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De volta à família
Depois de um longo período de desprestígio, o médico clínico reassume seu papel
JORGE LEÃO TEIXEIRA
Os médicos de família começam a reaparecer no cotidiano da vida brasileira, após um longo período de hibernação. A notícia vem em boa hora. O excesso de especialização, marca registrada da medicina brasileira dos últimos anos, vem sendo diagnosticado como um dos males que assolam a saúde do país, pois, enquanto se privilegia a doença, relega-se o doente a segundo plano.
Graças a esses novos ventos que oxigenam a realidade brasileira, realizou-se em Búzios, no estado do Rio de Janeiro, um encontro (Primeira Jornada Médica de Búzios) em que 400 profissionais voltaram a ocupar bancos escolares para receber aulas práticas sobre emergência em clínica médica. O evento, promovido por 20 incansáveis professores, faz parte do trabalho que a Sociedade Brasileira de Clínica Médica (SBCM) vem realizando para revalorizar o profissional que pode resolver a maior parte das queixas dos pacientes, encaminhando-os a especialistas somente em casos mais complicados.
O clínico, consultado em primeira instância, geralmente torna os tratamentos menos dispendiosos, além de evitar o desgaste com exames desnecessários. Mais: alivia a pressão sobre a rede hospitalar pública nos casos que podem ser solucionados pela figura do "médico de família".
Luiz José de Souza, presidente da SBCM no Rio de Janeiro, lembra que um clínico bem preparado tem condições de resolver 80% dos casos dos pacientes que o procuram. Além disso, o clínico-geral é o profissional mais indicado para fazer a medicina preventiva, orientando o paciente desde os sintomas iniciais. E sua atuação permite a elaboração de um histórico médico para cada doente, facilitando os diagnósticos e a indicação de medicamentos, exames ou tratamento.
Apesar disso, poucos são os médicos com o título de clínicos. No Rio de Janeiro, por exemplo, há 3 mil clínicos-gerais com formação em residência médica, mas somente cerca de meia centena deles possuem aquele título.
Nessa cidade, nunca foi feito concurso para obtenção do título, mas a SBCM já anunciou que, por ocasião do 1o Congresso de Clínica Médica do estado, em novembro, serão realizadas provas para os profissionais interessados em obtê-lo.
Esse congresso, assim como diversos seminários já realizados, busca ampliar a capacitação técnica dos clínicos, já que as faculdades não cumprem essa missão, como faziam no passado. A busca de especialização se explica também por ser mais rentável, pois os clínicos, em sua maioria, ganham menos que seus colegas na remuneração paga pelos convênios. Sem maestro
O desinteresse pela clínica médica é danoso para os pacientes, diz Sérgio Pereira Novis, em artigo publicado no início de junho no "Jornal do Brasil". Professor titular de neurologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e chefe da 25a Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia, ele classifica o médico clínico como o "maestro da orquestra". Ou seja, um elemento fundamental no processo de assistência médica, além de indispensável na coordenação de equipes multiespecializadas no tratamento de doenças graves. Um caso mais sério tratado por múltiplos especialistas, sem a regência do clínico-geral, "corre tantos riscos quanto uma orquestra que executa uma sinfonia de Beethoven sem maestro...", exemplifica Novis.
O retorno oficial do "médico de família" encontrou um adepto entusiasta no prefeito de Niterói (RJ), Jorge Roberto Silveira, que ficou impressionado com sua importância no atendimento às famílias cubanas. Atualmente no seu segundo mandato, Silveira revolucionou o atendimento às comunidades carentes através do programa Médico de Família, segundo o qual os profissionais trabalham em determinadas áreas com o apoio de postos de saúde. O programa repercutiu no âmbito estadual, abrindo caminho para iniciativas semelhantes. Também em São Paulo e Minas Gerais surgiram providências para restaurar esse tipo de atendimento, embora eventuais rivalidades políticas entre os poderes estadual e municipal continuem perturbando os programas de saúde, caso típico de algumas capitais. Prevenção deficiente
Em que pesem os grandes progressos e conquistas registrados pela medicina, o Brasil continua marcando passo em matéria de prevenção. O doutor Carlyle Guerra de Macedo, ex-diretor-geral do escritório da Organização Pan-Americana de Saúde no país e membro do Conselho Nacional de Saúde, declarou em abril último que 400 mil pessoas morrem por ano de diarréia, sarampo, esquistossomose, hipertensão e câncer do pulmão, entre outros males. São doenças que poderiam ser combatidas e evitadas mediante programas preventivos de baixo custo e fácil implementação.
Os índices de mortalidade materna nos partos e de mortalidade infantil também continuam alarmantes, segundo Carlyle, que cita o IBGE para confirmar: 160 mulheres em cada grupo de 100 mil morrem em conseqüência de complicações do parto, número dez vezes superior ao de Costa Rica. O trágico, segundo Jorge Darze, diretor da Federação Nacional dos Médicos, é que aproximadamente 90% dessas mortes poderiam ser evitadas se fossem adotados programas de assistência pré-natal. Quanto às crianças, diz ele, a média nacional de mortes é de 57 óbitos para cada mil nascidos vivos, prevalecendo as mortes nas regiões mais pobres do Brasil.
