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Entrevista: Dom Paulo Evaristo Arns

Foto: Nilton Silva
Foto: Nilton Silva

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Nesta entrevista, Dom Paulo nos fala de política, religião, sexualidade, envelhecimento, morte e até de futebol, analisando a Seleção Brasileira e revelando sua paixão pelo Corinthians.

REVISTA - Dom Paulo, inicialmente gostaríamos que nos contasse um pouco da sua história, infância, adolescência...
DOM PAULO
- Acabo de publicar um livro: Da Esperança à Utopia – Testemunho de uma Vida* . Como é que me prepararam? De fato, fui uma pessoa que não teve nenhuma especialidade na infância. Havia talvez umas 20 famílias que entraram na mata virgem do sul catarinense e papai foi o primeiro a derrubar uma árvore lá, construiu a casa e eu vivi próximo aos macacos. À noite passava quatro quilômetros pela mata virgem para ir a estação de trem buscar as coisas. Vivia assim dentro da natureza, e também num ambiente extremamente religioso. Não havia padre e nem visita de padre; mas havia dois professores formados pelos franciscanos, que nos comunicavam a Bíblia três horas por semana e duas horas de catecismo. Aos domingos eles reuniam toda a colônia. Não faltava ninguém. Mesmo com 40 graus de febre, apoiados ou carregados, todos iam para a devoção. Não tinha missa, tinha uma reunião chamada “devoção”. Era uma colônia que herdou a religiosidade de Mosela, território situado entre a França e a Alemanha. De lá trouxeram uma religiosidade muito firme. Não houve um divórcio sequer em todo o tempo de meu conhecimento daquele lugar. Tenho 80 anos. Nasci e fui um dos primeiros que ali nasceram. O nome do lugar chamado é Forquilhinha.

REVISTA – Em Santa Catarina?
DOM PAULO
– Sim. Município de Criciúma naquele tempo. Hoje é um município com 18 mil habitantes. Quando nasci, teria uns 30 habitantes e umas 30 crianças. Nasci no meio da natureza, no meio da religiosidade e no meio de uma família de 13 irmãos, vivos. Meus pais ainda aceitaram seis crianças órfãs de pai e mãe, e mais duas crianças que também perderam a mãe e o pai. Éramos 21 ao todo, crescendo juntos. Deles, quatro ficaram religiosas e dois tornaram-se padres.

REVISTA - O que o influenciou ou como o senhor descobriu sua vocação para a vida religiosa?
DOM PAULO
- Minha vocação nasceu espontaneamente com a presença de um padre, que vinha a cada mês ou a cada dois meses. Quando era criança achava a vida de padre popular e muito importante para os colonos. Eu pensava: a coisa melhor na vida só pode ser me tornar padre também. Minha mãe era muito religiosa, o ambiente todo me favorecia. Nunca desanimei. Três vezes me pediram para que eu não fosse para o seminário, porque eu já tinha um irmão padre e três irmãs freiras. Queriam que eu ficasse para continuar o trabalho do meu pai, mas eu disse não.

REVISTA – Com que idade o senhor foi para o Seminário?
DOM PAULO
- Fui com 12 anos. Me mandaram para fazer a 5ª e a 6ª séries, e para que eu não fosse para o seminário só porque meus irmãos foram. Então fui, mas fui porque quis. Aprendi algumas matérias de todo o ginásio dentro do primário, e durante dois anos fui o único aluno na 5ª e 6ª séries.

REVISTA – Em sua vasta experiência sacerdotal e de luta pelos direitos humanos, quais acontecimentos religiosos, políticos, sociais, artísticos, marcaram a sua vida, ficaram na sua memória e lhe trouxeram maior satisfação ou algum outro tipo de emoção?
DOM PAULO
- Tive um privilégio que gostaria que todo mundo tivesse: estudei na universidade mais célebre naquela época, a Sorbonne de Paris, na França. Fiquei nela cinco anos, três para preparar o doutorado e 2 anos para escrever e defender minha tese. Quando saí da Sorbonne pensei que fosse ensinar. De fato ensinei durante três anos. Mas, quando me transferiram para Petrópolis, onde cheguei num sábado, no domingo de manhã me disseram: “O senhor vai para uma capela que atende a sete favelas”. Sete morros, como chamavam lá. Não podia chamar de favela porque ficavam ofendidos, eram morros. Quando cheguei fiquei tão impressionado com aquele povo, que eu subia os morros três
vezes por semana: quinta, sábado e domingo. Ficava com as crianças para ver se todas iam para a escola; para ver a saúde das pessoas; para ajudar a construir casas; para terem água encanada; para terem professores; e sobretudo uma vida mais humana. Fiquei lá dez anos e meio. Quando fui nomeado bispo para São Paulo saindo de lá, chorei e disse: “Nunca mais vou ser tão feliz como fui aqui”. Nunca assisti a uma briga. Bebiam nos jogos do Fla-Flu. Eu andava pelos morros durante os jogos para evitar que bebessem tanto. O único vício que tinham era a bebida, outra droga não existia.

