofremos com questões que são comuns a todos os setores do agronegócio, como a infraestrutura defasada do país, que afeta a logística e, por consequência, os custos, a agilidade e a competitividade”, diz Francisco Turra, presidente da ABPA. Não é demais salientar que, segundo a Fundação Dom Cabral, as empresas brasileiras veem escorrer para o ralo, anualmente, R$ 80 bilhões devido à falta de investimentos públicos em aeroportos, ferrovias, portos e rodovias. Turra relata que os empresários do ramo estão buscando formas de diminuir os custos gerais da produção focando o aperfeiçoamento das embalagens e os investimentos. “Miramos, também, a desburocratização dos procedimentos que emperram o comércio internacional do setor, da mesma maneira como trabalhamos para expandir a oferta das linhas de crédito já existentes para o produtor avícola”. Ele adianta, ainda, que um dos objetivos prementes da entidade que preside contempla a modernização das instalações de antigas granjas que ainda fornecem para as integradoras, especialmente nos estados do sul.

 


 

Um “senhor” alimento

De repente, graças a estudos recentemente revelados, o ovo se transformou num alimento saudável e completo. E o mundo, que tinha por ele uma relação de amor e ódio, passou a saudá-lo como mais uma boa alternativa na mesa. O vilão de ontem virou o mocinho de hoje, e sua aceitação como uma excelente opção no café da manhã e nas refeições só aumenta na medida em que novas pesquisas feitas no exterior enalteceram suas qualidades. O ovo possui propriedades que o tornam recomendado para a saúde das pessoas. Senão, vejamos: a clara é rica em proteínas, e a gema, por sua vez, apesar da gordura e do colesterol, é excelente para a memória, pois tem colina, um aminoácido que também exerce papel de suma importância no funcionamento das células, do fígado e no transporte de nutrientes. Mais: o ovo faz bem para a visão e ajuda na recuperação muscular, além de contribuir para evitar o aparecimento de doenças degenerativas.

Cuidado! A recomendação é que, caso você escolha ficar com o ovo no almoço, por exemplo, recuse outras proteínas, como a carne, o frango ou o peixe. Consumidas isoladamente, não farão mal algum ao coração.