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Herói brasileiro

OSCAR D'AMBROSIO

O irreverente Macunaíma - quem diria! - está completando 70 anos. Criado por Mário de Andrade e imortalizado no cinema, ele resiste ao tempo e permanece como uma esfinge a desafiar leitores e críticos literários. Suas diversas facetas, como símbolo da nacionalidade, paródia modelar e texto de estilo barroco, se avolumam, levando muitos a esquecer o contexto em que a obra foi gerada.

Tudo começou em dezembro de 1926. Foram necessários apenas seis dias de férias passados numa chácara, em Araraquara, para que o escritor paulistano Mário de Andrade, "por brincadeira... entre rede, cigarros e cigarras", como declarou, escrevesse Macunaíma o herói sem nenhum caráter (assim mesmo, sem vírgula separando o aposto), um dos livros mais importantes da literatura nacional.

Nos dois anos seguintes, a obra seria reescrita três vezes, até ser publicada em 1928. A crítica ficou perplexa. Oswald de Andrade e Alcântara Machado mostraram-se entusiasmados. Tristão de Athayde considerou a obra um "coquetel", misto de romance, poema e epopéia; Augusto Meyer a qualificou, elogiosamente, como "livro que não cabe em nenhuma classificação".

Com maior distanciamento, nos anos 70, Gilda de Mello e Sousa definiu a obra como "uma meditação extremamente complexa sobre o Brasil, efetuada através de um discurso selvagem, rico de metáforas, símbolos e alegorias". Sete décadas após a publicação, a avaliação permanece de pé, e, nesse ínterim, surgiram análises críticas indispensáveis, como as de Haroldo de Campos, que destacam o alto nível de trabalho com a linguagem realizado por Mário de Andrade no livro.

Logo após terminar a primeira versão do livro, o escritor paulistano explicou que, em sua obra, "caráter" devia ser entendido como "uma realidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior, no sentimento, tanto no bem como no mal". Em síntese, o brasileiro não teria caráter por não ter uma civilização própria nem consciência tradicional, mas não por ter má índole.

É importante lembrar que, escrito logo após a Semana de Arte Moderna de 1922, Macunaíma apresenta uma narrativa de estrutura inovadora do ponto de vista do enredo, da caracterização dos personagens e do estilo. O caráter de Macunaíma seria tão maleável e polifônico quanto a própria escrita do livro, mescla de poema, romance e narrativa épica.

Além da ausência de caráter, a célebre frase de Macunaíma "Ai, que preguiça!...", geralmente associada ao calor e à indolência, costuma ser muito usada para definir o temperamento do brasileiro. Afinal, ao contrário dos heróicos Ajax e Hércules, que se diferenciam dos simples mortais pelas ações guerreiras em que revelam valor e temperamento magnânimo, o "herói sem caráter" ama ficar à toa, de papo para o ar.

Sabe-se que a fonte em que bebeu Mário de Andrade foi o personagem homônimo do livro Vom Roraima zum Orinoco, do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg, que, entre 1911 e 1913, andou coletando lendas e heróis de mitos indígenas do Brasil. Porém, entender a atualidade dos símbolos que permeiam Macunaíma significa também perceber como Mário de Andrade realizou a mediação entre o material folclórico e o tratamento literário moderno ao usar a chamada "fala brasileira", mesclada com uma linguagem culta.

Macunaíma somente atingiu o grande público quando a obra foi filmada, em 1969, sob uma ótica tropicalista, por Joaquim Pedro de Andrade. As platéias e os críticos adoraram o Macunaíma preto genialmente interpretado por Grande Otelo, que mais tarde se transformaria no jovem branco vivido por Paulo José. O livro também ganhou uma versão no palco, dirigida por Antunes Filho, em 1978.

Nas três versões, a do livro, a fílmica e a teatral, acentua-se uma visão mítica, que pode ser comprovada quando se acompanha o percurso do protagonista. No começo do livro, ele mora às margens do rio Urariqüera com os dois irmãos e a mãe. Quando esta morre, os três partem em busca de aventuras e acabam em São Paulo, onde procuram um amuleto perdido, o muiraquitã, pedra verde em forma de sapo ou jacaré.

Ao final do livro, Macunaíma, "capenga de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva", se transforma em estrela solitária. Não parece a imagem de um vencedor, como alguns postulam, mas a de alguém que sempre desistiu de lutar neste mundo. Do alto, de forma ambivalente, com um riso sarcástico, mas também com melancolia.

A obra não pode ser analisada apenas como uma alegoria do brasileiro. Essa concepção é uma simplificação perigosa. Mário de Andrade, como folclorista que era, sabia que a cultura popular era parte primordial da identidade nacional e a incorporou no livro. Porém, há nele mitos de todo tipo, o que dá à narrativa um tom épico, que, no cinema, ganhou uma conotação antropofágica.

Setenta anos após sua criação por Mário de Andrade, Macunaíma permanece um personagem ímpar. Imperador do Mato e egoísta, sedutor sem limites e defensor do Cruzeiro do Sul, desmedido e sofredor.
Contraditório como todos nós, o personagem sintetiza o destino da espécie humana: ter qualidades heróicas e divinas, mas sem perder as pequenas vilezas cotidianas. Afinal, o ser humano é exatamente um ambulante e complexo microcosmos de contradições que apenas pode ser sublimado pela arte e pelos arquétipos nela contidos, universos que Mário de Andrade dominava como poucos.

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