REVISTA – Em sua longa experiência em favor dos marginalizados, dos excluídos da sociedade, o senhor vê saída? Existe alguma esperança para a situação desesperadora que vivem hoje milhares de pessoas, sem terra, sem emprego, sem esperança?
DOM PAULO
- Má distribuição da riqueza e falta de justiça social sempre existiram no Brasil. Desde a divisão do Brasil em capitanias, quer dizer, donos de grandes propriedades que as alugavam para outros, até hoje nunca houve justiça social no Brasil. Por isso devemos bater no peito e dizer: durante 500 anos fizemos os outros sofrerem e nós sofremos pouco. Quando vieram os imigrantes em 1828, os meus parentes por exemplo também foram presos num cercado de arame farpado. Eles embebedaram os policiais, cortaram o arame e fugiram para a montanha. Celebrei a missa dos 170 anos de imigração perto de Florianópolis, no lugar de onde fugiram e que se chamava Ilha do Desterro. De lá subiram até Teresópolis e para cima dos morros. Fui ver como todos sofreram naquele tempo. Hoje o povo está mais consciente do que não pode continuar. Se o governo não der um jeito, e se os ricos não se convencerem de que os operários devem ganhar mais e ter a sua remuneração ajustada às reais necessidades das famílias, então o povo brasileiro vai explodir. É preciso fazer justiça social agora, porque chegou a hora em que velhinhos e crianças, ambas as pontas da vida, reclamam contra aqueles que estão no centro, que somos nós.

REVISTA – E em relação aos sem-terra, como o senhor vê a situação deles?
DOM PAULO
- Digo que é um pecado que alguém no Brasil esteja sem terra. Estive no começo deste ano com o Presidente da República, e sentado ao seu lado na mesa disse para ele: “Onde o senhor falhou foi na divisão da terra”.

REVISTA - Na reforma agrária.
DOM PAULO
– Sim, na reforma agrária, porque o Brasil é um país agropecuário. E continuei falando ao Presidente: “É por isso que lutam pela terra. Eles têm razão. O senhor deve ajudá-los”. Ele me disse: “Vou aproveitar o último ano para fazer isso, com todo o coração e também com toda a generosidade”. Mas ele não fez.

REVISTA - E sobre o Movimento dos Sem Terra, o que o senhor acha?
DOM PAULO
- A igreja sempre apoiou e sempre vai apoiá-los, enquanto não houver justiça e melhor distribuição da terra.

REVISTA - A que o senhor atribui esse aumento alarmante da violência, principalmente nas grandes cidades? E qual é sua opinião sobre a questão: o ser humano é naturalmente violento ou é a sociedade que o faz assim?
DOM PAULO
- As duas coisas. São Paulo apóstolo diz que temos três partes: corpo, alma e espírito. Nosso corpo é animal, nossa alma é espiritual. Dentro de nós tem uma força divina que nos faz aspirar o bem e identificar o que é o mal. Qualquer selvagem, qualquer pessoa desenvolvida pode normalmente descobrir a violência dentro de si; pode evitá-la e pode também fazer com que ela tenha a sua explosão numa guerra, numa revolução ou matando pessoas, fazendo com que a sua natureza se volte mais para a destruição do que para o bem. Tenho certeza de que são ondas que passam pelo mundo, ondas de guerra, de paz, de violência, ondas de mais colaboração e de mais solidariedade. Tenho a certeza de que se houver emprego para todos, o que é uma obrigação, se houver terra e comida suficientes, além do respeito a todas as pessoas, isso tudo vai acabar. Vivi dez anos e meio em Petrópolis com gente muito pobre; mas eles tinham o que comer, o que vestir e como se defender da chuva e do frio. Afirmo que não houve uma só vez ondas de violência nos dez anos e meio de morros; e não vai haver se houver justiça social no Brasil. A justiça social é a base de toda a convivência humana.

