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Amante da perfeição
JORGE LEÃO TEIXEIRA
A morte de Lúcio Costa foi atropelada pela Copa do Mundo e não conseguiu furar o bloqueio do futebol na mídia, projetando na dimensão merecida sua rica personalidade e sua importante obra como arquiteto, urbanista e ensaísta. Não era uma pessoa fácil para aqueles que não privassem de sua amizade: franco, às vezes até seco, arredio, mas dono de uma vida pública e privada impecável. E sobretudo um devoto da perfeição, um artesão sonhador que buscava nos desafios profissionais conciliar o belo e o real, guiado pelo idealismo e o desprendimento que sempre o acompanharam em sua carreira.
Lúcio Costa também soube conciliar os fundamentos de sua formação clássica, fruto da infância e adolescência na Europa, com a criatividade e a incursão além das fronteiras da rotina, rompendo com o status quo artístico, mas sem desprezar o valor da tradição e dos legados memoráveis do passado. O arquiteto que convenceu Vargas a trazer Le Corbusier como consultor para a construção do prédio do Ministério da Educação também foi um colaborador permanente de Rodrigo Mello Franco de Andrade no Patrimônio Histórico.
Excelente desenhista - foi aluno na Inglaterra de um professor que na década de 30 seria convocado para dar aulas à atual rainha Elizabeth -, Lúcio chegou a pensar em ser pintor, mas decidiu-se pela arquitetura, formando-se na Escola Nacional de Belas-Artes, em 1923. Curiosamente, um de seus primeiros empregos foi como desenhista de projeto de um castelo, construído por Smith Vasconcelos em Itaipava, na cidade serrana de Petrópolis (RJ).
Guindado à direção da Escola Nacional de Belas-Artes, colocou em prática sua busca de novos rumos, promovendo uma reviravolta na forma de pensar a arquitetura e reformulando o Salão Nacional de Belas-Artes. Em 1931, convidou Anita Malfatti e Manuel Bandeira para o júri, abrindo caminho para pintores como Portinari e Cícero Dias, bem como para arquitetos como Warchavchik e Afonso Reidy.
O Ministério da Educação foi um marco na sua carreira e um divisor de águas na história da arquitetura brasileira. Admirador de Le Corbusier, cuja visão global considerava incomparável, Lúcio reuniu uma equipe na qual estavam Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcelos e Oscar Niemeyer, que freqüentava seu escritório desde os tempos de estudante. "No início ele não me impressionou, apesar de desenhar bem", confessaria Lúcio, anos depois, dizendo que pensara até em desencorajar Niemeyer e aconselhá-lo a trabalhar num banco. "Mas ele acabou revelando seu talento e sua vocação", acrescentou. "A vocação irresistível é uma condição sine qua non para o bom desempenho na arquitetura", fazia questão de frisar aos estudantes e arquitetos recém-formados.
Se o atual Palácio Capanema foi um marco para o arquiteto, Brasília seria a consagração do urbanista, com o traço simples que definiu os contornos da nova capital, destinada a brotar do cerrado goiano, plantada sob "aquele céu imenso, onde as nuvens se moviam devagar na amplitude de horizontes que se perdiam na distância", como sempre recordava. A parceria do urbanista com o antigo discípulo, Oscar Niemeyer, resultaria na cidade que se tornou patrimônio histórico da humanidade.
A vitória no concurso de 1956 e o desafio de concretizar o seu projeto urbanístico contribuíram para aliviar a tristeza que o possuíra dois anos antes, quando sua mulher faleceu num acidente automobilístico, do qual ele se julgava culpado, por dirigir o carro em que viajavam. (Uma cicatriz que carregaria na memória pelo resto da vida.) Quanto ao prêmio recebido, contava, com simplicidade, que depositara o dinheiro num banco e a inflação comera quase todo o valor da quantia, coisa de que se queixara, certa feita, em conversa com Juscelino...
Lúcio Costa não gostava de falar e discutir a evolução de Brasília, onde o poder público permitia a explosão de cidades-satélites que fariam um cerco ao monumento de concreto, vidro e vãos monumentais surgido do seu projeto e da prancheta de Niemeyer. Certa vez, porém, ante uma crítica mais severa, comentou: "Brasília não foi projetada para solucionar o problema das desigualdades sociais no Brasil, responsabilidade dos governantes, e não da arquitetura". Outra coisa que o irritava sumamente era o lugar-comum de comparar a planta de Brasília a um avião, endossando uma comparação da revista "Time".