O 13o Congresso Mundial de Cardiologia, realizado entre 26 e 30 de abril, no Rio de Janeiro, com a presença de cerca de 12 mil médicos, conferiu prioridade para a prevenção, recebendo cerca de 2 mil trabalhos. A Sociedade Brasileira de Cardiologia divulgou, durante o evento, informações sobre doenças cardiovasculares, mencionando dados significativos.
Estatísticas internacionais mostram que 48% das mortes por infarto agudo do miocárdio acontecem antes dos 65 anos e 38% delas ocorrem antes dos 55 anos. Campanhas de prevenção nos Estados Unidos conseguiram baixar a mortalidade por infarto antes dos 65 anos para 17%. Entre as dez doenças que mais matam, no Brasil, a primeira é o infarto do miocárdio, a segunda o acidente vascular cerebral e a terceira a insuficiência cardíaca, o que torna a incidência das moléstias coronárias, entre os brasileiros, semelhante à do leste europeu e da Tailândia, países onde também se morre muito do coração.
A Sociedade Brasileira de Cardiologia estima que, além de representar um progresso na política de saúde brasileira, a economia de recursos gerada por um programa nacional bem-sucedido de prevenção poderia rivalizar com a economia que o governo pretende obter através da reforma da previdência. Câncer
Hiram Silveira Lucas, diretor-geral do Hospital Mário Kroeff e presidente da Associação Brasileira de Assistência aos Cancerosos, também luta por campanhas que alertem para a prevenção e detecção do câncer da próstata, que, a exemplo do câncer de mama, colo do útero, pele, tiróide e bexiga, é um mal que se consegue debelar e curar em 60% dos casos. Nessa área, a falta de informação alia-se à falta de infra-estrutura, e as campanhas ocasionalmente promovidas não logram esclarecer a população, além de esbarrarem na deficiência do atendimento hospitalar.
É nesse contexto que se insere o papel importante que o médico de família, quer como profissional privado, quer como agente estadual ou municipal, pode desempenhar, seja no atendimento direto à população, seja como porta-voz e ponta-de-lança das medidas de detecção e prevenção. Ele é um personagem com acesso ao diálogo direto com o alvo dessas campanhas, exercendo uma atividade que lhe permite ganhar confiança para atuar como médico e conselheiro, notadamente em comunidades da periferia urbana e das zonas rurais.
Ao longo de várias décadas esse foi o papel que a figura do médico de família cumpriu no Brasil, muitas vezes atendendo gratuitamente os mais necessitados nos consultórios, outras vezes dividindo sua atividade profissional entre a clínica particular e o trabalho em hospitais públicos. O que explica o êxito que alcançava quando tentava a carreira política, tal o prestígio de que desfrutava entre todas as faixas sociais.
Para que o programa do médico de família possa alcançar dimensão realmente nacional, atingindo o interior do país, será necessário nos próximos anos reverter a distorção que compromete a distribuição dos profissionais pelo país: pesquisa feita pela Escola Nacional de Serviço Público da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em convênio com o Conselho Federal de Medicina, revelou que mais de 60% dos 200 mil médicos do país estão radicados nas capitais e, principalmente, no sudeste do país. No Rio de Janeiro existem 4,5 médicos por mil habitantes, relação quase cinco vezes maior do que a preconizada pela Organização Mundial da Saúde. Moram na cidade do Rio 74% do total dos médicos do estado. Esse número supera os também elevados índices de São Paulo (51,7%) e Minas Gerais (46,5%).
A situação é particularmente grave no interior da Bahia, onde há menos de um médico por mil habitantes (0,2%), em Rondônia (0,2%) e no Acre (0,18%). No cômputo geral, o Brasil tem 3,2 médicos por mil habitantes, mas a relação no interior do país é de apenas 0,5%.
Outra dificuldade a superar é a tendência a transferir responsabilidades para o governo federal, esquecendo a parte que os governos estaduais e municipais devem assumir nos programas de saúde. Alívio para os hospitais
Uma das vantagens da multiplicação de uma rede pública de médicos de família é a criação paralela de um sistema de postos de saúde eficientes, base e apoio para seu trabalho de atendimento e visitação às comunidades. A ação do médico de família conjugada com o bom funcionamento desses postos aliviaria de imediato as salas de emergências dos hospitais públicos nos centros urbanos.
Pesquisa realizada no Hospital Miguel Couto, do Rio de Janeiro, mostrou que na média diária de 800 atendimentos de sua emergência, apenas 7% são de casos que seriam de sua competência, podendo os restantes ser resolvidos em atendimento ambulatorial nos postos de saúde ou mediante conselho médico. A pesquisa indagou aos entrevistados qual a razão de terem procurado a emergência do Miguel Couto. Resposta: ali poderiam ser atendidos mais rapidamente do que num posto de saúde, fazendo os exames que fossem necessários na hora e recebendo receitas para obter remédios na farmácia do hospital.