REVISTA - Como o senhor se sentiu no ato ecumênico em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog em 1975? E qual é sua análise, depois de tantos anos, sobre aqueles dias que o Brasil viveu?
DOM PAULO
- Não foram os dias mais impressionantes da minha vida, mas foram certamente muito impressionantes. Às duas horas da tarde eu me preparava para ir para a catedral. O governador Paulo Egydio, que tinha recebido Geisel na sua casa, mandou dois emissários: o Chefe da Casa Civil e o Secretário da Fazenda, para me convencerem a não ir. Porque se eu fosse também seria culpado por todas as mortes que ocorressem na praça. Perguntei o porquê, e eles me disseram: “Porque a polícia está espalhada por todos os lugares e, a qualquer grito ou movimento, eles têm ordem para atirar”. Aí eu disse: “O povo não pode nem abrir a boca para gritar e vocês se arrogam o direito de matar? Vou acusar cada um que matar, porque em cada janela da praça nós colocamos fotógrafos e eles estão fotografando e filmando todo mundo. Quem atirar vai ser identificado e vou me responsabilizar para que ele receba o castigo justo. Quero que vocês transmitam isso ao Presidente da República e ao Governador do Estado”. Fui para a catedral cheio de indignação mas cheguei cheio de ternura para com o povo judeu e para com aquele judeu por quem celebraríamos um ato ecumênico. Foi o primeiro ato ecumênico importante celebrado na catedral de São Paulo. Antes havíamos celebrado a Santa Missa para um estudante morto, Alexandre Vanucchi Leme, que era católico praticante e tinha três tias freiras e um tio padre. No ato ecumênico fizemos tudo para que os judeus se sentissem à vontade. Na noite anterior cinco rabinos vieram a minha casa para me convencer a não fazer o ato ecumênico. Consegui convencer o Sobel a comparecer e contar uma história apropriada ao momento. Consegui convencer o Jaime Wright, um grande amigo presbiteriano, a falar também. Guardo esse momento para toda a minha vida.

REVISTA – Ainda sobre os judeus, como o senhor vê as acusações feitas à Igreja Católica de ter aceito, ou não ter se posicionado ante a perseguição nazista aos judeus? O senhor concorda que ela aconteceu realmente? Qual foi a posição do Vaticano na época? Enfim, o que o senhor pode nos dizer a respeito?
DOM PAULO
- O cristianismo muitas vezes falhou quanto aos judeus, baseado nos evangelhos que sempre mostram Jesus Cristo combatendo a hipocrisia dos fariseus e saduceus, que oprimiam o povo, arrancavam dele o dinheiro para satisfazer questões particulares, e para se mostrar e aparecer como os justos, os importantes. Então o povo cristão, desde a Bíblia até aos dias do nazismo, sempre fomentou uma certa aversão ao povo judeu como tal, embora em muitos lugares eles se entendessem e lutassem juntos. O hitlerismo foi o maior crime contra a humanidade.

REVISTA - O holocausto?
DOM PAULO
– Foi uma grande humilhação para a humanidade esse esforço de fazer desaparecer mais da metade dos judeus que existiam na Alemanha. Eu acho que foi o maior crime que se cometeu contra a humanidade, junto com o que estão cometendo agora a América do Norte e os povos do Oriente, uns derrubando as torres e matando três mil e os outros matando milhares de pessoas no Afeganistão. É uma guerra injusta, porque um crime não se vinga com outro crime. É o que os americanos fizeram e continuam imaginando que devam fazer. Está nos jornais de hoje que o presidente Bush ainda quer enfrentar os países do Oriente, porque acredita estar lá o ninho de todo o terrorismo. Não é verdade. Recebi embaixadas daqueles países na minha casa, me convidando para falar sobre a religião católica, sobre Jesus, sobre as comunidades de base, sobre os evangelhos; para falar justamente nesses países que a América do Norte persegue. Quanto ao Iraque, por exemplo, na igreja de Santo Antonio, da via Tuscolana, onde sou pároco em Roma, residiam quatro freiras, religiosas do Iraque. Elas me disseram: “Nunca fomos tão bem tratadas como sob esse regime daí”. Os americanos fazem com que o mundo inteiro odeie a todos, inclusive os que não são maus. Todos os povos são como nós, podem errar, podem se exaltar e podem ter uma ditadura; nós estamos numa democracia, mas também já tivemos ditaduras terríveis e piores do que as deles. Então não temos o direito de desmoralizar esses povos. Acho que devemos respeitar os judeus como nossos antepassados. Sempre digo: são os meus antepassados. Meu pai dizia a mesma coisa para mim: “Eles são nossos antepassados, porque eles nos legaram o Antigo Testamento, aí veio Jesus para fazer o
Novo Testamento”.

