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Segurança e Violência
Entre os problemas que afligem o cidadão, a violência é um dos mais recorrentes. Desvendar suas causas e, principalmente, como combatê-la, é a questão debatida por especialistas neste Em Pauta - 500 anos
Paulo de Mesquita Neto
é do Instituto São Paulo contra a Violência
e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP
No Brasil, desde a transição para a democracia na década de 1980, a violência política diminuiu. Mas a violência decorrente de conflitos coletivos e a violência interpessoal aumentaram, particularmente a fatal, que afeta de forma cada vez mais dramática a segurança dos cidadãos e a qualidade de vida da população.
As estatísticas do Ministério da Saúde mostram que o número de mortes resultantes de homicídio ou agressão aumentou no país de 13.910 em 1980 para 41.916 em 1998 (+201,3%). A taxa de homicídio passou de 11,7 para cada 100 mil habitantes em 1980 para 25,9 em 1998 (+121,4%). A porcentagem de mortes resultantes de agressão em relação ao número total de mortes violentas aumentou de 19,8% para 35,6%. Além disso, o número de homicídios cometidos com arma de fogo também aumentou; essa porcentagem em relação ao número total aumentou de 43,6% em 1980 para 59,0% em 1996.
Nas áreas rurais, o problema da violência decorre em parte da intensificação dos conflitos pela posse da terra entre proprietários rurais, trabalhadores sem terra, garimpeiros e grupos indígenas. Mas o problema é agravado pela virtual ausência de meios legais e pacíficos de resolução desses conflitos em determinadas regiões e pela intervenção de seguranças privados contratados por proprietários rurais, forças policiais e forças armadas despreparadas para lidar com conflitos coletivos.
A maioria das vítimas da violência, entretanto, concentra-se nas áreas urbanas, particularmente nas grandes cidades e regiões metropolitanas. A migração interna e a especulação imobiliária levaram grandes contingentes populacionais para as regiões periféricas das grandes cidades e regiões metropolitanas, onde são precárias as condições de habitação e infra-estrutura urbana e os serviços básicos nas áreas da saúde, educação, assistência social, segurança e justiça. Nessas áreas, muitas vezes a organização da sociedade civil é incipiente e as instituições e práticas para a resolução de conflitos por meios legais e pacíficos estão ausentes. O problema da ilegalidade e da violência é agravado pela presença do crime organizado, particularmente aquele associado ao tráfico de drogas e de armas, e pela persistência da violência e da corrupção policial.
Nas doze regiões metropolitanas do país, o número de mortes resultantes de homicídio aumentou de 6.552 em 1980 para 23.770 em 1998 (+262,8%). Em 1998, as doze regiões metropolitanas concentraram 56,7% do número total de homicídios no país, ainda que sua população representasse 36,7% da população brasileira.
As duas maiores regiões metropolitanas, São Paulo e Rio de Janeiro, registraram 15.896 homicídios ou 37,9% do número total no país. As duas maiores cidades, São Paulo e Rio de Janeiro, registraram 8.826 homicídios ou 21% do número total no país.
Nas grandes cidades e regiões metropolitanas, o risco de violência, assim como a riqueza, é distribuído desigualmente e a população pobre da periferia é a maior vítima. Em 1999, a taxa de homicídio na cidade de São Paulo foi de 4,11/100.000 em Moema (região central) mas atingiu 116,23/100.000 no Jardim Ângela (região sul). Naquele mesmo ano, a taxa de homicídio chegou a 149,76/100.000 em Diadema, na região metropolitana de São Paulo, a mesma cidade que foi sede dos episódios de violência policial na Favela Naval em 1997.
Contrastes semelhantes são registrados em outras grandes cidades e regiões metropolitanas, incluindo Rio de Janeiro, Vitória e Recife, que atualmente registram as mais altas taxas de homicídios do país.