O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro estima que 80% da clientela das emergências poderia ser atendida fora do setor, caso a população fosse mais bem informada e contasse com uma rede básica eficiente de postos de saúde.
Enquanto isso não acontece continua vigorando em muitos municípios brasileiros a política da "ambulancioterapia". O tratamento consiste em colocar os pacientes em ambulâncias municipais para levá-los até uma cidade próxima ou até a capital, muitas vezes sem necessidade, agravando o congestionamento e as filas de atendimento nos hospitais públicos.
Outro problema que deve ser superado a médio prazo é o número considerado como absurdo de 80 escolas médicas no país. Esse excesso permite a formação deficiente de profissionais, dada a falta de estrutura de várias delas. Daí a preocupação com a formação e o aprimoramento de médicos clínicos capazes de sustentar a expansão dos médicos de família. A união faz a saúde
Em Minas Gerais, municípios vizinhos começaram a se associar para melhorar o atendimento médico e o sistema de saúde pública da sua região, inspirados na experiência pioneira lançada pelo médico José Rafael Guerra quando diretor da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Procurado pelo prefeito de Moema, região do alto São Francisco, para ajudar a reabrir o hospital daquele município, Guerra sugeriu uma associação entre os municípios da região capaz de garantir a sua reabertura e posterior manutenção. A idéia vingou e hoje ele atende 26 municípios, beneficiando 360 mil pessoas.Ao assumir o governo de Minas, Eduardo Azeredo convidou Guerra para o cargo de secretário de Saúde, aceitando sua proposta de expandir a criação desses consórcios intermunicipais. Atualmente já existem 68 deles instalados, cobrindo aproximadamente 800 municípios. Com atendimento eficiente, hospitais bem-equipados e médicos à disposição na região onde habitam e trabalham, os moradores sentem-se seguros e não correm mais rumo à capital.
O êxito obtido pelo programa de Rafael Guerra lhe valeu um convite da Organização Mundial de Saúde para falar sobre os resultados do programa no II Congresso de Secretários Municipais de Saúde das Três Américas, realizado em junho do ano passado em Havana, além de pedidos de informações dos países do Mercosul e sua nomeação para a presidência do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde. Quota mensal
Como funciona um consórcio de saúde? Ele começa num posto de saúde, onde, mesmo que o caso seja complexo, o cidadão precisa comparecer para que o médico faça uma avaliação e possa encaminhá-lo para nova consulta ou exame num hospital do consórcio. Cada cidade possui uma quota de atendimentos mensais, de acordo com sua população e os equipamentos existentes nos hospitais e centros de saúde locais, ou então de outras cidades da área coberta pelo consórcio. (Em muitos municípios, a prefeitura já mantém um serviço de transporte para levar pacientes a hospitais e centros de saúde situados em cidades vizinhas, filiadas ao consórcio.)
Para formação do consórcio é escolhido um município-sede e se determina o valor da contribuição dos associados, geralmente de 1% a 3% do Fundo de Participação dos Municípios. Caso seja necessário construir um hospital na região ou comprar equipamentos, os prefeitos recorrem ao governo estadual ou federal, pedindo financiamento em nome do consórcio, uma entidade registrada como sociedade sem fins lucrativos, após aprovação pelas Câmaras Municipais das cidades que o integram. Três conselhos administram o consórcio: o de prefeitos, órgão político definidor das prioridades e investimentos; o de secretários municipais de saúde, órgão executor das decisões adotadas pelo conselho de prefeitos; e um conselho fiscal, formado por vereadores e membros da comunidade.
Os 11 estados brasileiros que estão seguindo o exemplo de Minas Gerais costumam enviar técnicos para tomar conhecimento da bem-sucedida iniciativa. Curiosamente, os problemas que surgem não são de ordem partidária, mas provocados pelas rivalidades entre municípios e eventuais disputas entre prefeitos, o que já provocou a criação de dois consórcios em regiões onde o bom senso recomendava a existência de somente um.
Eugênio Vilaça Mendes, ex-consultor da Organização Pan-Americana de Saúde e coordenador da Escola de Saúde de Minas Gerais, numa recente avaliação do programa destacou quatro grandes êxitos: diminuição do custo social do deslocamento maciço de pacientes para a capital do estado; recuperação na escala de exames e consultas; estrutura não burocrática na gestão dos consórcios; e amadurecimento político da maioria dos prefeitos, que passaram a negociar com prefeituras vizinhas no interesse da população da região, sem incorrer em atritos partidários.
Vilaça acha, porém, que os consórcios podem ser aperfeiçoados. Para isso recomenda que se mantenham ligados aos problemas de saúde familiar, atendendo a cerca de 90% dessa demanda, sem congestionar os hospitais da região, "desospitalizando" o atendimento e fugindo à tentação de multiplicar gastos na compra de equipamentos.
A consolidação do programa dos consórcios intermunicipais de saúde, segundo Vilaça, não pode prescindir da figura do médico de família, engajado no serviço público e apoiado pelos postos de saúde, base do projeto imaginado por Rafael Guerra, cuja meta é atingir todos os 835 municípios mineiros até o fim do ano.