REVISTA – Como o senhor vê a atual política de Israel em relação aos palestinos?
DOM PAULO
- Ela é abominável! É realmente abominável fazer a vingança contra qualquer ato. Por outro lado, chegou o momento de os palestinos compreenderem que não é com violência que se vai dividir o país. O país tem que ser dividido em duas partes: uma judaica, outra palestina; e as duas partes têm que viver em paz, uma ao lado da outra e sem os Estados Unidos tomarem as iniciativas em lugar deles.

REVISTA - Dom Paulo, estamos a um passo das eleições no Brasil. O que o senhor espera do próximo governo?
DOM PAULO
- Apesar dos governos ditatoriais, Getúlio dominou durante 15 “breves” anos, como ele dizia; apesar de muita gente estar enganando e roubando o povo; apesar da passagem para uma democracia não muito segura; apesar de tudo isso, tenho a certeza de que o Brasil vai criar raízes fortes para o futuro; de que a nova geração vai poder dizer: “Quando éramos jovens havia violência. Agora chegou o tempo de todos nos favorecermos do trabalho em conjunto”.

REVISTA - Qual é sua expectativa em relação a um eventual governo Lula?
DOM PAULO
- Acho que o Lula pode fazer um bom governo, sem dúvida alguma. Não afirmo que vou votar nele. Não confesso e nunca digo o meu voto. Mas posso dizer que ele esteve na minha casa, sozinho, já sabendo que era candidato; e nós dois combinamos inteiramente em muitas ideias. Acho que tanto o candidato do governo, quanto o Lula são candidatos que podem levar o Brasil para a frente.

REVISTA - Como está a Igreja Católica hoje no Brasil e no mundo? O que o senhor acha do papel dos líderes religiosos carismáticos? O que é o movimento de renovação carismática? Existem, hoje, verdadeiros líderes carismáticos?
DOM PAULO
- Foi bom acrescentar a palavra “hoje”, porque São Paulo no capítulo 12 e 13 da epístola aos Coríntios fala dos carismas, e que os carismas são autênticos, quer dizer, existem verdadeiros carismáticos, pessoas que sabem convencer, que sabem curar. Minha mãe, por exemplo, era uma pessoa carismática. Não tínhamos médico na região e ela era sempre chamada quando alguém apresentava, por exemplo, uma inflamação nos pulmões ou qualquer coisa assim; ela era chamada, aproveitava todas as plantas que havia por lá e rezava junto, fazia com que todos tivessem confiança e esperança. Era uma líder popular. O líder é aquele que, além de saber usar os meios materiais, sabe também comunicar a esperança, do contrário não é um líder; é, quem sabe, um enganador do povo. O verdadeiro líder sabe realmente despertar uma força que é tão importante quanto qualquer remédio do mundo, e que também supere o efeito do próprio remédio.

REVISTA – O que o senhor acha do padre Marcelo Rossi?
DOM PAULO
- O padre Marcelo Rossi é um líder um pouco diferente dos outros. Ele tem uma liderança de fato, porque sem liderança ninguém reúne 30 a 50 mil pessoas. É bobagem negar sua liderança como padre, todo padre tem liderança. Agora, ele deveria levar o povo a tomar mais iniciativa, a ser o agente do próprio desenvolvimento. Ele deixa o povo se divertir muito dentro da parte religiosa. Acho que deveria fazer com que o povo tomasse a história na mão, como disse a Assembleia de Medellin, em 1968, e fosse para a frente; que a juventude que o segue soubesse que isso não deve durar só dois ou três anos, deve durar a vida inteira e dar um sentido novo à nossa existência.

