Postado em
Capa
Contraste Urbano
por Domingos Leoncio Pereira e André Rosembergpor André Sant'Anna e Maurício Moreira
No extremo sul da capital paulista, região que será declarada Área de Proteção Ambiental, cerca de 50 mil pessoas convivem com graves problemas de infra-estrutura, mas têm à sua volta uma natureza exuberante
Pontualmente às oito da manhã, Sebastião Carmo Silva, munido de microfone e fone de ouvido, acena para o operador de som da rádio comunitária Associação Comunitária Habitacional Vargem Grande (Achave). É a deixa para o rapaz soltar a vinheta improvisada que marca o início do programa sobre meio ambiente. Em duas horas, o locutor discorre sobre os principais problemas que concernem ao desmatamento, à qualidade da água e aos cuidados sobre a preservação da fauna e da flora.
Além de locutor, Sebastião exerce a presidência da Achave, a associação formada pelos cooperados que habitam a "Cratera", nome muito adequado para o bairro de Vargem Grande, distante 5 quilômetros de Parelheiros (extremo sul de São Paulo), 55 quilômetros da Praça da Sé e porta de entrada da Área de Preservação Ambiental (APA) Capivari-Monos (ver box). Os 35 mil moradores do bairro ergueram suas casas sobre o buraco formado pela queda de um meteorito há cerca de 20 milhões de anos. Na enorme baixada de 2,932 milhões de metros quadrados surgida após o acidente espacial, os problemas se multiplicam e as soluções passam ao largo da atuação oficial. Como em quase todo o extremo sul da capital paulista, as carências são enormes e a nota paradoxal fica por conta de um capricho da natureza: toda a região que se estende de Vargem Grande até a divisa sul da cidade com os municípios de Itanhaem e São Vicente está envolta por uma densa faixa de floresta, constituindo um contraste surpreendente com o processo desordenado de ocupação.
Somados todos os núcleos populacionais que residem dentro dos limites da APA, são 50 mil pessoas que convivem diariamente com as mazelas próprias da pobreza e de uma cidade mal administrada. Além disso, o fato inusitado é a proximidade de uma realidade ambiental singular, que guarda, a poucos metros das casas sem serviço de água encanada e rede de esgoto, espécies endêmicas (existentes apenas na região), como a palmeira Lytocaryum hoehnei, e animais ameaçados de extinção, como a onça parda, a anta e os macacos monocarvoeiros.
Sertão urbano
"Até 1992, eu achava que meio ambiente era coisa de comer", confessa Sebastião Carmo Silva. "Naquela época, recebemos a visita de biólogos e profissionais de educação que nos ensinaram a importância de preservar o verde, de não espalhar o lixo, de não caçar e não pescar." Hoje, essas noções são importantes como um fator positivo na conduta dos habitantes de Vargem Grande na luta para legalizar a área de ocupação declaradamente ilegal. "Não somos grileiros, compramos essas terras em 1987. Sabemos da nossa condição de ilegalidade, mas a Lei de Proteção aos Mananciais, que determina um tamanho mínimo de 20 mil metros quadrados para cada lote, é insuficiente, pois não prevê uma política habitacional decente e forçou a população buscar abrigo em qualquer lugar."
Vivendo à margem da ajuda oficial, sobre ruas de terra e de barro, o trabalho de conscientização ambiental é uma alternativa para elevar a dignidade de vida e a auto-estima. Nesse sentido, Sebastião cita as crianças, que cada vez mais percebem a necessidade da preservação. "É para elas que eu falo em meu programa, pois com a cabeça mais fresca elas podem ensinar os pais."
A um quilômetro e meio ao sul de Vargem Grande encontra-se o bairro de Colônia, um núcleo urbano com 176 anos. A história da ocupação remonta ao Império, quando a Imperatriz Leopoldina, condoída com a situação de penúria dos conterrâneos austríacos, convidou 94 famílias da Áustria, da Suíça e da Alemanha para fincarem raízes ao sul de São Paulo. Infelizmente, o projeto migratório malogrou: o poder público que havia prometido assegurar a infra-estrutura básica para a sobrevivência dos estrangeiros deixou-os à míngua em apenas quatro meses. No isolamento completo do então sertão de Santo Amaro, muitas famílias abandonaram o local para se estabelecer no centro da cidade. Hoje, apesar dos pesares, ainda restam dezesseis famílias de origem alemã que mantêm um relacionamento atávico com a região sul.