Particularmente preocupante é o aumento da vitimização da população jovem, sem formação profissional e sem perspectiva de emprego. No estado do Rio de Janeiro, a taxa de homicídio da população de 15 a 17 anos aumentou de 15,2/100.000 em 1980-1984 para 55,5/100.000 em 1990-1995 (+265%). Na faixa dos 18 aos 21 anos, a taxa de homicídio aumentou de 38,4/100.000 para 99,0/100.000 (+157%). No estado de São Paulo, no mesmo período, a taxa de homicídio aumentou de 18,3 para 38,3/100.000 na faixa dos 15 aos 17 anos (+109%) e de 38,3 para 73,3/100.000 na faixa dos 18 aos 21 anos (91%) (dados de Iolanda Catão et al., Mortes violentas: Um panorama dos homicídios no Brasil, Rio de Janeiro, IBGE, 1999).
Há grande discussão entre especialistas e entre políticos sobre as causas do aumento da violência, principalmente da fatal, e sobre a melhor forma de resolver a questão. Entretanto, as estatísticas disponíveis deixam claro que será impossível resolver o problema sem que os representantes da sociedade civil e do governo articulem esforços para formulação e implementação de políticas de controle e prevenção da violência focalizando prioritariamente a fatal, que atinge a população jovem moradora da periferia das grandes cidades e regiões metropolitanas.
Wânia Pasinato Izumino
é socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP
Os anos 1990 foram marcados pela explosão do fenômeno e da percepção pública da violência urbana. A mídia - impressa e eletrônica - tem demonstrado grande interesse pelo assunto, mas entendendo a violência como apenas e tão-somente criminal. São denúncias, cobranças e explicações, mas é, também, a busca de alternativas para sua diminuição.
A violência é um tema amplo, que permite várias abordagens. Ela pode se manifestar de formas diferentes: física (homicídios, agressões, estupros), patrimonial (furtos e roubos), simbólica (discriminação racial, sexual, social, política ou econômica), privação de direitos (desigualdade social, falta de qualidade de vida, dificuldades de acesso às instituições). A violência urbana congrega essas diferentes facetas e as agrava na medida em que o espaço público das grandes cidades se degrada. Nessas, embora a sensação de medo seja generalizada, os crimes e as privações distribuem-se de forma desigual: a possibilidade de uma pessoa ser vítima de homicídio é muito maior num bairro das zonas periféricas do que das zonas centrais. Em oposição, os crimes contra o patrimônio - roubos e furtos - ocorrem preferencialmente em bairros mais centrais.
Entre os pesquisadores que se dedicam à questão, há a noção de violência como violação dos direitos humanos: cerceamento da liberdade e das garantias constitucionais. Qualquer discussão na área deve levar em conta o conjunto de direitos de cidadania e as questões éticas na administração pública. Por isso, não é possível falar de direitos humanos de forma fragmentária (direitos como sendo exclusivos de determinados grupos sociais), nem de políticas públicas pontuais (mais policiais nas ruas, diminuição da imputabilidade de jovens, aumento de penas). No debate, é fundamental enfatizar que a democracia é condição essencial para a realização e a satisfação das necessidades e dos direitos das pessoas, em todos os aspectos da vida. A democracia é o regime político que se fundamenta no princípio segundo o qual o indivíduo deve ser considerado titular de direitos. O poder do Estado decorre da sua capacidade de controlar as fontes de violência e os conflitos existentes na sociedade. Esse poder não é ilimitado; ao contrário, o exercício do poder demanda a existência de controles democráticos políticos, institucionais ou sociais.
Portanto, as propostas de solução do problema devem levar em conta que não é o aumento do poder do Estado sobre a sociedade e muito menos a ampliação de políticas repressivas que resolverão o problema da violência. É preciso repensar as bases das políticas públicas para as áreas urbanas, ampliar e consolidar a participação popular e recuperar a qualidade de vida dos cidadãos. É preciso reconhecer que a solução não é meramente institucional ou técnica, mas envolve o reconhecimento de que mesmo as questões do âmbito jurídico passam por determinações políticas. O respeito aos princípios básicos dos Direitos Humanos deve ser a razão de ser das políticas públicas e, nesse sentido, devemos ser intolerantes em relação às desigualdades sociais, ao desemprego, ao salário mínimo, às políticas de restrição de direitos adquiridos, à violência policial, à corrupção, ao uso privado dos recursos públicos e ao abandono de nossas cidades. Em suma, devemos repensar a sociedade que queremos legar para as gerações futuras.