REVISTA - Como o senhor vê a proliferação das igrejas evangélicas e suas atuais lideranças religiosas, principalmente as televisivas?
DOM PAULO
- Sou profundamente ecumênico, ou seja, sempre trabalhei com os protestantes, até um ramo da família da minha mãe é protestante e nos entendemos muito bem. Posso afirmar que o rabino Sobel é meu amigo; os presbiterianos são meus amigos; os metodistas me deram até o doutorado honoris causa de sua Universidade como recompensa pelo que fiz em favor deles. Acho que devemos nos unir no trabalho. Para tanto, três são os pontos fundamentais: o primeiro, nunca falar mal dos protestantes. O segundo é trabalhar junto com eles para o bem, por exemplo, das pessoas doentes, dos pobres, das crianças abandonadas etc. Tenho uma irmã, Zilda Arns, que trabalha ecumenicamente com todos. Muitas coordenadoras do seu trabalho – a hoje bem conhecida Pastoral da Criança - são de outras religiões, de outras crenças, e são tratadas do mesmo jeito e animadas da mesma forma. O terceiro ponto importante é o de manter um conceito elevado de todos aqueles que se fundamentam no Evangelho e procuram fazer bem ao povo. Quem não ama o povo não tem religiosidade verdadeira. Devemos dizer: “espera um pouco, vamos impedir isso sem violência; vamos denunciar os que exploram o povo e fazem com que muitos, por ingenuidade, entreguem dinheiro, bens, tantas coisas a esses pastores que lhes fazem um grande mal”. Fazem um grande bem aqueles que levam o povo a se unir em torno das boas causas.

REVISTA - Como o senhor vê a questão da aposentadoria, da velhice e do envelhecimento no Brasil? E a situação dos idosos brasileiros?
DOM PAULO
– Ainda hoje fui interrogado sobre isso: “Quanto o senhor ganha?” Eu disse: “Como bispo aposentado, paguei a Previdência durante 35 anos e estou ganhando em torno de 800 reais”. Naturalmente acho isso uma injustiça para quem escreveu mais de 50 livros e trabalhou dia e noite pelas crianças e pelos doentes, sem nunca pedir recompensa, e que sempre contribuiu para o caixa da nação. Mas tem outros ganhando três ou quatro vezes menos do que eu. Como eles vão viver? Como vão comprar remédios? Como vão se sustentar e manter uma certa dignidade para dizer: “O Brasil é a minha pátria”? Naturalmente todos gostamos que o Brasil faça um gol, ganhe a Copa, mesmo aqueles que ganham pouco. O idoso brasileiro ainda não recebeu da nação o respeito que merece. Mas em todo caso acho que o brasileiro não tem ainda o sentido do tempo; não descobriu a capacidade do idoso; não demonstra ainda o devido respeito por aquilo que foi feito, para o que pode fazer, para o que está fazendo ou que deve ainda fazer para a geração que vive agora e a que virá depois de nós. Ainda hoje, continuo a falar duas vezes por dia em rádio, a escrever introduções de livros e artigos, a visitar doentes, a celebrar todos os dias a Santa Missa. Ajudo a cuidar de 650 doentes pobres no Hospital Geriátrico do Jaçanã. O que se faz ainda não é o suficiente. O idoso precisa viver com dignidade e de maneira a poder dizer: “Valeu a pena trabalhar pelo Brasil”. É uma conclusão que todo idoso deveria poder tirar: “trabalhei pelo Brasil e valeu a pena, porque o Brasil reconhece o meu trabalho”.

REVISTA - Dom Paulo, o senhor fundou uma casa para religiosos aposentados e bem idosos? Como aconteceu?
DOM PAULO
- Não só fundei a casa, mas desde o primeiro dia de meu governo pensei nos padres que não guardaram dinheiro para o futuro, nem recolheram para a aposentadoria. Tive a idéia de construir uma casa para eles. Um dia ganhei 250 mil reais, quando ajudei a salvar a vida de uma pessoa. Então alguém da família, por gratidão, me deu esse dinheiro, porque era muito rica e dona de muitos imóveis. Com o dinheiro pensei: “Chegou a hora”. Quando o projeto estava pronto, perguntei ao arquiteto: “Quanto o senhor acha que vai custar essa casa, bem mobiliada e onde todos os padres possam ter um enfermeiro ou enfermeira e viver com tranquilidade?” Ele disse: “Talvez um milhão de dólares”. Eu disse: “Não tenho nem um dólar”. Três semanas depois ajudei a salvar a vida de uma pessoa que todos vocês conhecem.