Mas o Rio de Janeiro também guarda lembranças do urbanista e arquiteto em projetos de grande beleza e encanto, como o conjunto arquitetônico do Parque Guinle, onde está o Palácio Laranjeiras, diante do qual se estendem pela encosta sinuosa dos jardins os edifícios residenciais. Há também um projeto que não conseguiu vingar, lembrado por Niemeyer, que seria o da Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre a Quinta da Boa Vista e o morro da Mangueira.
Em 1969, no governo Negrão de Lima do então estado da Guanabara, Raymundo Paula Soares, dinâmico engenheiro que revolucionou a paisagem do Rio como secretário de Obras, resolveu convocar Lúcio Costa para traçar o plano piloto da Barra da Tijuca, cuja ocupação fatalmente aconteceria após as obras que facilitaram o acesso à vasta baixada de Jacarepaguá. Indeciso a princípio, ele se deixou convencer ante a competência e entusiasmo de Paula Soares. "Tudo o que ele fazia era com a cabeça e o coração", reconheceria, após sobrevoar a região no helicóptero que Paula Soares pilotava para inspecionar as obras em marcha no Rio. "Ele também sabia voar com os pés na terra", completaria Lúcio.
O memorial do plano piloto é uma peça escrita com aquela elegância de estilo que foi uma de suas marcas registradas, prevendo a ocupação da Barra da Tijuca com método e desdobramento do planejamento ao longo do tempo, alternando gabaritos variados, com prédios baixos à beira-mar, muito verde e até um sistema de transporte fluvial pela lagoa de Marapendi.
A Barra, entretanto, se transformaria num grande desgosto para Lúcio Costa. A ganância imobiliária, aliada à insensibilidade de governantes e políticos, redundou em desrespeito às diretivas do plano piloto e numa ocupação desordenada dos espaços. Não admira, portanto, que, ao fim da vida, amargurado, repetisse que não há urbanista ou arquiteto capaz de resolver o problema de deterioração da qualidade de vida em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo.
Nada disso, porém, afetou o prestígio de que gozava no Brasil e no exterior. Flávio Ferreira, arquiteto que foi secretário de Urbanismo na gestão de Roberto Saturnino na prefeitura do Rio de Janeiro, ali privou com Lúcio Costa, chamado para consultor, e lembra que em Harvard, onde estudou, Lúcio era sempre citado com respeito e admiração. E na grande festa dos cem anos do mítico Massachusetts Institute of Technology ele foi um dos convidados de honra, recrutados no mundo inteiro para o evento.
A vivência estética, política e cultural de Lúcio Costa foi reunida numa alentada obra que decidiu publicar no fim da vida, há três anos, volume com mais de 600 páginas, compilado com a colaboração de sua filha, a arquiteta Maria Luísa Costa, que levou o nome de Relato de uma vivência. Ao explicar por que resolvera publicá-lo, disse, na sua franqueza simples e rude: "Adiei este projeto durante muito tempo, mas como estou na reta final decidi não mais protelá-lo. Senão, a gente morre e são outros que vão escrever a nosso respeito".
Sua morte coincidiu também com a edição comemorativa da "Revista do Patrimônio Histórico" sobre os 60 anos da instituição criada por Gustavo Capanema e Rodrigo Mello Franco de Andrade para preservar a memória histórica e artística do Brasil, na qual figura um artigo de Lúcio Costa sobre os jesuítas e a arquitetura colonial, exemplo da sua sensibilidade em saber cultuar e conciliar a tradição com a renovação.
Numa reparação póstuma aos agravos que lhe foram feitos com o desvirtuamento do plano piloto da Barra da Tijuca, o arquiteto Luiz Paulo Conde, prefeito do Rio de Janeiro, deu o seu nome à Avenida Sernambetiba, que se estende diante daquele mar que ele tanto admirava e que circunda como um colar grande parte do Rio que tanto amou. Mar diante do qual morou até morrer, num velho apartamento do Leblon, em meio à desordem dos seus livros, revistas e jornais. Um prédio de gabarito baixo, sobrevivência lebloniana, semelhante aos que ele sonhara fazer surgir diante das praias da Barra da Tijuca.
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