Flávia Piovesan
é professora doutora da Faculdade de Direito da PUC/SP e procuradora do estado de São Paulo
De acordo com recentes pesquisas de opinião pública, dentre os temas que mais preocupam os brasileiros destacam-se a segurança pública e o desemprego, em posição de liderança.
A essa estatística devem ser lançadas duas questões: Qual é a segurança pública que queremos? E, sobretudo, qual é a segurança pública que não queremos?
O tema da segurança pública é disciplinado pela Constituição Brasileira de 1988, que, em seu artigo 144, dispõe ser a segurança pública dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Para o exercício dessa função, a Constituição estabelece os órgãos da polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícia civil, polícia militar e corpo de bombeiros militares.
Considerando que a Carta de 1988 é o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos em nosso país, há que se ressaltar que a segurança pública, como dever do Estado e direito do cidadão, é temática a ser compreendida à luz do Estado Democrático de Direito constitucionalmente consagrado. Um dos maiores desafios ao tema de segurança pública é justamente concebê-lo sob a perspectiva inovadora, humanista e democrática que se impõe a partir da transição político-democrática no país - transição celebrada juridicamente com o texto constitucional de 1988.
Isto é, se o aparato de segurança pública ao longo do regime militar ditatorial, que perdurou no país por 21 anos, de 1964 a 1985, era orientado fundamentalmente para a defesa da lei e da ordem e para o combate ao inimigo, mediante perseguições de natureza político-ideológica, é necessário romper em definitivo com esse legado autoritário e introjetar a lógica e os valores do Estado Democrático de Direito. Pela lógica democrática consagrada na Constituição, a segurança pública é dever do Estado, é política pública a ser por ele prestada, a qual correspondem direitos fundamentais do cidadão.
Nesse sentido, é fundamental que à atividade de repressão policial sejam conjugadas atividades de prevenção, que tenham como fonte a legalidade democrática. A política de segurança não pode ser confinada tão-somente à atividade de repressão, na medida em que está condicionada ao grau de investimentos sociais, em áreas como educação, saúde, trabalho, cultura, esporte e lazer. Há uma estreita relação entre as ações voltadas à melhoria da qualidade de vida e a redução da criminalidade mais grave.
Ao combinar a ótica repressiva e preventiva, há que se estabelecer uma polícia democrática, integrada com a comunidade, sob o controle do poder civil, que respeite toda e qualquer pessoa, independentemente de sua raça, etnia, gênero, idade ou classe social. Há que se romper com o legado autoritário, para que a polícia se veja como prestadora de um relevante serviço público, de que é credor o cidadão. À eficiência policial no combate à impunidade, há de se conciliar o absoluto respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais.
Em suma, é urgente que o processo de democratização alcance de maneira densa e profunda a estrutura do aparato de segurança pública, a fim de que se tenha uma polícia pautada na eficiência e na defesa intransigente dos valores democráticos, que têm na pessoa humana a fonte e o sentido de sua existência.
Benedito Domingos Mariano
é ouvidor da Polícia de SP e secretário-geral do Fórum Interamericano de Direitos Humanos
Nas eleições para prefeituras deste ano, o tema segurança pública está na agenda do debate, principalmente nas capitais e nas cidades com mais de 200 mil habitantes. Em qualquer pesquisa de opinião pública, o tema está entre as três principais preocupações da população. Talvez por isso, muitos candidatos centraram suas campanhas ao governo municipal nessa questão, transmitindo à população atribuições gerais de poder de polícia às guardas municipais (no caso de São Paulo, a Guarda Civil Metropolitana), o que se não beira o absurdo, sinaliza uma vertente demagógica.
Do Império à República, a segurança pública nos estados coube a duas polícias. Uma judiciária e investigativa (hoje polícia civil) e outra preventiva e ostensiva (polícia militar, que teve origem em várias forças militares estaduais). A Constituição Democrática de 1988 manteve a dualidade na atividade policial nos estados e não estabeleceu possibilidade das guardas municipais exercerem funções de polícia strictu sensu. O artigo 144, § 8º, da Constituição Federal, estabelece que "os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei". Não será, portanto, no âmbito dos municípios que se dará o enfrentamento dos problemas relacionados à criminalidade.