REVISTA – O Senhor pode nos dizer quem?
DOM PAULO – O dono do “Pão de Açúcar”.
REVISTA - Ah, o Abílio Diniz? Naquele sequestro...?
DOM PAULO
– Sim. Ele mesmo não deu nada. O pai dele, Valentim, era meu grande amigo, veio à minha casa, me abraçou chorando porque eu tinha salvo a vida do filho dele, e disse: “Tem alguma coisa que o senhor está construindo e para isso precise de dinheiro?” Eu respondi: “Estou sonhando a vida inteira em construir uma casa para os padres idosos que não guardaram dinheiro para o futuro; nunca exigiram nada dos outros e trabalharam de graça a vida inteira. Quero fazer uma casa para eles”. Aí ele disse: “Então vou dar uns 200 mil dólares para o senhor”. Com isso fiz a fundação e o primeiro andar. Depois pedi aos bispos da Alemanha, da Inglaterra, da Holanda, e a pessoas amigas de uma porção de países. Todos me ajudaram e terminamos a casa sem deixar dívida. Ela está funcionando hoje para padres idosos e para professores de novos padres, que também ensinam de graça, ou ganhando o mínimo. Vivem juntos nela duas gerações, a dos padres que se formaram há pouco em Roma, na Bélgica, nos Estados Unidos ou em outros lugares, e que são os professores dos futuros padres, e os velhinhos. Esses padres idosos e aposentados vivem juntos com padres mais jovens para não ficarem só na tristeza e nas lembranças do passado, para que recebam também notícias e ideias novas, civilidade, cidadania, etc...

REVISTA - Onde fica a casa?
DOM PAULO
- A casa chama-se “Casa São Paulo” e fica na rua Xavier de Almeida, bairro do Ipiranga, na cidade de São Paulo, ao lado do seminário maior, que ensina teologia e forma os padres. Os últimos sete anos os futuros padres passam estudando naquele seminário. Os professores que não têm moradia fora moram na Casa São Paulo junto com os padres antigos, ocupando o último andar. Agora a casa já possui elevador. Os velhinhos moram no primeiro, segundo e terceiro andares.

REVISTA - Já que estamos falando sobre padres, como o senhor vê a questão do celibato? Ele deve ser obrigatório?
DOM PAULO
- Sou contra a obrigatoriedade. Sou a favor de um celibato opcional. Eu, por exemplo, nunca desejei me casar, porque acho que quem casa precisa cuidar da família, e a minha família é o povo. Passo o dia inteiro fora, estou sempre andando. Enquanto fui bispo, durante 32 anos, precisava estar inteiramente livre para o povo. Como padre ia para os morros etc, e também não podia cuidar de família. Então minha família sempre foi realmente o povão, sobretudo as crianças e os doentes. Aos domingos, quando padre, ia para o hospital visitar as enfermarias onde estavam os doentes pobres. No Hospital Santa Catarina diziam: “Dá para marcar no relógio quando chega o frei Evaristo” (meu nome religioso). Depois quando fiquei bispo adotei de novo o meu nome de batismo, Paulo, antes de Evaristo. Então quando eu passava pelos quartos dos doentes pobres, todos eles gritavam: “Frei Evaristo, olha aqui, eu também estou doente”.

REVISTA – Dom Paulo, então quanto ao celibato o senhor é favorável a que a decisão seja dos padres? Acha que isso ainda pode acontecer na Igreja Católica?
DOM PAULO
- Até o ano 1000 era assim, então acho que é possível de novo. O atual papa não quer que a gente discuta esse ponto. Ele é polonês, é firme, quer as coisas assim como elas são, não quer mudar. No entanto, pode chegar um novo papa e reintroduzir o opcional que existiu até o ano 1000.