Mário Reimberg Christe, o Marinho, tem 46 anos e faz parte da quarta geração dos imigrantes pioneiros. Ele se tornou uma espécie de repositório das tradições alemães. É ele quem conta a história pormenorizada dos ancestrais, guarda mapas e documentos antigos, além de recordar, não sem alguma nostalgia, o tempo em que no Colônia havia apenas sítios. "Era uma vida tranqüila, sem luxos. Havia muito respeito com o meio ambiente, pois os europeus sabiam a importância de preservar a fauna e a flora como uma questão própria de sobrevivência. A água, os rios e as nascentes eram especialmente protegidos. Era uma relação muito especial."
O meio ambiente e a comunidade
O relacionamento entre os moradores inseridos na APA com o meio ambiente é complexo. Em muitos casos, foi necessário subverter um hábito de vida de vários anos para se adaptar às determinações legais. Muitas nascentes e minas que servem as represas Billings e Guarapiranga e que, portanto, abastecem de água a cidade de São Paulo, jorram naquela região. Porém, mesmo diante dessa situação particular, grande parte daquela área não recebe água encanada, nem esgoto. O abastecimento e o saneamento, portanto, é improvisado por meio do binômio poço-fossa, muitas vezes instalados sem atender os padrões básicos de higiene.
Nesse caso, além de providenciar noções primeiras de saneamento, os programas de educação ambiental devem fornecer subsídios para que os moradores encontrem alternativas de sobrevivência que se coadunem com a lei. O caso das agricultoras Rosemari Duarte Gaspar Roschel e Eva Schunck Roschel, cujas chácaras ficam no bairro do Gramado, em São Paulo, é exemplar. Rosemari, que mora na região há trinta anos, tinha uma fábrica de blocos, fechada por prejudicar o meio ambiente. Hoje, ela busca sustento plantando shitake. "Nós não somos contra a natureza. Ao contrário, adoramos o privilégio de morar em contato com a mata, mas somos impedidas de mexer em nossa propriedade. Por isso, pedimos uma contrapartida do governo."
Eva, cunhada de Rosemari, nasceu no Gramado. Seu avô ergueu a primeira casa do bairro, no fim do século passado. "Sinto que a consciência está maior. As pessoas sabem que não devem caçar, nem pescar, nem arrancar as plantas." Com isso, os animais que andavam arredios à presença humana deixaram as brenhas da mata e se aproximaram das pessoas. "Voltou a ser comum ver os tucanos, as raposas e as capivaras rodeando nossa casa", constata Eva.
Emprego e lixo são os principais problemas apontados pelos adolescentes de Barragem. Muitos deles fazem parte da Olhos da Mata, uma organização não-governamental (ONG) que, financiada pela Comunidade Solidária, realiza projetos com adolescentes e promove caminhadas ecológicas. Viviane Lopes Freire, de 17 anos, integra a ONG e freqüentou, há dois anos, o curso sobre ecoturismo. Atualmente, na ausência dos dois diretores "adultos" da Olhos da Mata, José Álvaro Coelho e Adilson Rodrigues, ela recebe, junto com outros jovens, os visitantes que chegam para conhecer a região. Viviane explica seu papel multiplicador na luta pela conscientização ambiental. "É preciso que as pessoas entendam que não se pode sujar essa área de preservação, porque ela é parte do nosso sustento. Mas muitas delas não têm essa consciência."
Qual São Paulo?
Antenor Reinberg, nascido e criado há 74 anos no bairro de Engenheiro Marsilac, é dono de histórias pitorescas. Descendente direto dos primeiros moradores da região, Antenor confessa, um pouco envergonhado, que não conhece "a cidade", isto é, nunca pôs os pés para depois de Santo Amaro (aliás, boa parte dos habitantes do extremo sul da capital, quando desejam se referir à região mais central da cidade, dizem "São Paulo" ou "a cidade").
A vida de Antenor é marcada por peripécias que envolvem desde a grilagem das terras que pertenciam à sua família (segundo seu relato foram-lhe tomados mais de 250 hectares), um encontro fortuito com uma onça e até uma visão fantasmagórica de um lobisomem nas cercanias da estação de Evangelista de Souza. "Aqui era tudo um sertão só. Demorava quatro dias para ir e voltar a Santo Amaro, onde vendíamos os produtos que plantávamos. Tudo era feito a pé ou em lombo de mula. A luz era de querosene e fazia uma fumaceira danada. As casas eram de madeira e o teto feito de varicanga, uma espécie de palha que nasce na mata."
O sotaque arrastado de Antenor lembra o acento do interior do estado. E a inflexão de sua voz guarda outra particularidade: na pronúncia do 'o' fechado (como em Colônia e ônibus), não só ele, mas boa parte dos descendentes dos primeiros europeus entrevistados para esta matéria abre a sílaba tônica e, a exemplo dos portugueses, dizem Colónia e ónibus.