O que é necessário e urgente é mudar as estruturas das atuais polícias estaduais. O modelo de polícia que temos se esgotou e demonstra ser ineficiente para coibir e inibir o crime. É imperativo criar um novo modelo de polícia no Brasil, criando uma polícia estadual de caráter civil, inspirada na investigação científica e no ideal permanente de defesa dos valores democráticos, com poucos graus hierárquicos, com uma única escola de formação, com bons salários, com uma corregedoria fortalecida, independente e autônoma da direção da polícia, comunitária, e que tenha como objetivo central a prevenção, ou seja, atuar antes do crime e não depois.
Quanto às guardas municipais, que têm atribuições limitadas na Constituição, talvez pudessem ter poder de polícia para atuar especificamente na segurança escolar, como prevê a proposta de emenda constitucional do Fórum Nacional de Ouvidores de Polícia. Garantir segurança nos locais próximos das escolas municipais já seria uma enorme contribuição dos municípios ao grave problema da violência e criminalidade.
No mundo inteiro, apenas uma polícia realiza todas as suas funções. No Brasil, grande parte da ineficiência policial reside na dualidade da sua atividade. Não será com três polícias que a situação irá melhorar.
Luiza Nagib Eluf
é procuradora de justiça de São Paulo e autora do livro Crimes contra os costumes e assédio sexual
O problema mais sério das grandes cidades brasileiras não é a violência, como pode parecer. Mais grave do que conviver com criminosos de todos os calibres em todos os lugares é constatar o grau de alienação de nossa sociedade e a forma descompromissada com que todos os nossos infortúnios são encarados.
Foi em decorrência da não participação da população na condução das políticas públicas que acabamos por construir cidades inóspitas, sangrentas, assustadoras. Cidades nas quais não há lugar seguro.
É certo que nossa sociedade nunca se organizou adequadamente para reivindicar cidadania porque passamos por intermitentes períodos de ditadura, durante os quais as reuniões ficaram proibidas, a circulação de idéias foi severamente reprimida e a população ficou sem voz, sem direitos, sem ação. Criou-se um sentimento, que impera até hoje, de não-identificação do povo com os seus governantes. Os brasileiros assumiram uma postura alienada diante dos problemas da nação porque não conseguiram mais perceber-se como conjunto de pessoas de uma mesma comunidade, que deveriam enfrentar juntas suas dificuldades. Em todas as classes sociais, o dinheiro passou a ser o único valor reconhecido e, para obtê-lo, qualquer coisa deveria ser feita, inclusive roubar e matar.
Além disso, essa não-identificação da população com seus governantes leva à negação do Estado e da cidadania, ao abandono de um projeto comum e à vergonha de pertencer a determinado grupo social.
Daí porque a corrupção dos governantes e a impunidade que a acompanha, somada à paralisia do povo, podem ser consideradas primordiais fatores geradores de violência. Não apenas pelo mau exemplo, mas também porque os recursos que são reiteradamente subtraídos dos cofres públicos estão deixando de chegar à população em áreas de extrema importância, como saúde, educação, habitação, segurança pública, justiça. A sociedade, por estar ainda desmobilizada, não consegue exigir eficiência do Estado e sofre calada de uma revolta que explode de formas imprevisíveis e indesejáveis.
A polícia, que deveria ser bem treinada, suficientemente equipada, saneada e valorizada, ao contrário, vem sendo relegada a segundo plano, assim como todo o restante do funcionalismo público. Da mesma forma, o Ministério Público e o Poder Judiciário vêm sendo alvos de campanhas pejorativas, no claro intuito de enfraquecer os encarregados de zelar pelo Estado de Direito, pela Democracia e pela Justiça.
Com tudo isso, como reprimir eficazmente os criminosos que assaltam, seqüestram e matam nas esquinas? Sem que os administradores públicos ajam honestamente, sem que o Estado funcione a contento, prestando os serviços essenciais com eficiência, sem que a sociedade brasileira construa uma identidade própria e possa ter alguma coisa de que se orgulhar, não se poderá combater a criminalidade e chegar à paz social.