REVISTA – Na sua opinião, a onda de denúncias de perversidades sexuais com crianças, pedofilia, realizadas por padres, é procedente? Seriam esses procedimentos decorrentes de uma sexualidade reprimida, de proibições, do celibato?
DOM PAULO
- Pensei muito sobre isso, porque antes de ser bispo vivi a vida inteira formando padres. Analisei muito este assunto e posso dizer que a investigação feita pelo jornal A Folha de São Paulo dá conta que 91% das crianças sofrem mais na família do que fora dela. A família é que precisa se renovar e nós podemos ajudar a proporcionar outro ambiente psicológico para a mãe não ficar tão nervosa, para o pai não abusar da criança, para o irmão mais velho não agredir a irmã mais nova e assim por diante. Acho que há muito mais violência dentro de casa do que dentro da igreja. A imprensa aproveitou a questão da pedofilia, que é manchete, para explorar o tema dentro da Igreja. Olhei em dois dicionários e observei uma coisa muito curiosa: o primeiro é um dicionário comum que todo mundo consulta, e diz que pedofilia é amor à criança; o outro dicionário, publicado agora e bem mais grosso, diz que pedofilia é ato sexual com a criança. Veja, a própria mentalidade dos cientistas mudou. Devemos afirmar que pedofilia é amor a uma criança pobre para que ela possa se desenvolver, se realizar na vida, isto sim. Abusar sexualmente de uma criança é a coisa mais abominável que existe, e tem que ser abolida de qualquer jeito. Os padres sempre vão ser humanos, e, como tais, pecadores comuns. Tive a sorte de poder trabalhar com crianças, gostar de todas ao mesmo tempo e sempre trabalhar muito, de maneira que nunca tive esse tipo de tentação. Espero que essa onda atual também passe, pois são tão poucos os padres que caem nessa tentação, comparados aos 400 mil sacerdotes que existem no mundo, e que são firmes, trabalhando e se dedicando ao bem do povo com muito amor, e amor autêntico.

REVISTA - Voltando à questão dos idosos, o senhor acha que a fé, a oração, a religiosidade enfim ajudam na velhice a se ter uma relação melhor com a morte?
DOM PAULO
- De fato senti isso na minha própria vida. Quando mais moço, nunca tinha pensado propriamente na morte. Sofri vários desastres, onde quebrei a perna, o pé, machuquei muito a cabeça, perdi parte do ouvido, parte da vista etc. Mesmo assim nunca pensei na morte, que era para mim uma coisa distante. Hoje eu penso muitas vezes nela. Penso com amor, que essas coisas incômodas da Terra vão acabar, que não posso mais fazer tudo como gostaria de fazer. Por exemplo, escrevi mais de 50 livros, mas é difícil escrever agora um livro que seja original, que satisfaça totalmente. Mesmo escrevendo todos os dias, falando duas vezes por dia em rádio, sinto que não sou mais o mesmo. Então chega um momento em que a gente pensa: “Tá bom Deus, já chega. Pode me chamar, porque lá em cima é muito melhor do que aqui”. João XXIII dizia: “Os meus amigos na eternidade estão dizendo: ‘Venha Joãozinho, aqui está muito mais bonito do que aí embaixo’”.

REVISTA - Dom Paulo, o senhor falou em crianças, adolescentes, adultos e idosos. Como o senhor vê o relacionamento entre as gerações? Existe ou não conflitos?
DOM PAULO
- Acho que este é um tema muito sério e que não está sendo tratado com a devida profundidade pelos psicólogos, psiquiatras e pedagogos. Hoje não só as gerações não se entendem, também as pessoas em geral não estão se entendendo, cada pessoa está cuidando apenas de si. Lá no Hospital do Jaçanã, onde ajudo a cuidar dos 650 velhinhos, por exemplo, perguntei no dia de Natal: “Quem de vocês recebeu visita de parentes neste ano?” Dez apenas levantaram o braço. Então concluo que tem alguma coisa errada. Preciso trabalhar e fazer alguma coisa nesse sentido.