Sobrevivendo com um salário mínimo da aposentadoria, Antenor não se lamenta da vida. Reclama, sim, que já há uns cinco anos não consegue mais realizar as caminhadas pela região, uma vez que suas pernas estão fraquejando. Sobre o meio ambiente ele diz: "Adoro a natureza, sabe? Acho muito importante preservá-la. Afinal, ela me deu sustento por toda a vida".
Domingos Leoncio Pereira é sociólogo da Divisão Técnica de
Educação Ambiental da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente.
André Rosemberg é editor-assistente da Revista E
O que fazer? - A importância de preservar Dentre as estratégias iniciais adotadas para desenvolver a região e garantir sua preservação estão os grupos de trabalho, com a participação de algumas lideranças comunitárias, ONGs ambientalistas e empresários locais e técnicos do poder público. Como forma de favorecer o estabelecimento de uma política pública para a região, as equipes de Educação Ambiental e de Planejamento da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente realizaram um primeiro levantamento de dados nas escolas da região, único serviço público presente em toda a área, e com as associações e empresas locais. Esses dados mostram as realidades diversas e distintas das escolas e comunidades, com problemas socio-ambientais interferindo no processo de aprendizagem dos alunos e na qualidade de ensino e de vida dos moradores. Algumas escolas funcionam precariamente, sem a infra-estrutura necessária, como, por exemplo: falta de merendeira e faxineira. Mesmo assim, a população já deu inúmeras provas de carinho e respeito para com a sua região e demonstra muita esperança na preservação dos recursos naturais quando se disponibiliza para participar, buscar e construir valores sociais equilibrados e alternativas sustentáveis de crescimento. Para este ano, as Divisões de Educação Ambiental e de Planejamento Ambiental estão desenvolvendo um curso de educação ambiental para os professores das dezesseis escolas da região, com o apoio das Secretarias de Educação, do estado e do município, além de dois cursos com a mesma temática para lideranças comunitárias locais, nos quais serão elaborados pequenos projetos na área ambiental, que contarão com o apoio técnico das instituições e órgãos parceiros. A qualidade da água dos rios que servem a região também está sendo monitorada em parceria com a Sabesp. |
O que é a APA? - Preservação não exclui o homem A proposta de criação da APA Municipal do Capivari-Monos, ainda em tramitação na Câmara Municipal, pauta-se pelos seguintes objetivos: promoção do uso sustentável dos recursos naturais; proteção da biodiversidade, dos recursos hídricos, do patrimônio histórico, e melhoria da qualidade de vida das populações residentes na área. A região onde se propõe implantar a APA do Capivari-Monos, projeto de lei nº 412/98, é pouco conhecida pela maioria dos cidadãos paulistanos e compreende o distrito de Engenheiro Marsilac, da Barragem, na divisa com São Bernardo, ao Gramado, na divisa com Embu-Guaçu, além de parte da área sul do distrito de Parelheiros. Estende-se do planalto à linha cumeada da serra do Mar, na divisa com Itanhaém, englobando três bacias hidrográficas: do Capivari-Monos, da Guarapiranga (rio Embu-Guaçu) e da Billings, configurando-se num espaço onde ainda predominam áreas naturais, embora a expansão urbana já se faça notar na forma de loteamentos irregulares. Trata-se de uma área com aproximadamente 200 quilômetros quadrados, em sua maior parte coberta pela mata atlântica, e com uma população de cerca de 50 mil habitantes. Além da vegetação nativa, estão presentes na região agricultura (horticultura e floricultura principalmente), reflorestamento comercial, piscicultura, clubes e chácaras de recreio. Há duas aldeias de índios guaranis: no Krucutu e no Morro da Saudade, localizadas dentro do perímetro proposto. Alguns loteamentos clandestinos e irregulares já se fazem presentes na periferia da região. Há áreas onde o desmatamento e as queimadas são comuns, onde a caça, o aprisionamento e a venda ilegal de animais silvestres e o extrativismo predatório do palmito, bromélias e orquídeas são práticas ainda resistentes e onde o uso dos recursos naturais se dá de forma desequilibrada e degradadora, o que torna ainda mais urgente a adoção de estratégias para sua preservação. A maioria dos loteamentos é irregular e a legislação de proteção aos mananciais, hoje vigente, não permite a instalação de infra-estrutura de saneamento básico. O fato de a região estar localizada em Área de Proteção aos Mananciais traz impedimentos com relação à implantação de um sistema integrado de distribuição de água e coleta/tratamento de esgoto. A Sabesp foi autorizada, por meio do Plano Emergencial, a atender, via sistema isolado, a população do bairro Condomínio Vargem Grande, dentro da "cratera" de Colônia, que tem cerca de 35 mil habitantes. |