REVISTA – Apenas dez! É impressionante!
DOM PAULO
- É impressionante acontecer isso num bairro, que fica a apenas 15 km do centro da cidade de São Paulo. Hoje descobri mais um lugar que posso conhecer e ajudar alguns velhinhos, uma dúzia de velhinhos. Vou visitar para ver o que fazem para sobreviver, porque é uma casa nova que está se abrindo. Existe, portanto, uma certa preocupação da sociedade em cuidar dos velhinhos, mas ainda é muito pouco. O que elogio e acho muito bonito são as iniciativas e trabalhos de algumas organizações em favor dos idosos. A propósito, o SESC faz um trabalho lindo. Já tive a oportunidade de falar para um grupo de idosos do SESC. Fiquei entusiasmado, eles têm ocupação durante todo o dia, podem se encontrar, se divertir, se tratar etc. É melhor ainda quando podemos ajudar as pessoas de idade avançada a descobrir e fazer aquilo que elas ainda podem fazer em benefício de outras pessoas.

REVISTA - O SESC tem incentivado o trabalho voluntário de idosos para com outros idosos e com crianças...
DOM PAULO
– Acho esse trabalho de fundamental importância. Durante muito tempo guardei todo o dinheiro que sobrava para criar no futuro uma instituição de velhinhos ao lado ou perto de uma instituição para crianças. Isso para que os velhinhos pudessem estar com elas e dizer: “Este é meu afilhado, este é meu filho adotivo, etc”.

REVISTA - Uma aproximação de gerações...?
DOM PAULO
– Sim, a aproximação de gerações é muito importante; é gratificante fazer isso, e fazer com muita dignidade, com muita seriedade, para que o velhinho ajude de fato a criança a progredir na existência.

REVISTA - E o seu lazer, Dom Paulo?
DOM PAULO
- O lazer que me satisfaz é a leitura.

REVISTA - Que tipo de leitura?
DOM PAULO
- Leio em alemão, em inglês, em espanhol, em latim ou em francês como leio em português. Quando tenho um tempo livre, vou para os livros que tenho amontoados para ler; leio ainda as revistas que ganho da Alemanha, da Inglaterra, da França, que recebia no tempo em que estudei lá, da Espanha, da Itália... porque tive a sorte de conhecer todas essas línguas.

REVISTA - Que tipo de leitura o senhor prefere, clássicos, literatura, ficção?
DOM PAULO
- Gostava muito de ficção quando era jovem, li muita ficção em diversas línguas e foi assim que aprendi as línguas. Hoje gosto mais de reflexão sobre temas atuais. Sempre estou lendo três ou quatro livros ao mesmo tempo, além das revistas. Infelizmente elas estão se amontoando, por causa da agenda apertada. Mas, consigo reservar um dia inteiro por semana para ler. Saio Domingo, após a missa da manhã e vou para um lugar onde ninguém me distraia e onde não tenha telefone. Aí passo o dia todo lendo, tomando notas, fazendo fichas etc. Acho que a gente não deve ler só por prazer, mas também para ter sempre um material novo e uma nova motivação para viver e ver diferentemente as coisas.

REVISTA - Encerrando a nossa conversa e já que estamos em clima de Copa do Mundo, o senhor gosta de futebol?
DOM PAULO
- Ah, sou corintiano até o fundo da alma! Enquanto estive no Rio era Flamengo, porque os meus sete morros, as sete favelas eram flamenguistas. E era flamenguista também para ajudar aquele povo a não beber muito. No próximo domingo eu torço pelo Brasil contra a Alemanha.

REVISTA - Qual é o seu palpite para o jogo de Brasil e Alemanha?
DOM PAULO
- Acho que a Alemanha não aguenta o Brasil; seus jogadores são muito lentos. A nossa seleção, se tiver entusiasmo, essa é uma condição: não tem alemão que segure um brasileiro!

REVISTA - O senhor arrisca um palpite?
DOM PAULO
- Dois a zero para o Brasil, no mínimo, se o nosso pessoal acordar direito. Eles não podem jogar lento, porque senão farão o jogo dos outros; os alemães são lentos, mas organizados e com uma boa defesa, então para ganhar é preciso ser rápido. Nós temos um bom ataque. (Obs.: Esta entrevista foi realizada 3 dias antes do jogo final da Copa entre Brasil e Alemanha. O resultado de 2X0 deu ao Brasil o título de penta campeão mundial de futebol, no dia 30/06/2002).

REVISTA – O senhor gostaria de fazer mais algum comentário?
DOM PAULO
- Fico muito grato ao SESC, que está fazendo um trabalho muito bom. Gostei demais dos artigos das revistas do SESC, com que fui presenteado.